entre uma avenida e outra.
estas mãos pelos jornais, estas sombras de rostos iguais.
Guardado está o bocado para quem o há-de comer, é o que se diz por aí quando, em altura inesperada, alguém beneficia de uma repentina benesse, salve-se a cacofonia, ou aliteração, ou repetição, como se queira classificar tal sucessão de bês, mas quer-me parecer que tal frase carece de um fundamento que é a opinião do tal bocado, que muitas vezes é gente que anda e respira e tem vontade própria, pelo menos vamos crer que sim, que tem, e que por este ou por aquele motivo se vê enredada em semelhantes considerandos sem poder dizer nem ai nem ui, nem muito menos á ou bê, não concordo, não sou nenhum bocado, nem ando para aí à vontade de quaisquer antropófagos, isso é que era bom, vai-se a ver e lá no fundo se calhar ainda não fomos capazes de ultrapassar a fase do canibalismo, já dizia o Padre António Vieira, em inusitada alegoria, pelo menos para a época, que as pessoas se comiam umas às outras, o que, mesmo de maneira figurada, se me afigura francamente um exagero, deve ser da maneira de ser cá da gente lusa, essa tendência para exacerbar os factos e as acções das gentes, que dos animais não tenho grande memória que se teça tais considerações, para além do referido religioso, diga-se, mas nunca se sabe, se calhar há quem o faça e eu é que sou distraído, de certeza que sou, ou mal informado, ou tudo junto, mas nunca me achei lá muito com cara de enciclopédia, muito menos ambulante, que por enquanto ainda vou sendo capaz de ir daqui para ali pelos meus próprios pés, ou com o auxílio de meios de locomoção mecânicos, entenda-se por isto um automóvel, um comboio, um avião ou o que quer que seja, às vezes para bom entendedor meia palavra não basta, não é suficiente, é preciso dizer tudo tim-tim-por-tim-tim, explicar muito explicadinho, deixar as coisas claras como água, não deixar dúvidas de espécie alguma para que depois não haja mal entendidos.
Vem isto a propósito de coisa nenhuma, que é a melhor maneira de se escrever a despropósito, porque também não sei qual é a obsessão que algumas pessoas têm de que as coisas devem estar sempre relacionadas com algum outro facto que lhes seja extrínseco, não é verdade, não acredito nisso, e se o cresse não estava para aqui a disparatar sem que tivesse existido qualquer acontecimento que despoletasse estas elucubrações, nada de extraordinário, mesmo nada de nada, para além de ter começado a chover, o que pode ser muito bom para as plantas e para as reservas aquíferas, mas para mim não, que detesto ter de molhar-me sempre que meto o nariz fora de portas, abrir a porta do carro e depois o chapéu de chuva, que se embrulha todo com o resto das coisas que já tenho que levar nas mãos, com a papelada que às tantas por tantas vai parar ao chão e fica toda ensopada, tal como eu, que já pareço um pinto, se bem que não sei porque cargas de água é que são só os pintos que hão-de estar molhados que nem pintos, dá a ideia que o resto da bicharada é impermeável, e a propósito de impermeáveis nos últimos anos não comprei nenhum, pelo que me sujeito ainda mais a apanhar uma molha das antigas, que hoje em dia já não há molhas de jeito, e depois ter que voltar para o carro com as mãos cheias de coisas e a segurar o chapéu de chuva aberto, tirar a chave do carro, enfiar as coisas lá dentro, depois enfiar-me eu lá dentro também, com o chapéu de chuva ainda aberto, e fechá-lo só depois de estar sentado no lugar, fazendo uma ginástica de jogos de braços e de mãos para evitar os pingos da chuva, que acabam sempre por entrar e por me deixar enredado numa data de papéis e de chaves de carro e de chapéus de chuva e de sacos de compras e de jornais e revistas entretanto adquiridos para estar a par do que se passa, que por norma é sempre o mesmo, com ligeiras variantes, não, para ser realmente franco não gosto da chuva, detesto molhar-me contra a minha vontade, mas a chuva havia de vir, estava-se mesmo a ver, se está para durar ou não é coisa que se há-de ver, mas tinha mesmo que estar guardada para esta altura, essa é que é essa, não é coisa que se coma, a chuva, quanto muito bebe-se, por isso não vejo lá muita lógica que a chuva estivesse guardada para mim, que tenho que comer com ela logo que a Primavera está para começar, mas que remédio, tenho que me conformar, se é para o bem de todos pois que venha, mas que fique bem claro que eu não votei na chuva, nem que viesse nesta altura. Não votei, não.
