Eu na cozinha sou um desastre. É ver-me lá entrar e as panelas começam aos gritos, os talheres fogem a sete pés, escorregam para debaixo dos armários, o fogão todo ele entra em convulsões, tosse, espirra, fica com catarro para o resto do dia, a batedeira tremelica, a máquina de café fica com mau humor e resolve entrar em greve, a torradeira olha-me de lado, assim como não quer a coisa, a avisar se mexes aqui levas um esticão que até vês as estrelas, o frigorífico começa a transpirar, o que, no caso dos frigoríficos não é lá nada saudável, os balcões encolhem-se todos, ficam mais baixos, quase me tenho de pôr de cócoras para fazer alguma coisa, nem que seja cortar o pão, além disso fico mais longe da pia, às tantas fica tão longe que até dá a sensação de ser uma miragem.
Mas o pior de tudo, o pior mesmo, é o acendedor do fogão. No outro dia ia deitando fogo à casa. Mal pego no raio do bicho, deitou-me a unha, deu-me uma dentada no dedo mínimo, ia-me arrancando a pele toda, depois enfiou-se-me pela camisa dentro e não descansou até me deixar todo esfolado. Fiquei varado. Agarrei-o com as duas mãos, preguei-lhe um sermão, mas qual quê, não me fez ouvidos, começou a deitar faíscas por todos os lados e desatou aos guinchos, que o queria assassinar. Querer, queria mesmo. Tinha era medo das consequências. Depois vinha o resto da família dos acendedores, os primos, o cunhado, a tia, eu sei lá, pregavam-me uma sova das antigas, a coisa ainda alastrava aos fósforos e aos isqueiros, nunca mais fumava um cigarro na vida, só de pensar nisso arrepio-me todo, de maneira que lá o acalmei, arranjei-lhe uma bolsinha toda catita, de veludo cotelé, bordeau, dei-lhe todas as garantias, até a minha palavra, de que se apanhasse uma constipação o levava ao médico dos acendedores, que lhe fazia um seguro de vida, com todos os extras, e um seguro de saúde, não me ia sair barato, mas mais valia. E lá se acalmou, acomodou-se na sua bolsinha, ainda meio a choramingar, pelo menos a guincharia tinha acabado e as faíscas também.
Se quero fazer uns ovos mexidos, saem escalfados, se quero fritar um bife, fica grelhado, se quero grelhar acaba estufado, batatas fritas, então, nem pensar, metem-se todas aos pulos na frigideira, dançam o baile furado que nem umas doidas, metade vai parar ao chão, depois piso naquilo tudo, escorrego, dou um trambolhão, ao óleo ou azeite ou que raio é dá-lhe a gripe das aves, espirra por todo o lado, dou por mim cheio de bolhas nas mãos, pareço que tenho icterícia, e no fim aquilo fica tudo esturricado, se calhar devia era arranjar emprego numa incineradora.
Bela desculpa, é ou não é?