...nisto do fisco não se pode esconder nada que eles dão com tudo, até debaixo da cama...
A inda o outro dia o Zé teve um susto. Foi chamado às Finanças porque devia dinheiro. Do I.R.S. Ele, que nunca tinha sido caloteiro na vida, devia dinheiro, não tinha cumprido o seu dever, que é pagar os impostos todos, todinhos, até ao último tostão, sem esconder nada, que nisto do fisco não se pode esconder nada que eles dão com tudo, até debaixo da cama, sei de uma senhora cujo marido teve uma surpresa porque deu com um homem do fisco debaixo da cama, e a mulher em cima, seminua, a tremer de medo, coitadinha, foi o diabo para explicar ao fiscal que ali não havia dinheiro escondido, não senhor, nem ali nem em lado nenhum, talvez à excepção de uns trocos guardados numa lata de bolachas para as emergências, não era coisa por demais, será que afinal também era preciso levar a lata das bolachas às Finanças?
Bem, não se pode esconder nada é como quem diz, que há quem esconda, ai escondem, escondem, passam por pobrezinhos e honestos, vai-se a ver e afinal há propriedades não declaradas, carros de luxo enfiados em garagens alugadas, sem recibo, claro, que é para não dar nas vistas, umas contas na Madeira e noutros lugares ainda mais longe, como as ilhas do Canal, que nem sei bem onde ficam mas deve ser lá para o tal de Canal, se uma pessoa quer saber onde fica nem piam, qual Canal, perguntam logo, como quem está a falar na Lua, não é nada com eles, disso não sabem nada, pois é, eu também não e não há maneira de me calarem, a mim não me enganas tu, lá dizia a música, o pior é que os fiscais das Finanças pelos vistos não conhecem a letra.
Adiante. O Zé lá foi, todo atrapalhado, com o papel da dívida na mão, teve que faltar ao trabalho, disse ao patrão que tinha uma consulta, que não teve cara para contar a história da dívida, caso contrário ainda iam pensar que andava a roubar na firma, quem deve às Finanças não deve ser pessoa séria, esconde a caixa do dinheiro que vem aí o Zé não é coisa que agrade ouvir, sobretudo se o Zé somos nós, e passar por malandro, relapso, ladrão, não agrada a ninguém, sobretudo se não andam nessa área de actividade. Subiu as escadas a tremer, degrau a degrau, numa bicha de malandros, relapsos, ladrões e outros que tais. Foi atendido ao fim de três horas e meia.
- Bom dia, recebi aqui esta carta da repartição...
- Então que temos? – vira-se logo uma daquelas eficientes e simpáticas funcionárias imbuídas do espírito de missão de caixa às bruxas, provavelmente ainda aparentada com o Torquemada ou descendente do cardeal-rei D. Henrique, – o senhor não pagou os impostos todos que devia, não é?
- Bem, eu... – hesita o Zé, sem saber bem ao que vinha – eu na verdade nem sei porque é que me mandaram esta carta. Declaro o I.R.S. todos os anos e nunca tive nenhum problema.
- Isso é o que toda a gente diz. Nem sabe os problemas que nos aparecem aqui todos os dias. Se toda a gente preenchesse os impressos como deve ser já nada disto acontecia – devolveu a voz da sabedoria.
- Mas eu nunca fiquei a dever nada. Nestes anos todos, nem um tostão – responde o Zé, meio a medo, meio levado pela coragem das quase certezas.
- Vamos ver, vamos ver. Tostão a tostão vai o estado arranjando dinheiro para construir as estradas por onde o senhor passa, e vai de automóvel, aposto, e os hospitais e as escolas, se calhar o senhor tem filhos, e já esteve doente, não é? Com estes tostõezinhos todos, juntando daqui e dali, é que se faz este país – sentenciou a obsequiosa funcionária. – Vou ali ver o seu processo. Tem aí o seu cartão de contribuinte?
O Zé pesquisa na carteira e começa a corar quando dá pela ausência do dito.
- Não, acho que não o trouxe comigo, devo ter-me esquecido. Mas não dá para ver aí pela carta, não tem lá o número?
- Tem, sim senhor, mas sem o cartãozinho é que nada feito. Ora imagine que vinha cá alguém com a sua carta e não era o senhor. O que é que íamos fazer?
O Zé imaginou logo um voluntário para ir às Finanças com a sua carta para pagar a dívida por si, mas ficou com a impressão que almas beneméritas dessas já deviam ser raras nos dias de hoje.
- Mas não se pode resolver o problema sem o cartão? – indagou.
Que nada, não senhor, que teria que lá voltar, e que tivesse cuidado porque o prazo terminava no dia seguinte, senão teria que pagar juros e mesmo assim não era garantido que aquilo não ia parar ao tribunal. Sem cartão de contribuinte nada feito.
A manhã estava estragada, e o pior é que teria que ir trabalhar à tarde, que o patrão não era para brincadeiras, consulta que se prezasse, para ele, não ia demorar mais do que uma parte do dia, que não conhecia consultas que demorassem um dia inteiro. E lá foi.
No outro dia telefonou para o emprego a dizer que tinha tido um problema com o pai, que tinha ido parar ao hospital, a ver se pegava. Pegar não pegava, isso já o sabia de cor, que lhe pediram logo um papel passado pelo tal hospital a justificar a falta, o que lhe valia é que tinha um amigo que era segurança no São José, de maneira que lhe telefonou a ver se lhe arranjava o tal de papel, que não havia problema, que logo à noite passava lá por casa para lho levar.
