A Maria de Lurdes era pessimista por natureza, além de ter a mania das doenças, se lhe doía um calo, pronto, era cancro de certeza, se dormia mal a noite era uma veia na cabeça que estava prestes, prestes a rebentar, colava-se na rua a quem quer que a conhecesse e tivesse o azar de lhe sair ao caminho, dói-me aqui, dói-me ali, já fui ao médico, fiz análises, radiografias, ecografias, não consegui dar com o problema, tenho um táque marcado para a semana, não sei o que hei-de fazer que de manhã à noite a impressão não me larga, deve ser coisa grave senão o senhor doutor não me mandava fazer um táque, que há-de ser de mim e das crianças se eu morrer, ficam para aí desgraçadas, o José então nem sei, coitado, com tanto trabalho e ainda as crianças para cuidar, para levar à escola, vesti-las e dar-lhes de comer logo de manhã, fazer o jantar, dar-lhes banho, pô-las a dormir à noite, lá terá que arranjar outra, que sozinho não vai conseguir, e a outra a ouvir aquilo tudo, que não, que não havia de ser nada, era só uma impressão, isso passa, deve ser do tempo, está muito frio, muito húmido, muito calor, consoante a época uma pessoa tem que ir variando as justificações para se enquadrar no problema.
Mas ela dava-lhe:
- Isto está tudo muito mau, já não tenho dinheiro para comida e para a renda, que só aí a caixa leva-nos o ordenado quase todo, aquilo são uns comilões, e se não pagamos metem-nos na rua com os tarecos todos, para onde é que vamos viver isso não sei, não sobra nada para os remédios, as radiografias, as análises, os táques, eles só sabem é dar dinheiro aos amigos, arranjar emprego para os parentes, não é gente séria, não senhor, roubam-nos os tostões todos, agora já não é tostões, é cêntimos, que saudades que eu tenho dos escudos, dos centavos, dos contos de réis que nunca chegavam a descansar na gaveta, era um vê-se-te-avias que a meio do mês já só pedia fiado na mercearia ali do senhor Pinto, agora ainda é pior, que ele meteu lá um aviso se queres fiado, toma, com um homem a fazer um manguito para a gente, também já não há respeito, veja lá a comadre.
E continuava o rol:
- Não sei onde é que isto vai parar, a vida tão cara, no Natal comprei tudo na loja dos trezentos e nos chineses, mesmo assim ficou lá o subsídio de Natal quase todo, o bacalhau cada vez mais caro, ainda por cima dizem que qualquer dia já não há, o que é que a gente há-de comer, não me diz a comadre, o bacalhau agora é só para os ricos, esses é que sabem levá-la toda, e para os pobres ficam as doenças, estou mesmo cheia de impressões, deve ser a tal da gripe, ainda por cima mais esta a juntar às desgraças todas, nas notícias só dizem que já não podemos comer nada, nem frangos, nem porco, nem trutas, carne de vaca nem vale a pena pensar nela que a gente não lhe chega, eu gostava era de ganhar o totoloto, o José joga todas as semanas, eu até de vez em quando vou às raspadinhas, não sei para quê, ando para aqui a enganar-me, que aquilo só sai aos outros, e então à Misericórdia sai todas as semanas, naquelas raspadinhas ainda têm a lata de dizer tente outra vez, que falta de vergonha, a gente vai lá a raspa e nada, vai lá e raspa, nada, e mandam-nos tentar outra vez, como se a gente não fizesse outra coisa senão tentar, mas sei que nunca me vai sair nada porque não tenho nenhuma sorte ao jogo, nem sequer aos amores, nem isso, que há semanas que o José nem me vê, chega, fica para ali no sofá a ver a televisão, senta-se à mesa calado e sai ainda mais calado, se não fossem as crianças até parece que vivo numa casa de mudos, veja só que desgraça de vida a minha, a sonhar com actores de cinema americanos e a raspar os cartões da Santa Casa, a minha é que não é santa, não senhora, eu lá vou tentando que ela esteja limpinha, o pior são os miúdos que sujam tudo, todos os dias é porcaria pelo chão, eu a varrer, a lavar, a loiça, a roupa, a casa de banho, nasce uma pessoa para isto, se me dissessem quando era pequenina que estava fadada para esta desgraça se calhar nem acreditava, mas também qualquer dia caio para o lado e pronto, era uma vez a Maria de Lurdes.