sexta-feira, março 18, 2005
Brincando aos caubóis
U
ma boa parte da minha infância passou-se sob a influência dos filmes que ia vendo passar nos cinemas, onde à data muito corriam fitas de caubóis, de índios, de pirataria, de gladiadores, para além de muitos outros que não estava autorizado a ver, devido à idade e às classificações para maiores de tantos anos, que iam dos 6 aos 12, aos 17 e adultos, que ainda sou do tempo em que frequentemente se pedia bilhete de identidade e se negava a entrada, mesmo com bilhete na mão, e havia até inspectores que de quando em vez aproveitavam para ver um filme à borla e verificavam se havia menores onde não devia haver, isto em estrita concordância com a lei de classificação dos espectáculos, que na sua grande maioria iam retalhados pela censura e pelas frequentes costuras provocadas pelo corta e cola depois de um bom pedaço da fita ter ardido durante a projecção, com óbvios protestos da assistência e uns bons dez minutos ou mais de demora para que o remendo se efectuasse, em que a audiência se entretinha a lançar arrotos, ou a atirar papéis, cascas de amendoins ou coisa pior da geral para a plateia, quando não se punha a aventar hipóteses durante o decorrer do filme, a avisar o personagem que, desavisado de todo, estava mesmo para ser atingido pelas costas com um ele está atrás da porta, ou com um dá-lhe agora, e nas matinés infantis pateava sonoramente ao som dos cascos dos cavalos, gritava animadamente quando aparecia a cavalaria para salvar os desgraçados que estavam debaixo de um ataque dos índios, não sem que antes tivessem morrido uns quantos e já poucos restassem para serem salvos, para grande azar dos que se tinham entretanto deixado matar, ou então aplaudia freneticamente, ainda durante a apresentação, os filmes de desenhos animados.
Tais influências devem ter-me sido francamente perniciosas, a julgar pelas diatribes que muitos e piedosos pedagogos, eu escrevi piedosos, mas quase ia trocando as duas primeiras vogais, vieram rogando ao longo dos anos a propósito da violência nos desenhos animados e no cinema de uma maneira geral, e ainda nem sei como não acabei delinquente e a cumprir pena numa qualquer penitenciária por andar por aí a estropiar tudo quanto fosse bicho careta que me surgisse pela frente, a dar cabo da propriedade alheia por-dá-cá-aquela-palha, mas para dizer a verdade as fitas acabam por nos deixar algumas subreptícias influências bem lá no fundo do subconsciente, já que brincava frequentemente com armas, de fingir, entenda-se, daquelas em que se metia umas fitas com fulminantes e que a maior parte das vezes nem davam estalo de espécie alguma, que vinham aldrabados e cheios de humidade, e uma das vezes em que fomos brincar aos índios e aos caubóis para uma quinta acabámos por apanhar o chefe dos índios e deixámo-lo com uma corda ao pescoço pendurada de uma árvore, se bem que com os pés assentes no chão, entenda-se, durante uma boa meia hora até o irmos soltar, facto de que originou uma série de telefonemas da mãe do dito chefe para a minha mãe e as dos outros malandrins a informá-las de que o Toni já não queria brincar mais connosco e queria saber porquê e o que se tinha passado, factos que, muito naturalmente, todas as mães desconheciam na totalidade, como desconhecem a maior parte das vidas dos filhos, por mais que queiram estar ao corrente de tudo, o que é perfeitamente natural e compreensível, porque as crianças, apesar de o serem, ou sobretudo por o serem, precisam de que uma boa parte das suas acções permaneça bem escondida das mães e ainda mais dos pais, principalmente se metem asneira pelo meio, o que, diga-se de passagem, é o que acontece com bastante frequência, que eu cá tenho alguma experiência no assunto, e livrei-me de algumas boas palmadas precisamente pela discrição com que pautava várias das minhas actividades extra-curriculares, prática que levei depois pela adolescência fora, também não era coisa que fosse contar à família, olhem, andei com a minha namorada a fazer isto e aquilo, não faltava mais nada, uma pessoa depois de crescida também não vai pôr-se a contar essas coisas, eu sei que há quem faça, pelas mais diversas razões, mas eu sempre tive alguma tendência para o low-profile, coisas dessas ficam, quanto muito, para os amigos e amigas, e não é para todos, que diabo, uma pessoa não anda propriamente por aí a contar a sua vida íntima a qualquer bicho-careta que lhe apareça pela frente, pelo menos eu cá não, há coisas que mais vale comer e calar, não gosto de passar vergonhas, já me bastou aquela da mãe do Toni e da minha mãe a querer saber o que tinha acontecido, acho que na altura dei uma explicação um tanto ou quanto esfarrapada, mas parece que a coisa pegou porque me safei sem consequências de maior, caso contrário se calhar nem contava aqui esse episódio, que da tareia que levei quando era pequeno o melhor é nem falar mesmo.
quinta-feira, março 17, 2005
Illa de Arousa

A ria estende-se à minha frente
e há uma esteira mais clara
que ora se afasta ora se aproxima,
ao sabor de uma corrente que quase não há.
