izem-me alguns amigos que escrevo com muitas vírgulas. Por isso decido escrever um texto com muitos pontos. Assim, arrumadinho. Para permitir a quem lê assentar melhor as ideias. Cá para mim é preguiça, mas o que se há-de dizer? O ponto final é o pai da preguiça mental. É, sim senhor. Faz com que as frases se tornem mais fáceis de interpretar. Deixa descansar o intelecto. Mas lá que é preguiçoso, isso é.
Antigamente não havia pontos. Escrevia-se tudo de seguida, e que percebesse quem quisesse. Também não havia muitos que percebessem, por isso não fazia grande diferença. Não há muita literatura sobre estas coisas da pontuação. Nem no Serafim Neto, nem no José Joaquim Nunes, nem no José Pedro Machado. Diga-se de passagem que estas são referências culturais. Uma pessoa tem que fazer alarde dos seus conhecimentos. O que para aí há são regras: onde colocar pontos, onde colocar vírgulas. Nisto toda a gente dá sentenças. Mas pouco mais.
A Internet também não é famosa, neste assunto. Procura-se em ponto final, em páginas em português, e obtêm-se alguns resultados interessantes: nomes de jornais, viagens e turismo, artigos diversos, ponto final à corrupção, vinhos ponto final. Eis um interessante, este último. Bebes este vinho e ponto final. Acabou-se. Dá-te uma cirrose das antigas e finas-te. Olha que raio de publicidade. Deve ser esperto, quem inventou este nome para vinhos. Eu se visse um vinho destes no supermercado fugia dele a sete pés. Além dos dois que tenho cresciam-me mais cinco. Só para fugir dele. Se calhar se fossem oito equilibrava-me melhor. Também não se pode ter tudo. Usa-se uma bengala e já está. Se fosse polvo nem precisava dela. Mas também se fosse polvo não estava para aqui a escrever disparates. Largava a tinta e quem quisesse que fosse encher canetas. Ou então já tinha servido para fazer um arrozito.
Os pontos só começaram lá para o século catorze, as vírgulas ainda mais tarde, lá para mil quinhentos e vinte. Os pontos e vírgulas apareceram lá para os fins desse século. Travessões e aspas só para os mil setecentos e tal. Romanos e gregos que escrevessem, pelo menos os primeiros, escreviam tudo de seguida. Sem espaços. Portanto não nos podemos queixar.
Passando por cima desta lição de história da grafia, aqui sempre está mais fácil de ler. Eu acho que sim. Mas sou suspeito. Se fui eu que escrevi, posso sempre ser suspeito. Aliás já nos filmes do Hithcock eu aparecia sempre como suspeito. Quem cometeu o crime? Ali o Rezendes parece-me suspeito. Nem posso pôr o pé numa agência bancária que me olham logo de lado. Olh’ali aquele parece-me suspeito. Se calhar sou mesmo. A propósito de pontos, já está. Ponto final.
...nisto do fisco não se pode esconder nada que eles dão com tudo, até debaixo da cama...
A inda o outro dia o Zé teve um susto. Foi chamado às Finanças porque devia dinheiro. Do I.R.S. Ele, que nunca tinha sido caloteiro na vida, devia dinheiro, não tinha cumprido o seu dever, que é pagar os impostos todos, todinhos, até ao último tostão, sem esconder nada, que nisto do fisco não se pode esconder nada que eles dão com tudo, até debaixo da cama, sei de uma senhora cujo marido teve uma surpresa porque deu com um homem do fisco debaixo da cama, e a mulher em cima, seminua, a tremer de medo, coitadinha, foi o diabo para explicar ao fiscal que ali não havia dinheiro escondido, não senhor, nem ali nem em lado nenhum, talvez à excepção de uns trocos guardados numa lata de bolachas para as emergências, não era coisa por demais, será que afinal também era preciso levar a lata das bolachas às Finanças?
Bem, não se pode esconder nada é como quem diz, que há quem esconda, ai escondem, escondem, passam por pobrezinhos e honestos, vai-se a ver e afinal há propriedades não declaradas, carros de luxo enfiados em garagens alugadas, sem recibo, claro, que é para não dar nas vistas, umas contas na Madeira e noutros lugares ainda mais longe, como as ilhas do Canal, que nem sei bem onde ficam mas deve ser lá para o tal de Canal, se uma pessoa quer saber onde fica nem piam, qual Canal, perguntam logo, como quem está a falar na Lua, não é nada com eles, disso não sabem nada, pois é, eu também não e não há maneira de me calarem, a mim não me enganas tu, lá dizia a música, o pior é que os fiscais das Finanças pelos vistos não conhecem a letra.
Adiante. O Zé lá foi, todo atrapalhado, com o papel da dívida na mão, teve que faltar ao trabalho, disse ao patrão que tinha uma consulta, que não teve cara para contar a história da dívida, caso contrário ainda iam pensar que andava a roubar na firma, quem deve às Finanças não deve ser pessoa séria, esconde a caixa do dinheiro que vem aí o Zé não é coisa que agrade ouvir, sobretudo se o Zé somos nós, e passar por malandro, relapso, ladrão, não agrada a ninguém, sobretudo se não andam nessa área de actividade. Subiu as escadas a tremer, degrau a degrau, numa bicha de malandros, relapsos, ladrões e outros que tais. Foi atendido ao fim de três horas e meia.
- Bom dia, recebi aqui esta carta da repartição...
- Então que temos? – vira-se logo uma daquelas eficientes e simpáticas funcionárias imbuídas do espírito de missão de caixa às bruxas, provavelmente ainda aparentada com o Torquemada ou descendente do cardeal-rei D. Henrique, – o senhor não pagou os impostos todos que devia, não é?
- Bem, eu... – hesita o Zé, sem saber bem ao que vinha – eu na verdade nem sei porque é que me mandaram esta carta. Declaro o I.R.S. todos os anos e nunca tive nenhum problema.
- Isso é o que toda a gente diz. Nem sabe os problemas que nos aparecem aqui todos os dias. Se toda a gente preenchesse os impressos como deve ser já nada disto acontecia – devolveu a voz da sabedoria.
- Mas eu nunca fiquei a dever nada. Nestes anos todos, nem um tostão – responde o Zé, meio a medo, meio levado pela coragem das quase certezas.
- Vamos ver, vamos ver. Tostão a tostão vai o estado arranjando dinheiro para construir as estradas por onde o senhor passa, e vai de automóvel, aposto, e os hospitais e as escolas, se calhar o senhor tem filhos, e já esteve doente, não é? Com estes tostõezinhos todos, juntando daqui e dali, é que se faz este país – sentenciou a obsequiosa funcionária. – Vou ali ver o seu processo. Tem aí o seu cartão de contribuinte?
O Zé pesquisa na carteira e começa a corar quando dá pela ausência do dito.
- Não, acho que não o trouxe comigo, devo ter-me esquecido. Mas não dá para ver aí pela carta, não tem lá o número?
- Tem, sim senhor, mas sem o cartãozinho é que nada feito. Ora imagine que vinha cá alguém com a sua carta e não era o senhor. O que é que íamos fazer?
O Zé imaginou logo um voluntário para ir às Finanças com a sua carta para pagar a dívida por si, mas ficou com a impressão que almas beneméritas dessas já deviam ser raras nos dias de hoje.
- Mas não se pode resolver o problema sem o cartão? – indagou.
Que nada, não senhor, que teria que lá voltar, e que tivesse cuidado porque o prazo terminava no dia seguinte, senão teria que pagar juros e mesmo assim não era garantido que aquilo não ia parar ao tribunal. Sem cartão de contribuinte nada feito.
A manhã estava estragada, e o pior é que teria que ir trabalhar à tarde, que o patrão não era para brincadeiras, consulta que se prezasse, para ele, não ia demorar mais do que uma parte do dia, que não conhecia consultas que demorassem um dia inteiro. E lá foi.
No outro dia telefonou para o emprego a dizer que tinha tido um problema com o pai, que tinha ido parar ao hospital, a ver se pegava. Pegar não pegava, isso já o sabia de cor, que lhe pediram logo um papel passado pelo tal hospital a justificar a falta, o que lhe valia é que tinha um amigo que era segurança no São José, de maneira que lhe telefonou a ver se lhe arranjava o tal de papel, que não havia problema, que logo à noite passava lá por casa para lho levar.
Mais uma via sacra de degrau a degrau levou o José nessa manhã, e à tarde teria mais uma dose, que quando lá chegou a bicha já ia do tamanho da légua da Póvoa, que é uma légua maior que as outras, por isso é que as pessoas se referem sempre à da Póvoa quando se referem à tal légua, embora nos dias que correm já pouco gente saiba o que é uma légua, quanto mais onde fica a Póvoa, e se soubessem também não iam lá, que deve ser longe p’ra burro e se calhar de automóvel também não ajudava nada. À hora do almoço distribuíram senhas para a tarde, ficou com o número vinte e seis, ainda ia penar depois do almoço, por isso foi a casa comer qualquer coisa, e quando saiu verificou se trazia os papéis todos, os cartões todos, o livro de cheques, os papéis de desmobilização da tropa, o boletim de vacinas, sabe-se lá o que não vão pedir nas finanças, mais vale estar prevenido.
Às três e quarenta lá chegou a sua vez. A funcionária era agora um funcionário. Mas a simpatia era a mesma, mais refinada.
- Diga o que pretende – avançou o ditador de finanças.
- Eu vinha aqui por causa de uma carta que recebi da Repartição... – e lá desenfiou novamente as contas do seu rosário.
- Ora vamos então ver o que diz no seu processo. O cartão de contribuinte? – disparou o homem lá de dentro do balcão, já à espera de um esquecimento.
- Está aqui, está aqui – prontificou-se logo o Zé a apresentá-lo, mais aliviado.
Abriu a carteira, retirou-o do seu lugarinho e colocou-o em cima do balcão. Um olhar perscrutador percorreu avidamente o cartão.
- Hum, qualquer dia fica fora de prazo. Veja lá se está atento. Depois tem que pedir um novo, senão este deixa de valer.
Apesar do susto, ficou o alívio de saber que ainda valia. Nem reparou nas datas. Sempre pensara que isto dos cartões era como no Multibanco, quando estava prestes a chegar ao fim da validade enviavam outro para casa. Tinha que passar a estar mais atento a estas coisas das datas, já nem bastavam os prazos de validade do leite, da manteiga, dos cereais, agora era preciso reparar nos cartões. Lembrou-se de repente que nunca reparara se as embalagens de fruta, de batatas, de cebolas e de alhos do supermercado tinham datas com os prazos de validade. Será que teriam? Tinham que ter, pois claro. Pois se até os cartões tinham, não haviam agora as batatas de ter, uma coisa que as pessoas comem, claro que tinham, não ia a gente comer coisas estragadas e fora do prazo. Precisava mesmo de estar mais atento às datas. Ele que já tinha dificuldade em lembrar-se de quando fazia anos, quanto mais os outros. O que devia era arranjar uma agenda e escrever os prazos. Mas devia escrevê-los nos dias em que fazia as compras ou nos dias em que as coisas terminavam os prazos? Era um dilema. E dos graves. Porque se escrevesse nos dias em que terminavam tinha que andar sempre a procurar para a frente nas datas; se não o fizesse, quando chegasse ao dia e qualquer coisa terminasse o prazo já não ia haver tempo para resolver o problema. E havia ainda o problema das compras. Deveria começar a guardá-las por ordem do prazo de validade? Tinha que arranjar uma despensa maior. A demora começava a preocupá-lo. Quanto é que deveria? Como é que tinha sido possível, se nunca se tinha enganado nas contas? Mais aflito ficou ainda quando reparou que o funcionário, sentado atrás de um ecrã de computador começou a mirá-lo e se levantou para ir falar com um superior que estava num gabinete à parte. Ai, ai, ai, ai, que havia sarilho dos grandes. Seria possível? Começou a transpirar e a sentir una calores pela cara acima. Onde é que ia inventar dinheiro para pagar a dívida, se o que tinha mal chegava para si e para pagar a pensão de alimentos da ex-mulher e dos dois filhos, para já não falar na escola deles, nas roupas, nos livros, nos cadernos, nas canetas, nas mochilas, na prestação do carro, no aluguer da casa...