Mais uma via sacra de degrau a degrau levou o José nessa manhã, e à tarde teria mais uma dose, que quando lá chegou a bicha já ia do tamanho da légua da Póvoa, que é uma légua maior que as outras, por isso é que as pessoas se referem sempre à da Póvoa quando se referem à tal légua, embora nos dias que correm já pouco gente saiba o que é uma légua, quanto mais onde fica a Póvoa, e se soubessem também não iam lá, que deve ser longe p’ra burro e se calhar de automóvel também não ajudava nada. À hora do almoço distribuíram senhas para a tarde, ficou com o número vinte e seis, ainda ia penar depois do almoço, por isso foi a casa comer qualquer coisa, e quando saiu verificou se trazia os papéis todos, os cartões todos, o livro de cheques, os papéis de desmobilização da tropa, o boletim de vacinas, sabe-se lá o que não vão pedir nas finanças, mais vale estar prevenido.
Às três e quarenta lá chegou a sua vez. A funcionária era agora um funcionário. Mas a simpatia era a mesma, mais refinada.
- Diga o que pretende – avançou o ditador de finanças.
- Eu vinha aqui por causa de uma carta que recebi da Repartição... – e lá desenfiou novamente as contas do seu rosário.
- Ora vamos então ver o que diz no seu processo. O cartão de contribuinte? – disparou o homem lá de dentro do balcão, já à espera de um esquecimento.
- Está aqui, está aqui – prontificou-se logo o Zé a apresentá-lo, mais aliviado.
Abriu a carteira, retirou-o do seu lugarinho e colocou-o em cima do balcão. Um olhar perscrutador percorreu avidamente o cartão.
- Hum, qualquer dia fica fora de prazo. Veja lá se está atento. Depois tem que pedir um novo, senão este deixa de valer.
Apesar do susto, ficou o alívio de saber que ainda valia. Nem reparou nas datas. Sempre pensara que isto dos cartões era como no Multibanco, quando estava prestes a chegar ao fim da validade enviavam outro para casa. Tinha que passar a estar mais atento a estas coisas das datas, já nem bastavam os prazos de validade do leite, da manteiga, dos cereais, agora era preciso reparar nos cartões. Lembrou-se de repente que nunca reparara se as embalagens de fruta, de batatas, de cebolas e de alhos do supermercado tinham datas com os prazos de validade. Será que teriam? Tinham que ter, pois claro. Pois se até os cartões tinham, não haviam agora as batatas de ter, uma coisa que as pessoas comem, claro que tinham, não ia a gente comer coisas estragadas e fora do prazo. Precisava mesmo de estar mais atento às datas. Ele que já tinha dificuldade em lembrar-se de quando fazia anos, quanto mais os outros. O que devia era arranjar uma agenda e escrever os prazos. Mas devia escrevê-los nos dias em que fazia as compras ou nos dias em que as coisas terminavam os prazos? Era um dilema. E dos graves. Porque se escrevesse nos dias em que terminavam tinha que andar sempre a procurar para a frente nas datas; se não o fizesse, quando chegasse ao dia e qualquer coisa terminasse o prazo já não ia haver tempo para resolver o problema. E havia ainda o problema das compras. Deveria começar a guardá-las por ordem do prazo de validade? Tinha que arranjar uma despensa maior. A demora começava a preocupá-lo. Quanto é que deveria? Como é que tinha sido possível, se nunca se tinha enganado nas contas? Mais aflito ficou ainda quando reparou que o funcionário, sentado atrás de um ecrã de computador começou a mirá-lo e se levantou para ir falar com um superior que estava num gabinete à parte. Ai, ai, ai, ai, que havia sarilho dos grandes. Seria possível? Começou a transpirar e a sentir una calores pela cara acima. Onde é que ia inventar dinheiro para pagar a dívida, se o que tinha mal chegava para si e para pagar a pensão de alimentos da ex-mulher e dos dois filhos, para já não falar na escola deles, nas roupas, nos livros, nos cadernos, nas canetas, nas mochilas, na prestação do carro, no aluguer da casa...
Perto das quatro e vinte e cinco lá veio por fim o prestável funcionário com cara de caso, a carta dele e um outro papel na mão. Que tinha uma dívida, sim senhor, mas que não se preocupasse, que o assunto já estava resolvido.
- Resolvido? Resolvido, como? – Afinal devia ou não devia? Se devia, quanto era, que não gostava de ficar a dever nem muito menos que pagassem por ele.
- Está resolvido. Não tem que se preocupar mais com isso. O senhor já não deve nada às Finanças – asseverou a eficiência personificada.
- Mas como? Quem é que pagou? – indagou, agora com a curiosidade toda a invadir-lhe o espírito, que nisto de espíritos curiosos não há que saber nem como nem porquê, são curiosos e pronto.
- O Estado resolveu a seu favor. Não tem que se preocupar com nada – assegurou-lhe o homem, numa resposta que até parecia saída de cartão do Monopólio.
- Mas de quanto é que era a dívida? – retornou à carga.
- Porque é que quer saber? Não lhe disse já que o assunto estava encerrado? O seu processo está limpinho. Não é um alívio saber isso? – decidiu o funcionário com algum pouco à vontade.
- Não senhor, da minha dívida quero saber eu. Não quero que me venham mais tarde atirar à cara que me pagaram o que eu devia ser eu a pagar – afirmou, com ar decidido. – Perdi dois dias de trabalho para tratar deste assunto. Quero saber quanto era – repisou.
- Um cêntimo – retorquiu-lhe ele.