No meio das rochas descubro gente,
homens e mulheres, de olhos baixos,
que procuram sem saber bem o quê,
certamente o mistério da vida ali não o encontram,
enterrado na areia, mas quem sabe;
não falam, dizem coisas pela boca fora,
que podem ser palavras, frases,
“la niña se fué por arriba”,
e há um pequeno bote de amarelo berrante
com mais homens e mulheres lá dentro,
que se diverte a navegar para a frente e para trás,
agora já não restam mais ilhas para descobrir,
o mundo todo sabe onde ficam as gentes,
e a televisão já lá esteve para as filmar.
No casario, ao longe, brilham umas quantas janelas,
quase nada se ouve, nem sequer o mar,
que aqui é um enorme lago de água salgada.
Afasto o calor, escondo-me na sombra,
e ponho-me aqui a imaginar outros silêncios,
não sei que vida haverá depois deste sossego.
quarta-feira, março 16, 2005
Figuras tradicionais 2: o amolador
De tempos a tempos, ainda há coisa de poucos anos, ouvia-se um longo e persistente trinado que, aos poucos e poucos, se ia aproximando, até se conseguir distinguir uma escala de sons que se repetia em tom crescente e depois decrescente, e que à gente mais velha dava imediatamente para dizer olha, vem aí chuva, o que era normalmente quase tão certo quanto a morte e aos impostos, que, como dizem, nunca falham, nem há memória que tenham alguma vez falhado.
E, logo que esse trinado se interrompia, ouvia-se uma palavra que ecoava pela praça, amoladooooooor, aparecendo então a figura que arrastava à sua frente um carrinho de mão cheio de chapéus de chuva pendurados, e de outros instrumentos que manejava com uma eficácia de meter inveja, ao ponto de trazer a criançada embasbacada com a facilidade com que voltava a dar utilidade a um alguidar rachado, metendo-lhe três ou quatro gatos que faziam da peça partida loiça novamente inteira, que colocava varetas novas nos chapéus de chuva estragados, devolvendo-lhes a dignidade de voltarem a exercer a função da sua razão de existirem, fazendo das facas cegas os instrumentos cortantes que uma vez tinham sido.
Conheci um homem destes, o senhor Pacheco, galego talvez, como muitos dos que calcorreavam o país de cima a baixo em busca de vida melhor do que a que então levavam na sua Galiza natal, tornando vivas coisas já dadas por mortas, como se alguma magia houvesse naqueles gestos certeiros com que ressuscitava o que sem ele caminharia decerto para um destino incerto, ou porventura mais do que certo, o lixo, com uma paciência que parecia ser inesgotável, com uma fé que tinha por certo o resultado final, a de que as coisas que damos por acabadas no fundo ainda nem viveram metade da vida que lhes deu quem as criou, como se de um médico milagreiro se tratasse, o Sousa Martins do bricabraque, dos potes, dos alguidares, das facas e canivetes, das sombrinhas e do mais que sabia poder consertar, e dado o trabalho por findo, acabando-se-lhe a clientela, lá ia com o seu carrinho de mão, assobiando a melopeia para outro lado, para onde houvesse mais vidas quebradas que, por meia dúzia de tostões, regressassem aos seus normais afazeres domésticos.
Era homem de poucas palavras, o senhor Pacheco, mas nunca faltava com o bom dia ou boa tarde, e aguardava pacientemente que as clientes fossem surgindo, algumas meio envergonhadas pela necessidade de poupança que declaravam às vizinhas ao levarem-lhe a arranjar os tarecos, um ou outro já remendado em prévias visitas, e pouco troco dava às crianças que se reuniam em seu redor, com aquela curiosidade que as faz atentas a tudo o que de repente lhes altera os pequenos passos que começam a dar pela vida. Um dia o senhor Pacheco deixou de aparecer. Nunca soube o que lhe tinha acontecido, se regressara à sua terra de origem, se morrera, se deixara de trabalhar, e ninguém mais lhe seguiu os passos. Hoje compra-se tudo nos hipermercados e os caixotes de lixo vão cheios de coisas que morrem mais cedo do que deviam.