Perto das quatro e vinte e cinco lá veio por fim o prestável funcionário com cara de caso, a carta dele e um outro papel na mão. Que tinha uma dívida, sim senhor, mas que não se preocupasse, que o assunto já estava resolvido.
- Resolvido? Resolvido, como? – Afinal devia ou não devia? Se devia, quanto era, que não gostava de ficar a dever nem muito menos que pagassem por ele.
- Está resolvido. Não tem que se preocupar mais com isso. O senhor já não deve nada às Finanças – asseverou a eficiência personificada.
- Mas como? Quem é que pagou? – indagou, agora com a curiosidade toda a invadir-lhe o espírito, que nisto de espíritos curiosos não há que saber nem como nem porquê, são curiosos e pronto.
- O Estado resolveu a seu favor. Não tem que se preocupar com nada – assegurou-lhe o homem, numa resposta que até parecia saída de cartão do Monopólio.
- Mas de quanto é que era a dívida? – retornou à carga.
- Porque é que quer saber? Não lhe disse já que o assunto estava encerrado? O seu processo está limpinho. Não é um alívio saber isso? – decidiu o funcionário com algum pouco à vontade.
- Não senhor, da minha dívida quero saber eu. Não quero que me venham mais tarde atirar à cara que me pagaram o que eu devia ser eu a pagar – afirmou, com ar decidido. – Perdi dois dias de trabalho para tratar deste assunto. Quero saber quanto era – repisou.
- Um cêntimo – retorquiu-lhe ele.
sexta-feira, janeiro 28, 2005
Amor-ódio
Todos os homens da minha família, pelo menos aqueles que conheço, têm uma relação de amor-ódio com a cama. Gostam dela para dormir, ainda mais para outras coisas que se faz quando não se dorme, se bem que há quem faça a dormir, quem sou eu para andar aqui a criticar seja quem for acerca dos seus hábitos na cama, agora mudar os lençóis, fronhas, que raio de palavra esta, fronhas, dá mesmo a ideia de uma coisa de maus fígados, Deus me livre de uma fronha assanhada, salve-se quem puder que vem aí a fronha, sabe-se lá o que não é capaz de fazer, e isto de pôr e tirar cobertores, edredões, seja o que for, só muito a custo e com grande sacrifício, fazer a cama todos os dias é uma tortura, nem que seja só para lhe puxar as pontas, que nisto de pontas estão bem mais à vontade noutras circunstâncias.
Acho que não sou excepção, pelo menos até agora, quem sabe se isto não muda com a idade, estou para ver, mas tenho cá as minhas suspeitas que não, que até refina, e de que maneira, burro velho não aprende línguas, pois está visto, de que serve a um burro aprender línguas, seja ele velho ou novo, o mais que faz é zurrar, gostava mesmo que me mostrassem um burro que aprendeu alguma língua, especialmente quem inventou o dito, que era para ver se tinha algum motivo para justificar tal asserção, não é que também tenha alguma relação de amor-ódio com os burros, e se tivesse não era nada demais, que viesse o primeiro ou a primeira atirar uma pedra, que há quem tenha a mania de atirar pedras, já quando era criança levei com uma na cabeça e ia tirando um olho ao energúmeno que a atirou, vá lá que ainda me refreei a tempo senão o desgraçado agora via de um olho só, nisto de nervos às vezes uma pessoa não se consegue conter e depois é que são elas.
Agora tirar lençóis, pôr lençóis, esticar cobertores e edredões, tirar e colocar fronhas, ma que raio de palavra, também gostava de ser apresentado ao indivíduo que meteu tal vocábulo no português, que era para lhe ver a fronha, se calhar tinha-a como a das almofadas e para não parecer estranho meteu a cara em cima da dita e afirmou aqui está a minha fronha, é minha e ninguém tem nada a ver com isso, puxar daqui e dacolá, estica, estica, levanta e prende num canto, prende no outro, volta a levantar, estica do outro lado, está mais para um lado do que para o outro, e tem que ficar ao meio, centrado, aqui vai haver jogos muito importantes, por isso as marcações têm que estar bem feitas, senão os jogadores perdem-se no campo e às tantas por tantas estão fora de jogo, e isso não pode ser, que a coisa tem que durar até ao apito final, salvo seja, que não estou a ver muito bem alguém a apitar, ele é mais barulhos de outro tipo, mas há gente para tudo, sabe-se lá o que as pessoas não são capazes de inventar quando estão mesmo de alma e coração e metidos no assunto até às orelhas, salve-se quem puder que isto está assim a ficar um bocado esquisito, agora já mete orelhas e tudo, já me perdi mais uma vez, ora bolas, dizia eu que puxa daqui e estica dali só se for pastilha elástica e não é coisa de que goste lá muito, mas isso fica para outra ocasião.
Perguntas de viagem
Será que vemos para o outro lado dos vidros como se fosse
uma fotografia antiga? Será que vemos os outros como sombras
de um passado ou de um presente? Será que aqueles que encontrámos
são meras imagens esbatidas pela memória? Será que aqueles que partem
nem reparam naqueles que ficam? Será que as portas abertas apenas abrem
para janelas fechadas? Será que há quem parta e quem fique?
Ou será então que nem vemos aqueles que deixamos,
ou que nem queremos ver? E que nada mais somos
do que reflexos numa fotografia a preto e branco e a cor?
quinta-feira, janeiro 27, 2005
Figuras tradicionais 1: o padeiro
...não é como os do banco que andam a mexer na massa que não é massa e que ainda por cima não é deles...
O senhor António é padeiro, bem, padeiro, padeiro, acho que não é exacto, é mais um distribuidor de pão, que padeiro mesmo só conheço aqueles que a gente vê no supermercado por detrás dos vidros e que despejam o pão de vez em quando nos cestos onde toda a gente mete as mãos para ver se estão moles e depois deixa-os ficar para ali até que algum distraído, de tanto aperto que os pães levaram, pensa que são frescos e vai com os pães todo contente debaixo do braço, padeiros são aqueles que metem a mão na massa, literalmente, não é como os do banco que andam a mexer na massa que não é massa e que ainda por cima não é deles, e que se dão ares de importante, como se fossem grandes padeiros, quando uma pessoa lá vai cheia de boa vontade levar-lhes mais massa para mexerem, não é que tenha grande experiência num e noutro caso, não ando nem por sombras nesses ramos de actividade, mas se andasse também não era nada que alguém tivesse a censurar, pois o senhor António de segunda a sexta anda por aqui a deixar o pão pelas casas das pessoas, ao sábado lá vem recolher o dinheiro, faz as contas de cabeça e não se engana, se calhar engana-se e a gente é que paga a mais, que quando ele cá vem a casa ainda estou meio a dormir, sei lá se são três euros e meio ou quatro ou quatro e meio ou cinco, uma pessoa quer é voltar para a cama, vai-se lá agora pensar em trocos, mas lá que faz as contas, isso faz.
O senhor António é padeiro, mas parece que também é agricultor, de vez em quando aparece com sacos de batatas, molhos de grelos, tomates, cenouras, só lhe falta vestir-se de cozinheiro e trazer a salada pronta que dava menos trabalho, pelo menos parece que é agricultor, que nunca o vi de enxada na mão, também não me pus a espreitar para a carrinha a ver se lá estava, se calhar até estava, que se alguém lhe vai roubar o pão dava-lhe com ela, o pior depois eram as consequências.
O senhor António é padeiro, mas também o senhor Laurentino, andam os dois com carrinhas aqui pelas redondezas, ambas de cor branca, não sei como é que ainda não se enganaram e não trocaram de carrinhas, um mete-se lá dentro e zum, quando dá por ela, olha, esta não é a minha carrinha, tenho mas é a impressão de que não se podem ver um ao outro, afinal são da concorrência, os meus fregueses não levas tu, senão furo-te os pneus, o pior é se se enganam mesmo a furar os pneus porque as carrinhas são realmente parecidas, qualquer dia armam aqui um chinfrim e pegam-se os dois, está-se mesmo a ver, acho que já há apostas feitas e tudo, foi o que ouvi pela vizinhança, ganha o António, não, ganha o Laurentino, mais dia menos dia há zaragata pela certa.
O senhor António é padeiro mas também vende leite, também deve ter vacas, há quem o trate por leiteiro, mas a minha experiência de jogar às cartas diz-me que leiteiro é aquele que tem sorte ao jogo, e eu nunca vi o senhor António andar por aí a jogar às cartas, se calhar até anda, eu é que ainda não vi, como sou distraído não reparo, quando se demora mais em casa da professora Manuela deve ser para jogar às cartas, agora que penso nisso é porque deve ser, afinal o homem é mesmo batoteiro, lá tenho que fazer um sacrifício e estar com atenção às contas.
quarta-feira, janeiro 26, 2005
Um gato choné
...devem ser portugueses os gatos, olá se devem, ficam sempre de pé atrás...
Conheço um gato que é completamente choné. Choné desde o nariz até à ponta do rabo. Fui-lhe introduzido aqui na escada do prédio onde moro, numa das suas ocasionais visitas ao patamar onde fica a minha porta, creio que andava escapado, ou apenas a alargar os horizontes, que a vida de um gato doméstico, por melhor vontade que se tenha, não é propriamente um mar de rosas, esta é boa, mar de rosas, nunca ouvi falar de mar de cravos, de mar de jasmins, de mar de amores perfeitos, neste último é que não me importava de navegar, ou ir por ele fora até aos confins do mundo, mas lá que é discriminação em relação às outras flores de certeza que é, nem as flores se livram desse problema, o melhor é apresentar queixa à associação anti-discriminação, que deve haver alguma, não é, hoje em dia há associações para tudo, até para os ateus, não consigo perceber porquê, se uma pessoa é ateia isso é lá com ela, não tem que andar para aí a fazer campanha eleitoral, já basta as que há, agora mesmo andamos a levar com uma nos ouvidos, e se não houver inventa-se, depois se calhar ainda querem que se vote, cruzinha X nos ateus, mais abaixo nos incrédulos, mais abaixo ainda nos cépticos, se não acreditamos então porque é que vamos acreditar nos outros que se querem associar, o melhor é desconfiar, nisto os portugueses dão cartas, andam sempre de olho gordo no parceiro do lado, não vá ele por bom caminho e me deixe para trás, que ficar para trás ninguém gosta.
