A ideia para este livro surgira-me nem sei bem já nem onde nem quando, muito embora ainda me recorde de que tinha na altura entre mãos um outro projecto, que andava já pelas cento e muitas páginas, bastante adiantado, portanto, mas que penava já por três ou quatro anos de ladeira acima, ladeira abaixo, sempre à espera de um empurrãozito que pusesse a coisa em marcha. Aliás, já era hábito. Começava as coisas e depois deixava-as a meio, era assim com tudo, menos com as pessoas, ou às vezes até com as pessoas. Projectos começados tinha-os às dezenas, depois aparecia outra ideia, largava aquilo tudo e dava início a outra coisa, que nem sabia muito bem quando é que lhe ia deitar mão outra vez. Mas o ofício de escrita, pelo menos a mim, era assim que me assolava, em ondas, umas atrás das outras, que nem deixava rebentar à beira-mar. O pior de tudo é que nem sequer gostava lá muito de ondas, pelo menos ao pé. Ao longe, ainda a coisa ia, e o barulho da rebentação atraía-me ao sono, coisas antigas, se calhar ainda me corria nas veias algum sangue de navegadores de outros tempos, pelo menos dos antepassados que tinham arriscado uma viagem pelo meio do Atlântico desconhecido. Ou se calhar nem isso, poderiam ter nascido ali, já atlantes, escondidos até se misturarem com os novos colonos, gente rude e pobre, que a terra nenhuma que possuíam na vida levava a aventurar-se pelo mar fora.
Certo, certo, é que agora me tinha metido em mais uma, sem ter plena consciência de poder terminar fosse o que fosse. A ideia surgira através de um personagem, um homem, cínico, pelo menos cínico o bastante para detestar as mulheres, mas sentindo ao mesmo tempo uma enorme atracção por elas. O cinismo, no entanto, conduzira-o à sabedoria, assim o entendia ele, de poder exercer um certo poder sobre as mulheres, a que não seria certamente alheio o seu aspecto físico, bastante atraente, o suficiente para se fazer notar no meio dos muitos outros que se esforçavam, quantas vezes inutilmente, por se evidenciarem e conseguirem aquilo que todos certamente pretendiam: uma passagem pela cama delas - uma chegava, ou, se a coisa até corresse bem, duas ou três, mais do que isso já se tornaria um hábito, um compromisso, e disso a maioria fugia a sete pés.
Irritam-me as mulheres. O seu hábito característico de meter o nariz em tudo, de quererem ser feministas quando toda a gente sabe que são fêmeas, a não ser que elas mesmas alimentem algumas dúvidas acerca dessa sua condição, a pretensão de que se consegue ultrapassar todas as dificuldades se se der a primazia ao sentimento, de que pensar, racionalizar as coisas é um exagero inútil, tudo isso me irrita. O problema aqui é a sua inevitabilidade. As mulheres são inevitáveis.
Podia ter arrumado completamente este personagem. Podia tê-lo enfiado num bar qualquer, numa noite de inverno ou de verão, tanto faz, e tê-lo metido a beber vários whiskies de seguida, ou vodkas, ou outra coisa qualquer, até ficar suficientemente entorpecido mas nem tanto embriagado; e depois poderia pô-lo num automóvel a mais de 150 quilómetros por hora numa estrada indeterminada até se enfiar na traseira de um camião ou despistar-se numa curva mais apertada. Sei perfeitamente que isso teria sido possível. Contudo, iria espoliar o leitor da possibilidade de imaginar um hipotético futuro que poderia ter reservado para uma personagem como esta, e não me sinto sequer no direito de o fazer.
Por isso apenas irei colocar o teclado de parte e agarrar no rato do computador, e apontar a seta para uma cruzinha, lá em cima, no lado direito do monitor. Depois resta-me premir um botão e assim encerrar definitivamente esta narrativa. Nada mais. Está feito.