segunda-feira, março 14, 2005
Razões
Quando alguém tem razão, quererá isso dizer que essa pessoa não é totalmente desprovida de razão, ou que há razão para dar o braço a torcer e por isso se fica sem razão nenhuma, completamente atoleimado, como se diz em certas zonas do país, ou que se pode, mesmo assim, contra todas as probabilidades, manter um bocadinho da razão que ainda se pode ter apesar de a outra pessoa ter a razão toda pelo seu lado, e quando se diz não batas mais no ceguinho, poderá tal asserção trazer consigo alguma carga pejorativa, que de alguma maneira subreptícia signifique olha lá, eu sei que tu és sádico, andas para aí a bater em quem não vê nada de nada, apesar de poder ouvir muito bem, ainda melhor do que tu, ou trará mais alguma água no bico, do género não lhe batas mais que agora é a minha vez, que diabo de expressões tem a língua portuguesa, algumas realmente curiosas e francamente vexatórias, outras nem por isso, um tanto ou quanto enigmáticas, como o vai-te encher de moscas, ou então bem que podes limpar os pés à parede, verdade, verdadinha, que as pessoas não andam por aí de boca aberta a ver se apanham as moscas, para isso usam insecticida ou um mata-moscas à moda antiga e vão por aí fora a fazer pontaria aos ditos voadores, se calhar é isso, deve ser, é isso mesmo, quando se diz a alguém para se ir encher de moscas é porque essa pessoa insiste em bater com o mata-moscas numa mosca cega, presumivelmente do sexo masculino, e para não abusar de tanta pancada será preferível ir por aí fora de goela aberta a ver se as apanha dessa maneira, e se entretanto tiver os pés sujos, por ir de boca no ar e não ver por onde anda, metendo a pata em tudo o que é poça, para não dar cabo dos tapetes roga-se encarecidamente que limpe os pés na parede e não estrague a dita tapeçaria, eis a solução para tão ancestrais enigmas.
O mais certo é estar eu completamente enganado com tais raciocínios, ao ponto de virem logo comentá-los, se calhar achando que têm toda a razão e que estoutro a foi vender ao mercado e ficou sem nenhuma, ainda hão-de acusar-me de a ter perdido a jogar às cartas e de ser um viciado no jogo, as coisas que uma pessoa tem que ouvir ou que ler, há-de aparcer logo uma a dizer eu vi-te no Casino no outro dia, não eras tu?, ai não que não eras, se não eras era o diabo por ti, que eu cá tenho uma belíssima memória para caras, quando vejo uma já não me esqueço dela nunca mais, pode ser daqui a um ano, a dez ou a vinte, se volto a ver a pessoa digo logo já vi esta cara em algum lugar, depois é só pensar um bocadinho e zás, já sei onde foi, foi aqui ou acolá, no dia tal e tal, era de dia ou era de noite, a fazer isto ou aquilo, com mais estes e aqueles, há sempre gente para pensar nestas coisas e saber melhor do que nós por onde é que andamos, com quem e a fazer o quê, nem que seja nos confins do mundo e às horas mais estapafúrdias possíveis, eras tu, sim senhor, a mim não me vens cá comer a sopa em cima da cabeça - como se fosse coisa realmente interessante de fazer -, pois eras, e estavas a bater na mosca ceguinha, coitada da mosca, ela a fazer pela vida e tu zás, pás, a bater-lhe que nem um desalmado, e nem sequer tinhas limpado os pés à parede. Ora vejam só!
sexta-feira, março 11, 2005
Receber para jantar
Hoje tenho cá em casa para jantar uma celebridade dos blogues, nem mais nem menos do que o senhor Random Precision himself, em pessoa, tal e qual, e ainda a Lusitana, e, para começar, acho que vou encher a casa de santinhos, deixar uma Bíblia ou duas pela sala, como quem não quer a coisa, se calhar até um Alcorão, as Upanishades, o que tiver por aqui à mão de semear, só para ver no que é que dá, as velas já estão acesas, mas estou mesmo a ver que me esqueci do incenso, ora bolas, logo tinha que me esquecer do incenso, uma pessoa não pode lembrar-se de tudo e mais alguma coisa, mas que raio, logo tinha que ser o incenso, que faz tanta falta à atmosfera, preparei uma ou duas orações para antes da refeição, se não rezas não comes, toma lá e embrulha, uma missa gravada da televisão, cantos gregorianos, o Requiem do Mozart e o Messias do Haendel, a fotografia autografada do Papa Pio XII, uma outra de João Paulo II, o catecismo e o missal dos meus tempos da comunhão solene, que ainda para aí anda, retratos dos três pastorinhos e o DVD do filme Fátima, ah, ia-me esquecendo do oratório dedicado ao Senhor Santo Cristo dos Milagres e o crucifixo de estimação, bem como do terço de prata, só tenho pena é não ter por aqui a colecção de autocolantes do CDS e do PPD do TóColante, senão metia-os à sucapa ao pé dos aperitivos, e esqueci-me de ir buscar a bandeira da monarquia, o hino já está à mão, mas o que não vou mesmo deixar à vista são os DVd e os CD's dos Pink Floyd, isso é que não, nem pensar, que era tiro-e-queda, meu-dito-meu-feito, pimba, lá tinha que gramar com os Pink mais uma vez, já me chega quando lá vou a casa, o Roger Waters, o David Gilmour e companhia limitada, isso é que não, decididamente que não.