O gato é choné mas é simpático, dá a pata, aceita umas festinhas, se bem que com alguma desconfiança, também nunca vi gato que confiasse inteiramente fosse em quem fosse, devem ser portugueses os gatos, olá se devem, ficam sempre de pé atrás, o melhor é dizer pata, também não quero que me acusem de meter os pés pelas patas, salvo seja, que eu cá patas, ou patos, não pretendo ser sexista, gosto de as ver a nadar nas águas dos lagos, dos rios, já comer isso não, mas há quem goste, só peço a esses é que não mas impinjam, se faz favor.
Nem sei quem são os donos do gato. Acho que nem quero saber. Tenho cá para mim que não se pode confiar mesmo nada em quem dá o nome de Choné a um gato, que diabo, choné?, que raio de nome, desgraçado do bicho, ainda nem sabe da vida e já é choné, quem lhe pôs o nome é que devia ser choné, o que quer que seja que isso é, mais uma cacofonia a acrescentar à lista, pronto, já aqui ficou registado, por isso podem passar à frente, adiante, os meus gatos, quando os tive, tinham nomes mais simpáticos, pouco imaginativos, decerto, mas decerto mais simpáticos, com personagens da Disney, Mickey, Bambi, era o que líamos na altura, para além de outras coisas, mas gostávamos e éramos pequeninos, sempre era mais agradável chamar Bambi, Bambi, Mickey, Mickey, do que andar para aí aos gritos choné, choné, olha que bem que fica aquela senhora ali a gritar choné, será que está a falar com o padeiro, ou é a porteira que não lhe agrada, coitada da mulher, anda aí escada acima, escada abaixo o dia inteiro e ainda ouve choné, choné, deve é pensar com os seus botões choné és tu, não querem lá ver, que nunca dei confiança a esta gente para me insultar desta maneira.
terça-feira, janeiro 25, 2005
Aviso à navegação e um pedido de desculpas
C
aros utentes deste blogue, as minhas desculpas. Como introduzi os comentários através do Haloscan, os comentários existentes foram à vida, que o mesmo é dizer não sei aonde foram, que na vidinha dos comentários é que não me meto. Devem ter ido de viagem, sei lá, às Caraíbas, a São Tomé, aos Bijagós, mas para longe foram, de certezinha absoluta, que não lhes pus mais a vista em cima.
Portanto, faxafor de comentarem de novo. Agradecido. Com desculpas.
Jantar com famosos
...qualquer dia ainda abrem para aí um restaurante medieval e uma pessoa vai lá para comer com as mãos...
Jantar com gente famosa não é coisa que recomende. Francamente que não. Vai-se pela rua a meio de uma conversa e zás, estás bom, pá, já sei que andas todo inchado, com o nome nos jornais e tudo, pois é, não é que me gabe, mas é verdade, está uma pessoa para entrar no restaurante e pimba, sai de lá mais um rol de conhecidos, conversa daqui, conversa dali, e uma pessoa a olhar para outro lado e a assobiar para o alto, que é como quem diz, que assobiar em público é má educação, pelo menos foi o que me ensinaram, por isso este assobio veio assim a jeito de bucha de escrita, salvo seja, que não queria aqui o bucha para nada, e muito menos o estica, a menina que estava à porta a encaminhar os clientes até levou com um arigatô, está-se mesmo a ver que era um restaurante japonês, se não fosse não tinha vindo a propósito o arigatô, ficou-se a rir para ele, e ainda mais se riu quando não havia maneira de nos sentarmos e ele se pôs a apontar para o estômago dilatado que já pedia maior dilatação e não havia maneira de isso acontecer, como nos partos complicados, não é que seja especialista em partos complicados, mas imagino que os partos, se são complicados, é porque a coisa se torna demorada, nem sei bem porque é que me lembrei aqui dos partos, deve ter sido de falar em dilatações, se calhar um dia que me ponha a escrever sobre as propriedades dos metais também me vou lembrar de partos, que raio de coisa, que associações mais parvas é que me dá para fazer, enfim, adiante, lá nos sentámos e começámos a comer, comer propriamente não foi bem o caso, que a comida ia e vinha, ia e vinha, e os comensais que estavam antes de nós levavam quase tudo, comensais não é bem o termo, comilões será mas exacto, ou antes comilonas, que também as havia e deitavam-lhe bem o garfo, aqui espalhei-me também porque não havia garfos, eram só pauzinhos, lá nos ajeitamos todos a comer com aquilo que nos dão, que remédio, qualquer dia ainda abrem para aí um restaurante medieval e uma pessoa vai lá para comer com as mãos e limpá-las ao pêlo dos cães em vez dos guardanapos, olhem que se isto dá na moda não sei onde é que vamos parar, anda uma civilização a evoluir, a inventar guardanapos, facas, garfos, e depois metem-nos a comer com pauzinhos, mas uma pessoa lá se vai ajeitando, e pãozinho, então nem vê-lo, é mania dos orientais, dizem que o pão deles é o arroz, que diabo, para mim pão é pão e arroz é arroz, que ainda se diz para aí eu dou-te o arroz, que o mesmo é dizer castigar, que eu saiba não se diz eu dou-te o pão, também era melhor, que um pãozinho vem sempre a calhar enquanto que um arroz nem por isso, dá mais jeito quando estamos com a tripa um nadinha para o avariado, se bem que nessas alturas um pãozinho torrado também não calha nada mal.
Já me perdi outra vez, mas também não faz mal, ah, já sei, falava de ir jantar com pessoas famosas, pois é, mas o jantar acabou e fomos todos para casa, o que é outra história.
segunda-feira, janeiro 24, 2005
Os meninos
O
menino Pedrinho e o menino Zézinho desde há muito que andam engalfinhados. Se não me falha a memória, já havia histórias de vizinhos à mistura, clubes de amigos, e a mercearia do senhor Jorge, um benemérito que de quando em vez ajudava famílias mais pobres com uns cabazes de artigos de primeira necessidade, já tinha sofrido na pele uma montra partida, e mercadorias espalhadas pelo passeio, que nestas coisas de zangas é ver quem leva a melhor, nem que seja à custa de umas bananas esparramadas, se escorregas e cais partes o toutiço, que eu fico aqui a ver e a rir-me à socapa.
Quando o primo do menino Pedrinho foi a banhos lá para um sítio que não sei bem ao certo onde fica, mas de certeza que tinha praias, senão não se falava nisso, veio logo o menino Zézinho contar à família toda que ir a banhos no inverno não era coisa que se fizesse, ainda por cima se ele não podia ir também, ficava-se para ali a roer-se todo, estava-se mesmo a ver que o menino Pedrinho depois ia fazer-lhe negaças, não vais à praia, não vais à praia, se calhar nem sabes nadar, iô, nem sei porque meti aqui este iô, deve ser alguma influência subreptícia que de vez em quando se instala no subconsciente, eu tenho dinheiro para ir à praia e tu não, levam-me de avião, levam-me de barco, o meu amigo Paulinho até se ofereceu para me levar de submarino, e tu nicles, nem sequer vais de autocarro à Costa da Caparica, que só sabes é andar de Metro e o Metro não chega à Costa da Caparica, que eu não quero, e pronto.
A vizinhança já anda farta desta lenga-lenga entre o menino Pedrinho e o menino Zézinho, qualquer dia pegam-lhes pelos fundilhos e aplicam-lhes um correctivo, um bom puxão de orelhas, um pontapé no traseiro, até dão má fama a quem vem de fora, olh’ali os dois catraios a abespinharem-se, até parece que querem ser gente, vai um e diz fizeste o trabalho de casa ao Filipe, ganda batoteiro, não fiz, não senhor, quem lhe fez o trabalho de casa foi o primo da tua avó, o que tu estás é ceguinho, vai lá ver de quem é a letra, se é minha ou se é tua, ou do primo da tua avó.
Se o menino Zézinho se deixava de discussões, lá vinha o menino Pedrinho, não queres discutir porquê, estás com medo, é, o que tu tens é medo, depois vê lá se tens lata de vir para aí dizer que eu é que tenho, ganda lata, que eu te ponho com dono, levas uma ensaboadela que até ficas com a cabeça a andar à roda. Eu francamente nunca vi uma ensaboadela de ficar com a cabeça a andar à roda, só se for algum champô especial, com algum produto esquisito, que hoje em dia os produtos andam todos com produtos esquisitos, vai uma pessoa muito bem ao supermercado, na sua boa vontade e necessidade, compra o produto a ou b e, na volta, pimba, já está contaminada com isto e com aquilo, cá para mim nem é preciso ir na volta, fica-se logo, deviam era pôr uns rótulos nos produtos a avisar logo, se tem desejo de ser contaminado, compre-nos este produto, o que mais e melhor contamina rapidamente, ao menos assim ficava tudo esclarecido, se bem que a maior parte das pessoas nem se dá ao trabalho de ler as instruções, também só fazem aquilo para quem vê bem, para ceguetas como eu só com lupa, se calhar nem assim, deviam era oferecer lupas para se ver melhor, aí já não havia grandes desculpas, levaste uma lupa de borla, se não leste foi porque não quiseste, afinal a lupa era para quê, ias andar à caça dos ácaros?
Pois bem, já se chegou à conclusão que o menino Pedrinho e o menino Zézinho não se entendem nem à lei da bala, gostava de saber qual é esta lei, qualquer dia marco uma consulta com um advogado para ver se me explicam, que se escrever a um deputado o que levo é sopa, nada, nadica de nada, nicles, vai fazendo cruzes na boca enquanto esperas pela resposta, mas a esperança é a última coisa a morrer, pelo menos é o que dizem, que eu já conheci uma Esperança que morreu, por isso deve haver alguma falha neste raciocínio, mas enfim, lá entre eles aquilo é um bate-e-foge todos os dias, à noite ainda é pior, não fazem mais nada senão aquilo, agora eu, agora tu, bola de cá, bola de lá, e não aparece ninguém com o juízo inteiro que os meta na ordem, bem que podemos esperar sentados, que gente com juízo de certeza que não se mete com aqueles dois, ai que se às tantas me ponho a escrever mais sobre meninos ainda me levam para o tribunal de Santa Clara.
Ao lado de lá
São tão frágeis, estas tábuas que tenho
que atravessar até ao outro lado da vida,
ondas de madeira que oscilam aos meus passos
sempre que nelas arrisco um pouco, sem saber
ao certo se chegarei algum dia ao lado de lá.
Estão pregadas com ferros, os escolhos em que
irei tropeçar, que ali estão para isso mesmo,
para outra coisa não servem,
e os bancos que ao fundo nos olham
prometem um descanso que não virá nunca,
a vida não foi feita para descansos,
são janelas e portas fechadas que tudo prometem
como as palavras de um livro fechado.
domingo, janeiro 23, 2005
En français, s.v.p.
Le dimanche, un jour comme les autres, pourrait-on dire. C’est pas vrai, il y a des jours et il y a des dimanches, il y a des lundis, des mardis, etcetera, et il y a des dimanches. Les insaisissables dimanches. Le jour après le samedi, le jour d’aller à la messe, d’aller au cinéma, d’aller aux jardins avec les gosses, les tours tristes à la campagne, le tour des tristes à la campagne, le cuprinol à les vieux meubles (ça, c’est mon affaire), la veille des lundis.
On a pas des amis au dimanche, on ne les vois pas. Au dimanche, les amis vont dans quelque part où on ne les vois pas. Ils se cachent. Peut-être avec le bon Dieu dans la messe. C’est le jour de demander du pardon par le samedi, par les excès du week-end. C’est pas facile, de demander du pardon. Où est-ce qu’on va pour demander du pardon? Certainement pas chez les amis. On peut les chercher mais on ne les trouve jamais. On les a perdus au samedi, et on ne les revoie qu’au vendredi prochain, avec un peu de chance.