Mas como não quero ser mauzinho, nem nada que se pareça, afinal não vou fazer nada disso que acima disse, a não ser meter os Pink bem arrumadinhos onde nem o olhar os alcance, bem enfiados no fundo de uma gaveta do contador, ao pé dos clássicos todos, e eles que me perdoem pela invasão e pelo sacrilégio, agora os santinhos e o resto também era demais, ainda levava mas era com um post daqueles a chamar-me de padreco ou outra coisa ainda pior. Chiça!
quinta-feira, março 10, 2005
A besta-fera
Há já algum tempo que fui apresentado a um membro da raça felina que, por tudo e por nada, por dá-cá-aquela-palha, resume as suas relações sociais a bufar a quem quer que lhe surja pela frente, sem discriminações de qualquer espécie, e que não se faz rogada – por aqui se entende que a bicha pertence ao feminino sexo – a ferrar a dentadura e as unhas nos incautos que lhe estendam a mão ou que se aventurem a passar na sua área de acção, para isso servindo qualquer parte do corpo que lhe ofereçam para sua recreação, nele deixando uma indelével marca do seu enérgico temperamento que, desde tenra idade, sempre se manifestou como sendo nervoso e algo irascível, para já não dizer violento, embora um tanto ou quanto dissimulado, coisa aliás de somenos importância já que se trata de uma gata, pese no entanto o facto de ser ainda virgem e pouco dada a solicitações sociais de qualquer espécie, muito menos a demonstrações da carinho e amizade, que aparentemente recusa com altivez, embora o problema se coloque com maior acuidade quando os seus respectivos donos – embora na verdade ache que a dona é ela e que os humanos que com ela convivem é que obedecem aos seus mais pequenos caprichos – resolvem ir de férias para algum lado e tentam, o termo é exactamente este, tentam, passar a bola, melhor dizendo, a bicha, a algum desgraçado ou desgraçada de boa vontade que sofra de uma ingenuidade gritante, que foi o meu caso, ao receber com mordomias a criatura durante uns dias, que depois teria que transportar até casa de familiares para passar o resto da estada até ao regresso definitivo de férias dos seus estimados donos.
O caso é que a gata atirava-se sem aviso sempre que eu resolvia – ou necessitava – de vaguear pela casa, a minha, entenda-se bem, que pelos vistos tinha deixado de o ser, sem que eu soubesse lá muito bem quando é que tinha feito a transferência de propriedade, logo pela manhãzinha punha-se a passear-se pelo aquartelamento com o guizo que trazia à coleira a tilintar, fraca, fraquíssima ideia dos seus proprietários, e não me deixava pregar olho, eu que gosto de ficar no meu remanso até às tantas, e uma vez nem queria dar-me autorização para sair, metendo-se em frente à porta da rua, e bufando de forma enérgica sempre que metia mão à fechadura, de tal maneira que se a tentava desviar atirava-se de unhas e dentes aos pés, às pernas, num frenesim de recusa ao abandono, como se estar sozinha não fosse o seu estado mais natural, dada a fraca sociabilidade do animal, e o pior foi mesmo quando a tentei apanhar para a meter na caixa de transporte, esgatanhou-me todo, mesmo com as luvas grossas que já tinha calçado por prevenção a unhada chegou-me ao osso, após o episódio mal me via bufava que nem uma besta-fera, aquela coisinha pequenina estava mas era a tomar conta da minha vida inteira, a impedir-me de fazer fosse o que fosse, por pouco já nem saía à rua, estava mesmo a ver que ficava fechado em casa até esgotar os mantimentos todos, morria para ali à míngua, estava cercado em casa, e em conclusão os donos tiveram mesmo que regressar de férias para a virem buscar e deixar-me finalmente liberto daquela ferocidade que nunca em dias da minha vida tinha visto num tal grau de concentração.
A dita gata chegou a cair de um terceiro andar a partir a bacia, toda a gente pensava que morria, levaram-na ao veterinário, até este lhe deu poucos dias de vida, mas o que é certo é que ainda para lá anda, curou-se lindamente, e continua a infernizar a vida às visitas que se arriscam a entrar naquele último reduto da única besta-fera que tive o azar de conhecer.