Il y a ceux qu’achètent le pardon. Et ceux qui le vend. Il y a un carrefour des pardons. C’est un bon affaire, celui-là. Mais je me demande pourquoi les vieux achètent plus des pardons que les jeunes. Que font-ils pour acheter et acheter et acheter des pardons? C’est peut-être le vice, ils ont le vice des pardons. Le carrefour des pardons est plein de vieux. Ils ne font que pêcher.
sexta-feira, janeiro 21, 2005
Desgraças de uma personagem
A Maria de Lurdes era pessimista por natureza, além de ter a mania das doenças, se lhe doía um calo, pronto, era cancro de certeza, se dormia mal a noite era uma veia na cabeça que estava prestes, prestes a rebentar, colava-se na rua a quem quer que a conhecesse e tivesse o azar de lhe sair ao caminho, dói-me aqui, dói-me ali, já fui ao médico, fiz análises, radiografias, ecografias, não consegui dar com o problema, tenho um táque marcado para a semana, não sei o que hei-de fazer que de manhã à noite a impressão não me larga, deve ser coisa grave senão o senhor doutor não me mandava fazer um táque, que há-de ser de mim e das crianças se eu morrer, ficam para aí desgraçadas, o José então nem sei, coitado, com tanto trabalho e ainda as crianças para cuidar, para levar à escola, vesti-las e dar-lhes de comer logo de manhã, fazer o jantar, dar-lhes banho, pô-las a dormir à noite, lá terá que arranjar outra, que sozinho não vai conseguir, e a outra a ouvir aquilo tudo, que não, que não havia de ser nada, era só uma impressão, isso passa, deve ser do tempo, está muito frio, muito húmido, muito calor, consoante a época uma pessoa tem que ir variando as justificações para se enquadrar no problema.
Mas ela dava-lhe:
- Isto está tudo muito mau, já não tenho dinheiro para comida e para a renda, que só aí a caixa leva-nos o ordenado quase todo, aquilo são uns comilões, e se não pagamos metem-nos na rua com os tarecos todos, para onde é que vamos viver isso não sei, não sobra nada para os remédios, as radiografias, as análises, os táques, eles só sabem é dar dinheiro aos amigos, arranjar emprego para os parentes, não é gente séria, não senhor, roubam-nos os tostões todos, agora já não é tostões, é cêntimos, que saudades que eu tenho dos escudos, dos centavos, dos contos de réis que nunca chegavam a descansar na gaveta, era um vê-se-te-avias que a meio do mês já só pedia fiado na mercearia ali do senhor Pinto, agora ainda é pior, que ele meteu lá um aviso se queres fiado, toma, com um homem a fazer um manguito para a gente, também já não há respeito, veja lá a comadre.
E continuava o rol:
- Não sei onde é que isto vai parar, a vida tão cara, no Natal comprei tudo na loja dos trezentos e nos chineses, mesmo assim ficou lá o subsídio de Natal quase todo, o bacalhau cada vez mais caro, ainda por cima dizem que qualquer dia já não há, o que é que a gente há-de comer, não me diz a comadre, o bacalhau agora é só para os ricos, esses é que sabem levá-la toda, e para os pobres ficam as doenças, estou mesmo cheia de impressões, deve ser a tal da gripe, ainda por cima mais esta a juntar às desgraças todas, nas notícias só dizem que já não podemos comer nada, nem frangos, nem porco, nem trutas, carne de vaca nem vale a pena pensar nela que a gente não lhe chega, eu gostava era de ganhar o totoloto, o José joga todas as semanas, eu até de vez em quando vou às raspadinhas, não sei para quê, ando para aqui a enganar-me, que aquilo só sai aos outros, e então à Misericórdia sai todas as semanas, naquelas raspadinhas ainda têm a lata de dizer tente outra vez, que falta de vergonha, a gente vai lá a raspa e nada, vai lá e raspa, nada, e mandam-nos tentar outra vez, como se a gente não fizesse outra coisa senão tentar, mas sei que nunca me vai sair nada porque não tenho nenhuma sorte ao jogo, nem sequer aos amores, nem isso, que há semanas que o José nem me vê, chega, fica para ali no sofá a ver a televisão, senta-se à mesa calado e sai ainda mais calado, se não fossem as crianças até parece que vivo numa casa de mudos, veja só que desgraça de vida a minha, a sonhar com actores de cinema americanos e a raspar os cartões da Santa Casa, a minha é que não é santa, não senhora, eu lá vou tentando que ela esteja limpinha, o pior são os miúdos que sujam tudo, todos os dias é porcaria pelo chão, eu a varrer, a lavar, a loiça, a roupa, a casa de banho, nasce uma pessoa para isto, se me dissessem quando era pequenina que estava fadada para esta desgraça se calhar nem acreditava, mas também qualquer dia caio para o lado e pronto, era uma vez a Maria de Lurdes.
quinta-feira, janeiro 20, 2005
Incompatibilidades
Eu e o telemóvel temos algumas incompatibilidades. Não é que ache que se trate de um instrumento inútil, sempre a intrometer-se na vida e nas conversas das pessoas, mas não anda longe disso, pelo menos neste último caso, está uma pessoa a meio de uma conversa com outra, trrim, eu sei que agora já não é trrim, que ligam directamente aos cantos polifónicos dos monges de são bento, mas pronto, faz de conta que é trrim, dá mais jeito agora, é mais curto, mais maneirinho, dizer apenas trrim, está?, fica a conversa a meio, as palavras ficam perdidas e depois já não há maneira de darem com o caminho, nem umas migalhinhas ficaram, como na história da Casinha de Chocolate, Hanzel und Gretel no original, que há que respeitar as origens das histórias e os direitos de autor, pelo menos quando convém, fico sempre irritado quando isto acontece, deixa-se uma pessoa de cara à banda, seja lá o que isto quer dizer, a olhar para a outra que está com o telemóvel pendurado da orelha, para brinco é um tudo-nada grande demais, mas enfim, da cara de parvo já não me livro, agora ponho-me a olhar para a parede ou para outro lado qualquer, e quando o tal de telefonema é dado por findo não há meio de retomar o fio à meada, o instante da conversa perdeu-se, mudou de casa, emigrou para o estrangeiro, não há nada a fazer, nem contratando um detective, desses que andam por aí a espiar as mulheres e os maridos e até fazem publicidade nos jornais, muito embora seja tudo ilegal, neste país ainda é uma actividade ilícita, e ainda bem, senão andava meio mundo a espiolhar a vida da outra metade, já chega de espiolhanço o que as novas tecnologias vieram trazer, vais aqui ou acolá, levantas dinheiro com o cartão e pimba, já te marcaram o rumo, traçam-te a vida toda pelos cartões, pela Via Verde, amarela, encarnada, por todas as cores e mais alguma, desta já não nos livramos.
Dizia eu que o telemóvel e eu temos algumas incompatibilidades, é verdade, esqueço-me de o ligar dias a fio, semanas inteiras, não sou como aqueles que até de noite o deixam por ali à mão de semear, se bem que não sei o que vão semear durante a noite, só se forem sonhos, que esses semeamo-los todos os dias para ver se crescem, deixam-me recados e não os ouço, no outro dia até era uma coisa urgente, um encontro marcado, de trabalho, entenda-se, não liguei o telemóvel e fiquei para ali à espera, só ao fim de uma hora me lembrei de o ligar, lá estava a mensagem, não vou poder ir, senti-me mal hoje de manhã, vou à consulta e tudo, telefona-me para combinarmos outro dia, já estava o caldo entornado, pronto, uma manhã para nada, agora tenho que ir fazer horas para qualquer lado até começar o trabalho, aproveito e vou às compras, vou, não vou, acabei por ir, sempre tiveram algum préstimo, afinal, aquelas horas de permeio, mas as horas de sono essas já ninguém mas devolve, devem achar que uma pessoa está sempre à espera que lhe telefonem, eu cá não, também não estou atrás da porta sempre que me tocam à campainha, nisso os correios são especialistas, não atendes logo e zás, quando vais ver quem é já se puseram na alheta, eis mais outra expressão daquelas que despertam a curiosidade, afinal o que é a alheta, deve ficar tão escondida que nem se sabe onde é, senão ia lá ver se lá estava quem para lá foi, depois fica o avisozito na caixa do correio, mais uma hora perdida na bicha do correio para levantar a encomenda, pagar o aviso, o que quer que seja que as pessoas se lembram de enviar pelo correio, esta frase está cheia de ques, bolas, mais uma cacofonia que me saiu.
quarta-feira, janeiro 19, 2005
Coisas que nos assustam
Há cada medo estranho que até tenho medo de os nomear. Com muito esforço da minha parte, depois de já ter marcado consulta no psiquiatra para ver se ultrapasso este negócio de ter medo de nomear os medos, aqui fica uma lista resumida. Francamente, de todos eles apenas compreendo perfeitamente os desgraçados que sofrem de singenesofobia. Quem quiser saber o que é, que procure na lista abaixo. Está ordenada alfabeticamente, por isso mesmo os mais preguiçosos e preguiçosas podem dar facilmente com ela. E se não gostarem não me venham cá com ameaças, que já estou a tremer de medo mesmo assim.
Alodoxafobia - Medo de opiniões.
Anablepobia - Medo de procurar.
Anuptafobia - Medo de ficar solteiro.
Araquibutirofobia - Medo de que a manteiga de amendoim fique presa ao céu da boca.
Aritmofobia - Medo de números.
Asimetrifobia - Medo de tudo o que seja assimétrico.
Aulofobia - Medo de flautas.
Autodisomofobia - Medo de pessoas que cheirem mal.
Automisofobia - Medo de estar sujo.
Barofobia - Medo da gravidade.
Bibliofobia - Medo de livros.
Blenofobia - Medo de coisas peganhentas.
Caliginefobia - Medo de mulheres bonitas.
Carnofobia - Medo de carne.
Catisofobia - Medo de estar sentado.
Clinofobia - Medo de ir para a cama.
Coprastasofobia - Medo de ficar constipado.
Cronomentrofobia - Medo de relógios.
Deipnofobia - Medo de jantar ou de conversas durante ou depois do jantar.
Dextrofobia - Medo de qualquer objecto colocado do lado direito do corpo.
Epistemofobia - Medo do conhecimento.
Filosofobia - Medo da filosofia.
Geniofobia - Medo de queixos.
Genufobia - Medo de joelhos.
Hagiofobia - Medo de santos ou de coisas sagradas.
Hierofobia - Medo de padres e objectos sagrados.
Hipopotomonstrosesquipedaliofobia - Medo de palavras compridas.
Ictiofobia - Medo de peixe.
Itifalofobia - Medo de ver, de pensar ou de ter o pénis erecto.
Koinonifobia - Medo de quartos.
Lacanofobia - Medo de vegetais.
Levofobia - Medo de coisas do lado esquerdo do corpo.
Logofobia - Medo de palavras.
Macrofobia - Medo de esperas demoradas.
Megalofobia - Medo de coisas grandes.
Melanofobia- Medo da cor preta.
Melofobia - Medo ou ódio à música.
Menofobia - Medo da menstruação.
Metrofobia - Medo ou ódio à poesia.
Mitofobia - Medo de mitos ou histórias ou argumentos falsos.