Zorro
terça-feira, março 08, 2005
Pessoas
Pessoas. As pessoas. As pessoas têm vidas. Casas. Mulheres. Maridos. Pais. Filhos. E há as que não têm nada. E nos seus rostos lê-se um vazio marcado por silêncios inexoráveis, por tristezas infindas. Ou às vezes por nada. Porque essas pessoas nada têm. Nem casas. Nem mulheres. Nem maridos. Nem pais. Nem filhos. Nem mesmo um simples silêncio nos rostos. Muito menos sorrisos. O tempo caiu-lhes de repente sem sequer saberem de onde, e o que fazem é apenas ignorá-lo, como quem passa de lado por uma esmola que nem é dada, sem reparar na mão e nos olhos que ali estão, negros, castanhos, azuis, verdes, cinzentos, sem cor, com lágrimas que secaram por já nem saberem que o são, por não se recordarem mais como se chora.
segunda-feira, março 07, 2005
As chinesices dos ingleses
Pese embora a minha formação, sempre considerei que os ingleses eram mais esquisitos do que eu sou com a comida, para além do historial de pirataria que se empenham em esconder dos manuais de história, ou que pintam com as cores mais suaves das cartas de corso, que nada tem que ver com o Carnaval tal como o conhecemos e que a tais gentes nada diz, uma pessoa tem a ideia de que do norte da Europa só vêm bons exemplos, é preciso não exagerar, olha se de repente desatássemos todos a conduzir pela esquerda, havia de ser o bom e o bonito, quando pela direita já é o que é, se de um momento para o outro o Presidente da República se tornasse o chefe da igreja nacional, isso é que ia ser lindo, quer-me parecer que eram cá chinesices a mais para a nossa maneira de ser, que é mais pão-pão-queijo-queijo, lá se iam os nossos mais ou menos, assim-assim, que aquilo é gente cheia de certezas, que não têm dúvidas, que sabem sempre a quantas andam, horários certinhos alinhados pelo Big-Ben, onde é que já se viu a Morte ser um homem, um barco uma coisa feminina, francamente, até hoje não tenho memória que alguém tenha visto um barco de saias, mas pelos vistos lá para as Inglaterras é coisa habitual, tal como as sobremesas de ruibarbo, coisa intragável para quem já experimentou, um doce que não passa de umas couves cheias de açúcar, com talos e tudo, leite creme por cima, um autêntico nojo, mas também quem é capaz de comer batatas fritas cheias de cebola embrulhadas em papel de jornal e ainda chorar por mais está por tudo, aquilo é mas é um país de canhotos, e a religião católica sempre ensinou que a mão esquerda é a mão do diabo, cruzes canhoto, lá diz o ditado, isto sem desprimor para os esquerdinos, que cá na nossa terra eram educados desde pequeninos a utilizar à força a mão direita para o que lhes era natural usarem a esquerda, se calhar estamos a tornarmo-nos anglófilos, é o que é, não tarda muito em vez de bom dia é gude morningue, que a moda pegou, e parece que a querem fazer chegar às crianças desde os primeiros anos da escola, que já nem português aprendem quando mais as línguas dos outros, passam a vida nos picotados, recorta daqui e recorta dali, hoje vamos fazer uma tartaruga, toca tudo a escortanhar papel colorido para fazer as tais tartarugas, depois é muito bom para aqui muito bom para ali por causa das auto-estimas, a Joana sabe recortar muito bem, o Chiquinho já domina as cores na perfeição, precisa no entanto de trabalhar a tesoura com mais acerto, a Leninha consegue diferenciar os bichos após cinco anos de escolaridade, parabéns à Leninha, vamos dar-lhe um prémio, hoje é dia de prémios, e a Leninha vai ter um prémio especial, todos vão ter, nada de tristezas, mas para a Leninha é especial, amanhã é para os outros, hão-de ter todos prémios especiais, Salvador, não chores, amanhã na aula desenhas um gatinho e recebes um prémio especial também, e se não te lembrares não faz mal, eu digo-te, também não é preciso lembrar tudo, não é, se não souberes como é que se desenha um gatinho eu ensino, nem todos os meninos e meninas do terceiro ano sabem como é um gatinho, não é verdade, é, sim, senhora professora.
Chinesices destas já as temos por cá, é coisa que não falta, mas pelos vistos ainda vamos importar mais algumas, está visto que não conseguimos ser auto-suficientes em nada de nada, nem sequer nas chinesices.
sexta-feira, março 04, 2005
Testamento
No dia depois de eu morrer
poderás então vestir o meu cheiro à volta do corpo
e deitar-te à noite no meio da cama
com a cabeça deitada
onde eu sonhava contigo.