Nomatofobia - Medo de nomes.
Numerofobia - Medo de números.
Octofobia - Medo do número 8.
Oftalmofobia - Medo de ser olhado.
Ostraconofobia - Medo de mariscos com concha.
Ouranofobia - Medo do céu.
Peladofobia - Medo de pessoas carecas.
Plutofobia - Medo da riqueza.
Polifobia - Medo de tudo e mais alguma coisa.
Proctofobia - Medo do recto.
Querofobia - Medo da alegria.
Ripofobia - Medo de defecar.
Scriptofobia - Medo de escrever em público.
Sesquipedalofobia - Medo de palavras compridas.
Singenesofobia - Medo dos parentes.
Sofofobia - Medo de aprender.
Taasofobia - Medo de se sentar.
Urofobia - Medo da urina ou de urinar.
Venustrafobia - Medo de mulheres bonitas.
Xantofobia - Medo da cor amarela ou da palavra amarelo.
O mal-cozinhado
Eu na cozinha sou um desastre. É ver-me lá entrar e as panelas começam aos gritos, os talheres fogem a sete pés, escorregam para debaixo dos armários, o fogão todo ele entra em convulsões, tosse, espirra, fica com catarro para o resto do dia, a batedeira tremelica, a máquina de café fica com mau humor e resolve entrar em greve, a torradeira olha-me de lado, assim como não quer a coisa, a avisar se mexes aqui levas um esticão que até vês as estrelas, o frigorífico começa a transpirar, o que, no caso dos frigoríficos não é lá nada saudável, os balcões encolhem-se todos, ficam mais baixos, quase me tenho de pôr de cócoras para fazer alguma coisa, nem que seja cortar o pão, além disso fico mais longe da pia, às tantas fica tão longe que até dá a sensação de ser uma miragem.
Mas o pior de tudo, o pior mesmo, é o acendedor do fogão. No outro dia ia deitando fogo à casa. Mal pego no raio do bicho, deitou-me a unha, deu-me uma dentada no dedo mínimo, ia-me arrancando a pele toda, depois enfiou-se-me pela camisa dentro e não descansou até me deixar todo esfolado. Fiquei varado. Agarrei-o com as duas mãos, preguei-lhe um sermão, mas qual quê, não me fez ouvidos, começou a deitar faíscas por todos os lados e desatou aos guinchos, que o queria assassinar. Querer, queria mesmo. Tinha era medo das consequências. Depois vinha o resto da família dos acendedores, os primos, o cunhado, a tia, eu sei lá, pregavam-me uma sova das antigas, a coisa ainda alastrava aos fósforos e aos isqueiros, nunca mais fumava um cigarro na vida, só de pensar nisso arrepio-me todo, de maneira que lá o acalmei, arranjei-lhe uma bolsinha toda catita, de veludo cotelé, bordeau, dei-lhe todas as garantias, até a minha palavra, de que se apanhasse uma constipação o levava ao médico dos acendedores, que lhe fazia um seguro de vida, com todos os extras, e um seguro de saúde, não me ia sair barato, mas mais valia. E lá se acalmou, acomodou-se na sua bolsinha, ainda meio a choramingar, pelo menos a guincharia tinha acabado e as faíscas também.
Se quero fazer uns ovos mexidos, saem escalfados, se quero fritar um bife, fica grelhado, se quero grelhar acaba estufado, batatas fritas, então, nem pensar, metem-se todas aos pulos na frigideira, dançam o baile furado que nem umas doidas, metade vai parar ao chão, depois piso naquilo tudo, escorrego, dou um trambolhão, ao óleo ou azeite ou que raio é dá-lhe a gripe das aves, espirra por todo o lado, dou por mim cheio de bolhas nas mãos, pareço que tenho icterícia, e no fim aquilo fica tudo esturricado, se calhar devia era arranjar emprego numa incineradora.
Bela desculpa, é ou não é?
terça-feira, janeiro 18, 2005
Manias da vizinhança
Ter vizinhos famosos tem os seus inconvenientes. Eu que o diga, que passei uma boa parte do fim de semana, entre os meus outros afazeres, a que já me referi antes, a atender uma data de gente que me batia à porta a perguntar-me onde é que morava o tal senhor Precision, que eu nisto de precisões só quando estou aflito para ir à casa de banho, o pior é quando nos dá a vontade e vamos a meio de uma viagem, por exemplo, ou nos encontramos a meio de uma reunião importante, e nisto vai-se ficando verde, amarelo, azul, as cores que se dá a uma pessoa quando queremos dizer qualquer coisa acerca dela, verde de inveja, azul de ciúme, vermelho de raiva, roxo de morto, então nesta coisa de aflições nem vos digo nem vos conto.
Pois esse tal senhor em vez de dizer às pessoas que não estava em casa, que tinha o jornal para ler ou que não lhe apetecia mesmo nada aturar aquela gente toda que lhe andou a rondar a porta, não senhor, veio aqui meio mundo enfiar-me o dedo na campainha, salvo seja, se o tal senhor das precisões ficava no terceiro ou no quarto, aqui é que não era, não senhora, lá tive que andar armado em balcão das informações o dia inteiro, nem de noite a coisa amainou, e ainda por cima começou logo de manhã, eu que gosto de me levantar tarde, bimba, bimba na campainha, precisões não é comigo, já estou servido, obrigado, veja lá para onde é que toca que aqui mora gente séria que não anda enfiada a mexer no lixo dos ordenados dos outros, do meu sei eu, das precisões dos outros não sei nada e se têm dúvidas façam queixa na polícia que não tenho nada para esconder.
Parece que foram para acima de duas mil. Um rodopio. Espero que para a próxima o meu vizinho ponha os pontos nos is e esclareça logo que os aditamentos hão-de surgir lá mais para a frente, noutro dia da semana ou coisa assim, senão compro uma caçadeira e é um ver-se-te-avias a fazer pontaria aos chatos, que raio de palavra esta, os franceses têm uma mais gira, «émmerdeurs», está visto que é mesmo desta substância com que se fazem os excrementos lá para as terras da França, por cá é mais bichinhos pequeninos que se metem onde não se deviam meter, temos a mania dos bichinhos pequeninos, embora já tenha passado a dos micróbios, era micróbio para aqui, micróbio para acolá, não querem lá ver o micróbio que já quer parecer que é gente, mais outra palavra que entrou em desuso, até dá a ideia de que a língua portuguesa é assim tão rica que manda às urtigas uma data de palavras todos os anos, dia 25 entras tu em desuso, já estás no calendário, tem lá paciência, pode ser que um dia destes um picuinhas qualquer se lembre de ti e voltes ao activo.
Se não fosse isto da Internet e dos blogues, que uma pessoa pode ir coscuvilhar na vida dos outros mesmo estando sentada na sua casinha, era o que me tinha acontecido. Mas que mania a deste vizinho de meter o bedelho em todo o lado. Deve ser uma mania abichanada, sei lá, pelo menos é o que tenho lido de vez em quando lá nos comentários dos outros. E alguma razão terão. Pode bem ser que sim. E se for não é uma injustiça, não é uma injustiça, não é, não, está bem visto que não.
segunda-feira, janeiro 17, 2005
Filantropias
Ser benemérito tem que se lhe diga. Conheço um caso extremo, o senhor Alcides, que passa a vida inteira a dar donativos sempre que lhos pedem, não é capaz de resistir, boa alma como aquela não há muitas, não senhor, apesar da ingenuidade, vai o homem ao supermercado e pimba, lá estão duas meninas a pedir para o mundo amigo, para a associação dos raquíticos da reboleira, para os filantropos dos cidadãos com problemas de associativismo, para as amigas de são joão nepomuceno, os partidários do ateísmo crítico, a obra do padre antónio da damaia, as irmãs da solidariedade individualista, os insuficientes asmáticos, o grupo folclórico da fuzeta, a preservação do património por construir, uma panóplia de associações, organismos, fraternidades, instituições, indivíduos com esta ou aquela razão para andarem por aí a cravar o próximo, que nisto de pedinchinces o português sempre foi exímio em achar as mil e uma razões para se aproveitar da generosidade alheia.
Pois o senhor Alcides tem a casa cheia de bonecos de peluche, de porta-chaves, de bandeirinhas e estandartes, de revistas e publicações oriundas do país inteiro e arredores, porque tenho a impressão que a sua fama de doador ultrapassou fronteiras e passou a receber solicitações de além-fronteiras. Volta e meia lá vai ele com uns caixotes cheios destes produtos para os entregar a uma qualquer obra piedosa, das tantas que há por aí, e que mal lhes viram costas despejam os caixotes no lixo, sem ver sequer se há ali material que alegre umas crianças nem que seja por um pedaço do dia, que tantos são os que passam por vezes sem que um sorriso lhes aflore aos lábios.
E tem sempre a caixa de correio atulhada de papéis e publicações, sempre que chega a casa do trabalho praticamente não faz outra coisa senão ler aquilo tudo e passar um cheque para ali e outro para acolá, o banco já nem estranha os pedidos de livros de cheques, que são uns atrás dos outros, é mais uma despesa que lhe vai saindo do bolso, que os cheques também se pagam, ai se pagam, hoje em dia já não há nada de borla, por fim lá se decidiu por comprar uma daquelas cadernetas de cheques com não sei quantos, como se vê nas empresas e instituições oficiais, que era quase o caso do senhor Alcides, uma instituição de doações, embora particular.
O homem lá se ia arruinando aos poucos e poucos, a mulher estava pelos cabelos, os filhos ao menos já tinham saído de casa e nunca mais nas suas vidas deram nada a quem quer que fosse, só vendiam, vacinados estavam eles, herança não teriam, certamente, a não ser a boa alma do pai, se bem que pelo caminho que levavam o que me parece é que da herança genética nem o cheiro lhes calhava. Lá em casa as refeições eram mais do que frugais, o dinheiro não dava para tudo, todos os meses ia pingando aos poucos e poucos para os cravanços que lhe batiam à porta, por assim dizer, que também será exagero dizer que andavam sempre a rondar-lhe o domicílio, era por demais se assim fosse.
No outro dia finou-se. Tiveram que pedir emprestado para pagar-lhe o funeral e quem o acompanhou à última morada foram os familiares. Dos outros, os cravas, nem sinal. Ao menos que lhe oferecessem uma lápide. Mas nem isso. Que diabo!
domingo, janeiro 16, 2005
Sentimentos de aproximação a uma segunda-feira
Basquiat,
Molasses, 1983
Tarefas de domingo
Tarefas domésticas de domingo:
a) Desfazer a árvore de Natal e arrumar o resto das decorações da festividade.
Comentário: Que remédio. Se uma pessoa se mete a fazer árvores de Natal, não vai certamente deixá-las o ano inteiro, até vir a aranha das teias e encher-lhe a casa inteira das ditas, eu sei que devia ser até ao dia de Reis, mas como tenho assim uma tendência para a preguiça, lá se vai adiando mais um dia ou outro até ser praticamente inevitável, já acima disse que também não a vou deixar para ali sem mais nem menos até ao ano que vem. Tradição é tradição, já dizia o título do filme, embora em circunstâncias assim um tudo nada diferentes, que não sou paquistanês nem emigrante na Inglaterra, só se tiver sido noutra vida, e como não sou budista nem nada que se pareça vou dando cabo das formigas e dos mosquitos e das melgas e do resto dos bichos que me vão infernizando a vida.
b) Pegar nas mesinhas herdadas que estão na sala e enfiar-lhes cuprinol pelos buracos do caruncho abaixo com um seringa e depois embrulhar aquilo tudo em papel celofane e deixar os bichos a sufocarem durante três semanas.
Comentário: Na verdade há produtos com nomes bem interessantes. Se calhar quem deu o nome a este devia estar nalgum urinol a olhar para o traseiro do parceiro do lado, vá-se lá saber. Agora que tive que ir comprar seringas à farmácia, lá isso tive, e uma pessoa quando vai à farmácia comprar seringas até parece que a olham de lado, devem ser os tais de estigmas, que eu disso não sei nada, nunca me aparecerem buracos nas mãos nem nos pés nem à volta da cabeça, mas há quem diga que já os teve, já li coisas sobre isso, até vi filmes, portanto alguma razão hão-de ter, quem sou eu para desconfiar, já me chega ter sido olhado de lado na farmácia e ter que explicar que era para o caruncho, ainda tenho que lá voltar e levar com os olhares mais uma vez, que estas não chegaram, o bicho tinha-lhes dado bem, e agora ainda vou ter que passar outro dia qualquer, se calhar outro domingo, de seringa na mão a descobrir os buraquinhos todos, que isto de descobrir buracos dá muito trabalho e tem que se lhe diga; o papel celofane também era pouco, descobri pelo meio que não sou tão precavido como pensava, mas os buracos eram mais do que imaginava, parece que também nisto sou um tanto ou quanto ingénuo, já devia saber que os buracos são sempre mais do que aquilo que se pensa.
A minha imprevidência endémica fez-me esquecer de comprar luvas, de maneira que fiquei com os dedos todos negros, unhas principalmente, e já que estamos quase no Carnaval se calhar vou ficar assim até lá, já não terei que me disfarçar, quem me vir dirá logo ali vai um operário, um carpinteiro, um mecânico, eu que tenho cá uma jeitaça para essas coisas que se vê logo pela minha cara, olha aquele que tem mesmo ar de jeitoso para bricolage, o português não tem termo tão preciso como o francês, parece que esta língua afinal ainda tem margem para invenções.
Depois disto tudo ainda tenho uns textos para ler, uns posts para escrever, o tempo, quando queremos, estica mesmo, é tudo uma questão de acrescentar minutos onde as horas parece que não têm mais para dar.
sábado, janeiro 15, 2005
Improbabilidades
Não é provável. Não é mesmo nada provável. Vai uma pessoa a um restaurante chinês, corrijo, não é um restaurante, é uma marisqueira, pede-se os pratos, e a propósito a feijoada de gambas é mesmo boa, escolhe-se as bebidas, e quando vem a garrafa de vinho, a empregada, sorridente como habitualmente aparentam as chinesas, sai-se com um:
- O meu nome é Cristina, – assim, com o érre redondo mesmo, nada de éle – prova o vinho, faz favor, se não está bom eu levo, o meu nome é Cristina.
Diz-me o Luís, que é freguês cá da casa, que a Cristina é casada com um açoreano, um conterrâneo meu, não é coisa por demais extraordinária, embora rara, diga-se, que é dona da Marisqueira, do restaurante chinês mesmo ao lado e da loja do outro lado da marisqueira, têm dois filhos e vão passar férias várias vezes aos Açores, o Luís é assim mesmo, de tanto cá vir já sabe a vida daquela gente toda, ou quase, sabe da empregada que está por detrás do balcão que a aviar é uma máquina, do outro que está cá há apenas três meses, eu que me surpreendo com estas coisas porque posso ir há uma data de tempo aos mesmos sítios e não sei nada das pessoas, talvez seja uma tendência para andar distraído das outras vidas que a minha já me chega para me dar água pela barba, salvo seja, que presentemente não uso barba nem ando por aí a mergulhar em tudo o que seja sítio até ficar com a água pela dita.
Quando a Cristina surge novamente, metemos conversa, o Luís logo que eu também sou dos Açores, tal como o marido dela.
– Também é da ilha –, pergunta ela – São Miguel? Ribeira Grande? – Pois sou. Vejam só. – Ele é de Santa Luzia.
Conheço, pois claro que conheço o bairro da Santa Luzia. Sou da Ribeira Grande, da tal do pezinho da vila, que agora é cidade, já foi depois de ter de lá saído, mas agora também são tudo cidades, sai uma pessoa da aldeia, passa meia dúzia de anos e zás, quando volta já é cidade, parece que estes deputados não fazem mais nada senão fazer cidades por todo o lado.
O Paulo, pois claro, tinha que meter a sua colherada, que é de Angola, embora tenha a impressão que para ele ser de Angola é um bocado como ser de Proença-a-Nova, de Marrocos, do grão-ducado do Luxemburgo, nunca notei que mostrassem um grande apego à terra, como outros que conheço, que sempre libertam longos suspiros quando se fala de África, ah, África, eu cá não é terra que me fascine, não tenho intenções de lá ir, mas o Paulo, que é de Angola, diz logo à Cristina eu sou de Angola, e ela que o marido tinha saído de lá muito pequeno, com doze anos, ou treze, o marido parece ser de todo o lado, dos Açores, de Angola, fico mesmo confuso, já não percebo nada daquilo, o que é certo é que no restaurante chinês, perdão, na marisqueira chinesa, onde a feijoada de gambas é mesmo boa, a chinesa chamada Cristina vai passar férias aos Açores, a São Miguel, à Ribeira Grande, ao bairro de Santa Luzia. Ufa.
sexta-feira, janeiro 14, 2005
O caldo entornado
Cuidados e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém, pelo menos é o que dizem, que eu cá para mim caldos de galinha dispenso, assim como o resto do bicho, mas há anos que venho ouvindo isto, também se os cuidados são demais não se arrisca nada e quem não arrisca não petisca, aí está outra das expressões dos adagiários, embora eu lá vá petiscando mais ou menos quotidianamente e não me recordo de nesses petiscos ter arriscado o que quer que fosse, apesar de se calhar vir logo alguém dizer-me ai arriscas, arriscas, olha o colesterol a subir, um dia destes tens as artérias todas entupidas e não há desentupidor que te valha, dá-te um treco e era uma vez.
Estes tais agoirentos são daqueles que partilham cegamente a ideia de que o seguro morreu de velho, que mais vale um pássaro na mão do que dois a voar, cá para mim é ao contrário, do que gosto mesmo é vê-los a voar de um lado para o outro com aquela irrequietude que Deus lhes deu, e se forem mais que dois ainda se torna mais interessante, desde que não se lembrem de aliviar os intestinos mesmo por cima de mim, agora se foi Deus ou não sinceramente que não sei, tenho cá as minhas desconfianças, mas que é isso que habitualmente se diz, lá isso é.
Eu não conheço o tal de seguro, excepto quando chega a hora de pagar os prémios. Que raio de coisa, eu ainda hoje penso que prémios são algo que se ganha num concurso ou num jogo ou coisa no género, mas afinal parece que se tem que pagar os tais de prémios e também me cheira que o tal de seguro está é cada vez mais rico com tanta gente a pagar-lhe prémios quando afinal nunca concorreu a nada que se visse, pelo menos até hoje não recebi notícias disso, e se se desse o caso provavelmente havia de vir no jornal, seguro ganha prémio em concurso de televisão, primeiro prémio do totoloto sai ao seguro, mas nunca li nada que se pareça com tais notícias.
Nem sei bem ao certo o que me levou a escrever sobre isto. Estarei a chegar à data limite de pagar alguma conta? Pode bem ser que sim. Mas terei que conferir.
quinta-feira, janeiro 13, 2005
Mais um blogue
Ontem criei mais um
blogue. Já não me bastava este, ainda me fui meter em mais um. Mas de me queixo eu? Que raio de coisa. Deve ser mania, tal como a do blogue que criei. É mais uma, a juntar a tantas mais.
Nomes incompletos
Chamava-se Amaral dos Santos. Tal e qual. Sem mais. Nomes próprios não havia, na escola chamavam-lhe Amaral, tal como em casa os pais, que pelos vistos nada mais pretendiam do que economizar, afinal os nomes são uma economia de palavras, quando queremos chamar este ou aquela sai mais em conta dizer um nome do que trocar por miúdos o que a pessoa nos é a nós ou então descrevê-la dos pés à cabeça para que o referido sujeito ou a mulher em causa saiba que nos referimos a ele ou a ela e não a nenhum outro ou outra – isto de negações múltiplas numa mesma frase só na língua portuguesa, não a nenhum, passamos a vida a negar seja o que for, mas quando se trata de afirmar também gostamos de reforçar, afinal isto de falar não é só para pessimistas, além do mais convém deixar aqui bem claro que nos tempos que correm já não se pode usar o masculino como referência a alguém indeterminado, ainda vêm de lá as mulheres todas de pistolas na mão como a Maria da Fonte e lá vai disto, é no que dão estes tempos modernos que até a própria gramática já não respeitam.
Como o nome passou no cartório é que é outra conversa, devia o empregado estar distraído, que a lei não dá assim licença do pé para a mão para uma pessoa se chamar como quiser, senão onde é que ia parar a onomástica com o génio inventivo dos portugueses, lá para os brasis é que há gente com nomes mesmos estapafúrdios, cafeaspirina de melo, dezecência feverência de oitenta e cinco, joão cara de josé, nacional futuro da pátria, himeneu casamentício das dores conjugais, maria panela e outros no género, já apareceram até nos jornais pelo inusitado da coisa.
Pois o dito Amaral dos Santos sempre sofreu na pele chamar-se simplesmente Amaral dos Santos, desde os tempos de escola, que as crianças sabem ser cruéis quando lhes dá na gana, por dá cá aquela palha fazem a vida negra a um desgraçado só porque é mais gordo do que os outros, ou mais magrinho, ou tem um olho torto, ou a cabeça desta ou daquela forma, ou porque não tem nome próprio a não ser Amaral, nunca percebi lá muito bem o que é isto da vida negra, será que há vidas brancas, ou alvas, ou transparentes, esta última não deve ser lá muito cómoda porque se calhar passamos despercebidos e ninguém dá por nós, o que diga-se de passagem pode ter as suas vantagens.
Quando entrou na maioridade lá foi tratar de meter um nome próprio no bilhete de identidade, mas trataram logo de o pôr com dono, que era difícil, metia papéis para a direita e papéis para a esquerda, carimbos daqui e dacolá, porque aqui no nosso paiszinho não se faz nada sem uma data de carimbos, vai-se à caixa pedir um cheque para enviar para a estranja e metem-lhe a folha do pedido três vezes na impressora, depois de dobrada e redobrada, deve ser porque têm que justificar o facto de terem impressoras nos bancos embora ainda se continue a fazer quase tudo à mão, parece que estas novas tecnologias ainda não se adaptaram aos portugueses e aos carimbos, que agora são impressoras em vez de carimbos, ele há maneiras de dar a volta a tudo, o que é preciso é criatividade.