Irás então arrumar os meus segredos,
que conhecias tão bem como eu,
guardarás os meus brinquedos
numa caixa de papelão,
desarrumarás os livros das estantes
e de cima das mesas,
no meio de papéis inúteis,
e nas gavetas encontrarás as minhas mãos
à tua procura.
quinta-feira, março 03, 2005
Do tempo do ronca
As coisas já não são como eram, ouve-se por aí todos os dias, ou mais ou menos todos os dias, que nem sempre uma pessoa dá de caras com tais pessimistas profissionais, há dias em que eles nem saem de casa, ocupados a ver as televisões e a mordiscar nos calos de tudo o que lhe aparece pela frente, seja gente, bicho, fruta ou vegetal, recusando-se terminantemente a aderir à moda dos micro-ondas, dos leitores de discos compactos, dos dêvêdês, já nem para falar dos vídeos, quando muito, quando muito, ainda vão na era dos Beta, que isso sim é que era qualidade, e vira que torna, que a comida agora vem toda congelada, a fruta podre, as batatas meio cozidas pelo frio, nada tem sabor, nem é carne nem é peixe, ainda por cima tudo estrangeiro, espanhol, francês, das américas, do sul e das outras, da China, da Coreia, sabe-se lá de onde, antes é que era, aí sim, a comida sabia a comida, as couves eram couves, tirava-se uma fotografia e ficava-se a penar durante dias até uma pessoa poder ver como tinha ficado, se bem, se mal, com as cabeças cortadas, os pés, desfocada, desalinhada, desatinada, excluindo, muito naturalmente, o caso dos à la minuta, não havia tantos automóveis, andava-se mais a pé, era mais saudável, ou ficava-se uma data de tempo à espera da carreira, se uma pessoa quisesse escrever uma carta oficial era à máquina, com papel químico para ficar com cópias, quais computadores nem meios computadores, e quem mandava mandava mesmo e estava o caso arrumado, o resto estava ali mesmo era para obedecer, mais nada, andava-se à vontade e não era a toque de caixa como hoje, com os nervos sempre à flor da pele, os prazos para isto e para aquilo a esgotarem-se mais depressa do que os bilhetes para os concertos de música que vêm do estrangeiro, escutava-se a banda da vila, da cidade, do bairro, e era uma sorte, e quem a tinha comprava rifas e fazia uma festa sempre que lhe saía uma panela de alumínio, que o mais era de barro, a loiça, o púcaro, a panela, que boa é que era a comida feita nas panelas de barro, ou naquelas de ferro que se pendurava à lareira, tudo do mais fresquinho que havia, francamente onde é que isto irá parar, agoiram as vozes das sabedorias antigas, daquelas formadas nos adagiários, nos tempos que já lá vão e não voltam, cheios de saudades do Tony de Matos e do Tempo, Volta para Trás, do Fernando Farinha e quejandos, que aquilo é que eram vozes, que sabiam cantar alguma coisa que se visse, que se ouvisse, melhor dizendo.
Eu cá não concordo com tais tristezas, com estas saudades do tempo do ronca, mas uma pessoa tem que ver bem que às vezes se exagera um bocado, afinal de contas não se pode de repente meter tudo isto para trás das costas, os esquecimentos a maior parte das vezes não trazem nada de bom, mesmo nada, que uma pessoa que ignora o passado ou é tola ou faz-se, se calhar até é as duas coisas, vai dar no mesmo, do tola é que não passa, mas francamente não me está mesmo a apetecer nada voltar a dar à manivela para o carro pegar, que já me chega e sobra dar a volta à vida todos os dias depois de acordar. O pior é se a vida não pega, nem mesmo de empurrão, longe vá o agoiro.
quarta-feira, março 02, 2005
Sinal vermelho
Pare ao sinal vermelho, a frase está lá, mais ordem do que pedido, ou se calhar recomendação, avance por sua conta e risco, e por baixo um número de telefone para os que desesperem de tanto esperar, que se calhar ainda mais terão que aguardar até que lhes atendam a chamada, a espera pode ser prolongada, quem sabe, o aviso lá estará para alguma coisa, mas há um número na parede para sabermos onde estamos, a referência técnica, PN K 47.957, passagem de nível tal e tal, mas a janela fechada e já estragada não é bom sinal, por certo que não, quererá isto dizer que o funcionamento dos sinais está em directa relação com o estado de preservação dos vidros, as portadas fechadas que nos falam de ausência, não de recato, e os cartazes colados nas paredes vão ali ficando uns por cima dos outros, camadas de dias que já foram e que nunca mais serão, festas, bailes, nomes de grupos, de lugares, e haverá nomes de gentes, letras mais pequenas para quem tenha a persistência de ficar a decifrá-las, poderá haver quem o faça, quem passe a vida a ler o que vai nos cartazes, as letras miúdas, os pormenores, a intriga que lhes vai na alma, se houver bastante que esperar será uma maneira de passar o tempo, as pessoas precisam de letras, de palavras, de frases, se não as dizem têm que as ir buscar a algum lado, nem que seja aos cartazes.
terça-feira, março 01, 2005
Em amena cavaqueira
...as mulheres falam, falam muito, falam pela boca, pelos cotovelos, alto, muito alto, porque não deve ser fácil, mesmo nada fácil, fazer-se ouvir num grupo onde todas falam...
Quando vários homens se juntam em grupo está instalada a confusão, e o mesmo se poderá dizer das mulheres, se bem que destes casos não tenho propriamente o que se pode chamar experiência, que nunca andei por aí infiltrado em nenhum bando de mulheres, mas, sobretudo por obrigação profissional, mais do que uma vez fui o único elemento masculino em assembleias femininas, e para dizer a verdade nunca me senti lá muito à vontade, pelo menos o suficiente para não abrir a boca mais do que uma meia dúzia de vezes, se tanto, antes que levasse alguma que andasse de roda e a ver estrelas, que sempre fui mais de prevenir do que remediar, hábitos ancestrais, decerto, já que não tenho memória de nenhum homem na família que tivesse sucumbido repentinamente debaixo de algum ataque de fúria feminil, ou se o houve pelo menos a história foi bem abafada, a ponto de nunca ter transpirado nada, nem uma palavra que seja, nem sequer uma leve insinuação, porque as mulheres falam, falam muito, falam pela boca, pelos cotovelos, alto, muito alto, porque não deve ser fácil, mesmo nada fácil, fazer-se ouvir num grupo onde todas falam, de preferência ao mesmo tempo, se bem que terei algumas dúvidas se realmente pretendem fazer-se ouvir, ou se, na verdade, o que as move é apenas o gosto pela fala, um dos passatempos que considero estar entre os seus preferidos, para além do de comprar sapatos.
Vem isto a propósito de, mais uma vez, me ter visto numa alhada destas, de ficar mais ou menos a ouvir conversas cruzadas de um lado e de outro, e ficar mais mudo que um penedo, ou quase, e desligar de quando em vez o interruptor para preservar a sanidade mental, o que é hábito já enraizado e que não consigo evitar, às tantas por tantas dou por mim a levar com uma pergunta daquelas inconvenientes do tipo e tu, o que é que achas, e eu sem achar nada, nada de nada, nem a ponta do fio da meada da conversa, coisa que por norma acontece naqueles momentos em que tinha acabado de desligar-me por uns minutos para recarregar as baterias que normalmente trago dentro dos ouvidos para ver se não se me avaria de repente a cachimónia, zás, a pontaria é mais do que certeira, a pergunta ataca mais uma vez de repente, nem sei de onde é que veio, fico a olhar para um lado e para outro a ver se a conversa avança, estratégia que resulta quase sempre, se bem que há vezes que vai pelo cano abaixo, não é mesmo nada fácil uma pessoa acordar arrelampada com dois ou três – ou mais – pares de olhos a mirarem-nos fixamente à espera de não sei o quê, se calhar uma opinião brilhante, assim sem mais nem menos, vinda sabe-se lá de onde, e nisso as mulheres não perdoam, nem mesmo um bocadinho, se dão pelo facto de não lhes estarmos a prestar atenção, nem mesmo quando dela não precisavam por estarem entretidas umas com as outras, ficam piores que baratas, põem-se a olhar uma pessoa de lado e deixam de lhe dirigir palavra até sei lá quando, fica-se para ali mais transparente do que sei lá o quê, afundado num desprezo e numa ignorância suprema, não respondeste, ah, então deixaste de existir, pronto, nem sei quem és, não te conheço, caso arrumado, e a conversa segue alegremente em frente como se nada se tivesse passado, mas aquele que ali estava deixou de estar, se não sabes ouvir, para nós é como se não estivesses cá, que pecados é que um homem afinal traz às costas para sofrer semelhantes vilipêndios é o que eu gostava que me dissessem. Sorte, sorte, é que isso só acontece de quando em longe, que mais vale ficar com cara de parvo do que ser ignorado, pelo menos é o que eu acho, e também tenho direito a ter opinião, se bem que sozinho num grupo de mulheres o melhor é nunca ter opinião nenhuma, não vá a coisa dar para o torto e acabar por levar-se tanta tareia que nos deixe a alma mesmo negra de tanta pancada.