Fez o desgraçado todas as diligências e mais alguma mas nada, deram-lhe um prazo de oito semanas, dois meses menos uns dias, quando andava de herodes para pilatos à procura dos tais papéis e carimbos foi atropelado e morreu com o nome incompleto. Como nunca apareceu com a papelada, ao fim das tais semanas o processo foi arquivado por falta de documentação.
quarta-feira, janeiro 12, 2005
Palavras (a)deus
Meu deus, que deus és tu,
tão meu como outro qualquer,
a quem me queixo sempre
que me apetece queixar,
a quem falo sem querer
dizer o que me apetece dizer
ou então dizer demais?
terça-feira, janeiro 11, 2005
Como gastei o tempo hoje
Hoje passei o dia em reuniões. Valha-me Deus. Já sei que há por aí uns quantos que vão ler isto e começar com esta história do Deus para cá e para lá, mas trata-se tão só e apenas de uma forma de expressão.
Diz daqui, diz dacolá, não ouvi nada de produtivo. E se abri a boca também acabei por não dizer coisa com coisa. É uma questão de contágio. Será?
O tempo que se perde nestas coisas quando devíamos era estar na rua, a ouvir as árvores, a apanhar sol, a ler um livro, a ver o mar na praia, a beber uma cerveja, a comer um gelado - gosto mais da palavra sorvete, mas está em desuso, pouco se pode fazer pelas palavras que se vão sumindo aos poucos e poucos a não ser lembrá-las de quando em vez -, a comer uns mariscos, a beijar-te aqui ao lado, sempre que me apetece beijar-te, que é a todos os segundos, a dizer-te coisas sem pés nem cabeça como faço tantas vezes, com umas asneiras à mistura, que em público raramente as digo, ficam reservadas para ti, e não leves a mal que eu sou assim mesmo e não há nada a fazer.
Mas perdi tantas horas de ti metido numa sala com conversas trocadas que não sei já se quando saí ainda lá fiquei ou não, afinal trocado fiquei eu, e tudo isto para nada, para nada de nada, que tudo fica na mesma depois disto tudo.
Palavras soltas
Há quem passe dias e dias a fazer figas, esperando não levar com a vida em cima tal como ela é, enchendo os bolsos de buracos feitos de silêncios. Triste sina.
Parece que para as bandas de Santos-o-Velho, por antonomásia a Santos-o-Novo, que destes há-os velhos e novos, como em tudo o resto, que a gente vai levando com os dias no corpo, uns atrás dos outros, sem dar por nada, e às tantas já por cá andamos com as rugas todas a arrepiar a pele e achamos que diabo (eu tenho a mania do diabo, que se há-de fazer, devem ser traumas de infância), sobra-me pele agora onde me faltam mais dias para viver, dizia então que lá para esses sítios havia um homem que passava o dia inteiro em casa porque tinha medo de sair à rua, a isto chamam agorafobia, se bem que cá para mim não se trata só de agora, é de antes e de depois também, traziam-lhe tudo de fora já que não punha o nariz na rua, mas deixavam-lhe à porta, que também não permitia que estranhos lhe pusessem o pé dentro de casa, nem o pé nem mais coisa nenhuma, e tudo o que entrava em sacos de plástico de supermercado era escrutinado minuciosamente, não fosse alguém estranho disfarçar-se de lata de conserva e meter-se dentro do saco das compras só para lhe espiolhar os domínios, que nisto de ideias brilhantes há para todos os gostos, como em tantas outras coisas.
Pois essa criatura - que em nada se assemelhava a uma galinha, porque há quem diga que criatura é uma galinha, nunca percebi porquê, mas o génio inventivo e os termos de comparação são muito relativos, há quem compare alhos com bugalhos, embora não veja qual é o interesse de tais analogias – passava os dias a escrever, pelo menos ao que se dizia. Escrevia muito, todos os dias, todos os pedacinhos dos dias, que quando escurecia nenhuma luz se vislumbrava naquelas janelas, havia vizinhos que asseguravam, que tinham as lunetas todas apontadas para lá, e dois ou três mais atrevidos até tinham tirado fotografias e filmado em vídeo horas e horas do que se conseguia almejar à distância através de janelas e cortinas, seguramente teriam pretensões a andys warhols ou a syberbergs, e como é mais do que evidente era tema de conversa diária nas padarias, mercearias, talhos, peixarias, drogarias, lugares de frutas e hortaliças, cabeleireiros, cafés, e tascas da zona; depois atirava com os escritos pelas janelas fora, ele eram folhas e mais folhas a voarem por todos os lados, se quisessem lê-las que as apanhassem, tantas palavras que se perderam afogadas no Tejo ou pelos bueiros abaixo, deverá certamente ter que ver com as tais de palavras leva-as o vento. Melhor do que isto nem o Borges. Sei lá. Pode ser que sim.
segunda-feira, janeiro 10, 2005
A banda (atónica)
À segunda-feira damos música, porque este é – ou pelo menos costuma ser – um dia um tanto ou quanto ingrato, excepto para museus, bibliotecas e afins, que gozam habitualmente de um fim de semana alargado, vá-se lá saber porquê, parece que a segunda-feira é domingo lá para os lados do ministério da cultura, quando afinal é um dia como os outros, diria pior do que os outros, para a generalidade dos cidadãos, que também os há de primeira, de segunda e da terceira, se bem que ao deixar isto assim aqui escrito ainda me habilito a levar um tabefe dos terceirenses, que são gente para levar as coisas a sério, eu que o diga, que sou micaelense e já tenho histórias antigas com tais pessoas.
Dizia então que, para animar o pessoal, dávamos música à segunda, o pior é que é música de ver e não de ouvir, se quiserem música o melhor que têm a fazer é ouvir um cêdê da vossa escolha, também não vou começar a impor as minhas escolhas musicais, já basta aquela que meti no meu profile (assim, em inglês mesmo, que cá no nosso português parece que não há palavra que se lhe chegue).






Circula por aí um novo cartaz...
domingo, janeiro 09, 2005
Dominus dei
Todos os dias a mulher plantava-se à porta da igreja, desde manhã até à noite. Antes de abrirem as portas já lá estava e ali ficava o dia inteiro até que as fechassem; fosse verão ou inverno, ou qualquer das estações de permeio, não falhava um dia. Havia quem pensasse que andava a pedir, mas não, nunca a tinham visto de mão estendida, não aceitava nada de ninguém, levava o seu próprio farnel, uma simples saquinha com comida e bebida que lhe dava para as muitas horas que ali passava.
Nos dias de missa de Galo era vê-la a altas horas da noite sempre no mesmo sítio, e a ceia de Natal era ali mesmo, sozinha, depois lá se ia embora, ninguém sabia para onde. Por meia dúzia de vezes houve quem tentasse segui-la, mas nada, trocava-lhes as voltas todas, às tantas por tantas tinham-na perdido de vista e já não havia nada a fazer senão voltar para trás, que os caminhos às vezes não vão dar a lado nenhum, nem sequer a Roma.
Quem se metesse com ela não levava resposta de espécie alguma, nem uma palavra nem um gesto nem um olhar nem um sorriso, era como se fosse de pedra, aquela mulher de carne e osso. Mas um dia, por tanta insistência de uma jornalista de um qualquer periódico, lá conseguiram arrancar-lhe breve conversa. De seu nome nada disse, nem de onde vinha nem em que casa morava, seria saber demais para quem não dava grande importância às palavras. Apenas quando lhe perguntaram porque ali ficava horas perdidas e o que queria, respondeu que queria receber Deus quando chegasse.
sábado, janeiro 08, 2005
Não há nada neste silêncio
Não há nada neste silêncio aqui à minha beira,
nem tu nem eu sabemos como estamos longe,
as casas indo pela tarde fora com a vida lá dentro,
ouvimos as mãos deslizando pelas palavras que vão crescendo,
haverá na verdade quem as sinta
ou olhe apenas para elas como palavras
que aparecem umas atrás das outras
dentro das casas mergulhadas na sombra
ao pé de uma cidade onde ficaste numa noite qualquer
e de onde agora já não sabes como sair.
Será que nos esquecemos assim tanto um do outro?
Tão perto estamos, à distância de umas palavras
que de mim a ti demoram pouco mais do que um segundo;
mas entre elas há vidas inteiras que olham para este nosso pecado
de apenas contarmos coisas de ti e mim.
sexta-feira, janeiro 07, 2005
Os locais mais apropriados
Sympathy for the Devil

Ao diabo já não lhe bastava ser diabo, tem ainda o desgraçado que ser surdo, cego e mudo. Pelo menos é o que muita gente deseja que ele seja sempre que lhe rogam umas pragas quando vêm à mão de semear. Mas que venha à mão de semear é coisa lá não muito aconselhável, até porque o diabo já tem mais que fazer depois de amassar o pão que há gente que come sempre que não tem muita vontade de o fazer, e que pelos vistos também engole sapos vivos, coisa decerto nada agradável, que os sapos mortos já são suficientemente viscosos; vivos, então, nem se fala, eu cá nunca comi nenhum, nem vivo nem morto, embora pelos vistos haja para aí muitos que passam a vida nisso, depois não se queixem, deve ser uma questão de masoquismo, mas há gostos para tudo.
Além do mais há ainda aqueles que constantemente proferem o nome dele, precedido de pronome, ou, se quisermos, de determinante, que diabo, que diabo, devem ser crentes, deve ser isso, pois com certeza, senão não andariam com o nome dele debaixo da língua.
Depois há os adoradores. Não devem ter mais nada para fazer na vida, senão deviam era adorar outras coisas, mulheres, homens, seja lá de que tendência forem, que aqui também não me vou pôr a fazer discriminações, estou mesmo a ver que ainda vêm uns que me vão acusar de postes abichanados, já uma pessoa não pode ser politicamente correcta e ainda tem que ouvir coisas destas.
quinta-feira, janeiro 06, 2005
Will Eisner: em memória


Wiss Eisner foi um dos maiores – senão o maior – criadores da Banda Desenhada. Nascido a seis de Março de 1917, em Brooklin, na cidade de Nova Iorque, veio a falecer a 3 de Janeiro de 2005.
Autor de uma das personagens da banda desenhada que mais tarde viria a ser fonte de inspiração para inúmeros criadores, The Spirit, o seu estilo e criatividade deram lugar a uma imagética invulgar e de grande beleza gráfica, a que se aliaram também uma enorme capacidade para criar argumentos para as suas histórias. Mais tarde viria a ser igualmente o criador das chamadas novelas gráficas («graphic novels»), com «A Contract with God and other Tenement Stories».
Ainda hoje o tenho como o número um de uma das minhas paixões. E, para mim, não morrerá nunca.
P.S. Agradeço ao Luís ter-me chamado a atenção para o facto.
Não saímos, nem que nos expulsem daqui para fora
Ao abrir o armário, deparou com um triste cenário. Havia latas fora de prazo, bolachas bolorentas, pacotes de uma massa esverdeada que não o era à partida, diga-se de passagem, feijão já comido pelo bicho, o qual, depois de ter comido o referido feijão, agora celebrava alegremente numa festarola com a família inteira por tudo o que era prateleira, afinal de contas festa era festa e onde iam dois ou três bem que podiam ir mais uns quantos, convidava-se os amigos e a parentada toda e pronto, havia sempre lugar para mais um.
Como não tinha convidado ninguém daquela vizinhança, desatou a agarrá-los com um pano molhado, podia ser que assim entendessem a deixa, mas qual quê, a folia era tanta que nem davam por nada e se davam o certo é que não havia maneira de pô-los com dono. Procurou uma lata de spray, desses que vendem para aí nos supermercados e que matam os bichos e as pessoas também, e que pelos vistos também servem para dar cabo do ozono, borrifou a bicharada toda da esquerda e da direita, de cima e de baixo, mas aquilo eram do tipo resistente e teimoso, não havia nada que os fizesse largar o poleiro, até parece que traziam cola, por mais insultos que levassem no aparelho auditivo, se é que tinham algum e funcionava, não desarmavam não senhor, deviam achar que tinham direitos vitalícios, nem que o mundo inteiro os enxotasse não havia nada, mesmo nada que pusesse a andar tamanha corja de parasitas.
Para grandes males, grandes remédios. Retirou-lhes a paparoca toda, enfiou com a comezaina toda em sacos de lixo e lá foi, todo contente, a caminho do contentor. Vamos lá ver se sem a comidinha continuavam a fazer a festa. Logo que regressou, teve a surpresa de observar que não havia nada que os arredasse do lugar. Pelos vistos tinham-se acostumado, aquilo era a casa deles e mais nada, com mordomias ou sem elas já ninguém os arrastava dali, viessem chuvas e tempestades, veneno daqui e dacolá, há tanto tempo que cá estamos, por que raio de coisa havemos agora de ir para o olho da rua? Ao menos aparentemente o negócio funcionava, nem com ordem do tribunal, fosse ele criminal, eclesiástico, constitucional, de apelação ou supremo se punham a marchar. Eram mais que muitos e já viviam à conta há demasiado tempo. Desistiu. Fechou as portas e foi-se embora. Eles que se entendessem com quem viesse para ali morar depois dele. Não querem lá ver os atrevidos dos bichos?...
A senhora ministra
A senhora ministra não veio, a senhora ministra não vem, a senhora ministra não virá. Mas que maçada!
quarta-feira, janeiro 05, 2005
O país dos facínoras
Anda por aí quem apregoe que esta é uma terra de facínoras. Pelos vistos, está uma pessoa bem sentadinha na sua casa e não é que entra um malandro qualquer e lá vai desta, uma facada nas costas e já estás servido, está um figurão qualquer refastelado no seu gabinete, e zás, outra facada nas costas, ainda que rodeado de secretárias, guarda-costas, que devem ser ceguinhos de todo, não se percebe lá muito bem o que andam para ali a fazer se nem sequer dão por nada, certo, certo é que a obsessão chegou, viu e venceu, agora andam todos aviados de facadas, pelo menos não se podem queixar de que uns têm tudo e os outros não levam nada.
Ficou no entanto por esclarecer qual o instrumento utilizado, e isto não é de somenos importância para que sejam avaliados os aspectos criminais da coisa. Trata-se afinal de navalhas de ponta e mola, de facas de mato, de cozinha? E, neste caso, serão de trinchar, de cortar o pão, daquelas de lâmina larga para carne com ossos? Isto embora estas últimas não dêem lá muito jeito porque não têm ponta, e em matéria de facadas um instrumento pontiagudo é sempre mais eficaz, pelo menos ao que dizem, que nesta matéria a minha experiência é um tanto ou quanto reduzida ou inexistente, ainda não veio a polícia cá bater à porta para me levar à esquadra por ter andado por aí a dar uma facada nas costas de quem quer que fosse. Mas só me faltava mais essa.
Os Amantes da Intriga
O senhor Silva Adão era um exímio conferencista, ou não se tratasse de um perfeito exemplo da família dos Perfeccionistas Sentenciosos. Num dos seus últimos colóquios saíra-se com uma frase brilhante, que a todos os presentes havia iluminado os espíritos e enriquecera o léxico, para já não falar do corpus semântico, da língua portuguesa. Nem mais nem menos do que os «escarafunchadores de cenários conspiratórios», embora tal riqueza sintáctica e lexical não se referisse ao caruncho que infelizmente abundava no palácio, ignorado pelos sucessivos responsáveis pelo património nacional, onde se havia reunido o grupo dos patriotas que haviam levado a efeito o primeiro de dezembro de mil seiscentos e quarenta. Não. Claro que não. A ilustre personagem saíra-se com esta a propósito dos Amantes da Intriga.
Ora, tal referência criou alguma perplexidade nos admiradores que inundavam a sala onde se tinha reunido um tão inusitado conjunto de mentes brilhantes. Afinal quem era a tal de Intriga? E de que amantes se tratava?
O zum-zum que começou a circular era que a tal senhora seria nem mais nem menos do que a mulher do veterinário, que nunca se havia livrado da fama desde que, numa dessas feiras que pululam por todo o país dedicadas à gastronomia popular por alturas do verão, quando os emigrantes aproveitam para tirar a barriga das misérias que vão comendo e bebendo durante o ano inteiro por essas terras europeias, se havia saído com umas frases a propósito de um tal de Baco enquanto ia lançando uns olhares dissimulados ao recém-contratado craque brasileiro da equipa local de futebol, e de Baco e dos seus bacanais já tinham ouvido falar quando o mesmo conferencista se referira aos governantes e ao seu exagerado despesismo, e de despesas percebiam os presentes, já que o pouco que ganhavam para pouco mais dava do que uns copitos de vez em quando nas duas casas de alterne ali das redondezas.
Mas havia outros que não senhor, que qual mulher do veterinário, qual carapuça, aquilo era mas é com a viúva do Aristides do banco, que dera em meter em casa uns ucranianos louros e espadaúdos com a desculpa de que precisava de mão de obra para lhe tratarem das laranjeiras e das pereiras, que a nacional já era chão que deu uvas, e dessa fruta ela não tinha lá na quinta, não senhor, que havia quem já a tivesse visto com os mesmos olhos que a terra havia de comer. Cochicho para cá, cochicho para lá, a tal de Intriga ia passando por ser a maior parte das mulheres dos figurões lá da terra sem que se tirasse em pratos limpos quem era tal devassa criatura.
Quando a reunião terminou todos saíram cheios de suspeitas, chegaram a casa e passaram a olhar as respectivas mulheres de lado, e quem tinha filhas já cresciditas também desconfiava de todas e mais alguma, não é todos os dias que uma mulher é nomeada na praça pública (nem que a praça seja do tamanho de uma sala) por andar para aí com uma data de amantes sem que se saiba quem é. Porque em relação aos escarafunchadores, desses não havia dúvida: eram, sem tirar nem pôr, os ciganos que se tinham instalado recentemente no bairro novo, que o presidente da câmara tinha construído de propósito às custas dos impostos do povo. Nem mais. Ora essa.
terça-feira, janeiro 04, 2005
Enganos d'alma
Sempre achei muita graça à Lei de Murphy que reza mais ou menos o seguinte: quando uma coisa pode correr mal há-de correr mal com toda a certeza.
Pois o senhor Raimundo não era homem para graças, como o nome pode dar a entender. Mas era um optimista por natureza. Logo depois de ter fechado as contas da loja, punha-se a verificar os magros lucros que o negócio dera, e achava que assim estava bem, que diabo, não andava ali para ficar rico, se assim fosse tinha mas era emigrado para a Venezuela ou para as Bermudas, que ali é que as pessoas semeavam um vintém e nascia uma árvore das patacas, sem problemas de câmbios nem nada. O resto do tempo livre dava para ver o que ia investir quando reabrisse e, se havia caloteiros que não lhe pagavam o que deviam, pespegava com o nome deles na montra, juntamente com as dívidas, e era vê-los passarem para o passeio do outro lado da rua com um ar cabisbaixo e a olharem de esguelha mal se avizinhavam da porta, não fosse o diabo tecê-las e passarem pela vergonha de se verem de repente chamados à pedra no meio da rua.
Mas aquilo lá ia dando para as despesas e para viver, desde que não se pusesse com grandes voos, férias aqui e acolá, carros novos todos os anos, grandes comezainas nos restaurantes mais caros uma vez que, se era um homem de gostos um tanto ou quanto refinados, estes limitavam-se a uns luxozitos de quando em vez, uma fatito novo de seis em seis meses, uma ida quinzenal a restaurantes mais carotes, e pouco mais.
Na boa vida andava era o farmacêutico, que tinha a botica sempre a abarrotar de velhos engripados, a pingar do nariz e com dores por todo o lado, e se não eram as constipações eram as alergias, as diarreias, o nervoso miudinho de que esta gente nova parecia padecer cada vez mais, insónias, stress, lá o que isso fosse, que não o sabia ele, que levava a vida nas calmas, devagar devagarinho já tinha chegado aos setenta e muitos e não se queixava de grandes males para além de um reumatismo sazonal que lhe apoquentava as costas durante os meses mais húmidos. Esse, sim, andava com a mulher dependurada do braço cheia de jóias e embrulhada em casacos de peles, mais parecia uma ursa enfeitada do que uma mulher de farmacêutico, carros novos era vê-los a estacionar à porta quase todos os meses, de onde saía todo emproado com o seu bronzeado das Caraíbas, Maldivas, Malvinas, Marialvas, ou onde quer que fosse que o homem ia gastar os lucros das gripes alheias.Um dia, porém, entrou-lhe pela mercearia dentro uma jovenzita com uma mini-saia daquelas que mostram tudo até ao pescoço, este incluído, com um sorriso pepsodente de encandear os mais míopes e tudo mudou na sua vida. O raio da rapariga era atrevida, meteu-lhe na cabeça umas tantas ideias estapafúrdias e no corpo uns ardores que há já muito não sentia, o certo é que empenhou a casa, a loja, mercadoria incluída, e acabou por perder tudo, família, casa, loja, mercadorias, amigos, parentes, juízo, respeito. Vive agora no Júlio de Matos a expensas do Estado, e de quando em vez é vê-lo pelas imediações da Avenida de Roma a meter-se com as mulheres novas que por ali passam, prometendo-lhes mundos e fundos, que diga-se de passagem já não possui, os fundos, pois claro, que os mundos agora são aqueles em que o engano de alma, ledo e cego, a fortuna lhe fez durarem o que duraram.
domingo, janeiro 02, 2005
Uma ideia original
O senhor Fernandes tomou uma decisão um tanto ou quanto inusual na sua pessoa, que foi o de ir passar o fim de ano ao Algarve. Ficou porém um tanto ou quanto surpreendido ao verificar que afinal de contas tinha havido uma data de gente que lhe tinha copiado a ideia, estrangeiros inclusive, aliás por que carga de água haviam os estrangeiros de lhe copiar ideias, só se andassem a espiar-lhe os movimentos minuto a minuto, coisa que além do mais já há uns tempos desconfiava que lhe andavam a fazer, e ainda por cima o fim de ano deviam passá-lo noutro lado qualquer e não no Algarve, que as passas eram para os dentes dos portugueses, onde é que já se viu virem os estrangeiros esgotar as passas nos supermercados quando elas eram precisas para os portugueses engolirem a duziazita da ordem ao soarem as doze badaladas, se quiserem passas que as façam lá na terra deles, e se gostarem do sol pois que o importem de cá, que o país anda um tudo nada fraquito nas exportações e o negócio se calhar até dava um jeito.
Mas o pior foi ainda no regresso, quando se meteu à estrada no carrito mais a família toda e notou que, mais uma vez, lhe surgiram mais carros de todos os lados, já nem se podia ir na estrada para Lisboa sem que toda a gente também se metesse na estrada para Lisboa? Eram carros e mais carros, pequenos, médios e grandes, que havia para todos os gostos, gente e mais gente, a polícia num virote para a frente e para trás, a meterem-se-lhe à frente, a porem-se atrás do seu carro, já uma pessoa não pode dar uma voltita sem que o país inteiro lhe atravanque o caminho? Ora bolas.
