Guardado está o bocado para quem o há-de comer, é o que se diz por aí quando, em altura inesperada, alguém beneficia de uma repentina benesse, salve-se a cacofonia, ou aliteração, ou repetição, como se queira classificar tal sucessão de bês, mas quer-me parecer que tal frase carece de um fundamento que é a opinião do tal bocado, que muitas vezes é gente que anda e respira e tem vontade própria, pelo menos vamos crer que sim, que tem, e que por este ou por aquele motivo se vê enredada em semelhantes considerandos sem poder dizer nem ai nem ui, nem muito menos á ou bê, não concordo, não sou nenhum bocado, nem ando para aí à vontade de quaisquer antropófagos, isso é que era bom, vai-se a ver e lá no fundo se calhar ainda não fomos capazes de ultrapassar a fase do canibalismo, já dizia o Padre António Vieira, em inusitada alegoria, pelo menos para a época, que as pessoas se comiam umas às outras, o que, mesmo de maneira figurada, se me afigura francamente um exagero, deve ser da maneira de ser cá da gente lusa, essa tendência para exacerbar os factos e as acções das gentes, que dos animais não tenho grande memória que se teça tais considerações, para além do referido religioso, diga-se, mas nunca se sabe, se calhar há quem o faça e eu é que sou distraído, de certeza que sou, ou mal informado, ou tudo junto, mas nunca me achei lá muito com cara de enciclopédia, muito menos ambulante, que por enquanto ainda vou sendo capaz de ir daqui para ali pelos meus próprios pés, ou com o auxílio de meios de locomoção mecânicos, entenda-se por isto um automóvel, um comboio, um avião ou o que quer que seja, às vezes para bom entendedor meia palavra não basta, não é suficiente, é preciso dizer tudo tim-tim-por-tim-tim, explicar muito explicadinho, deixar as coisas claras como água, não deixar dúvidas de espécie alguma para que depois não haja mal entendidos.
Vem isto a propósito de coisa nenhuma, que é a melhor maneira de se escrever a despropósito, porque também não sei qual é a obsessão que algumas pessoas têm de que as coisas devem estar sempre relacionadas com algum outro facto que lhes seja extrínseco, não é verdade, não acredito nisso, e se o cresse não estava para aqui a disparatar sem que tivesse existido qualquer acontecimento que despoletasse estas elucubrações, nada de extraordinário, mesmo nada de nada, para além de ter começado a chover, o que pode ser muito bom para as plantas e para as reservas aquíferas, mas para mim não, que detesto ter de molhar-me sempre que meto o nariz fora de portas, abrir a porta do carro e depois o chapéu de chuva, que se embrulha todo com o resto das coisas que já tenho que levar nas mãos, com a papelada que às tantas por tantas vai parar ao chão e fica toda ensopada, tal como eu, que já pareço um pinto, se bem que não sei porque cargas de água é que são só os pintos que hão-de estar molhados que nem pintos, dá a ideia que o resto da bicharada é impermeável, e a propósito de impermeáveis nos últimos anos não comprei nenhum, pelo que me sujeito ainda mais a apanhar uma molha das antigas, que hoje em dia já não há molhas de jeito, e depois ter que voltar para o carro com as mãos cheias de coisas e a segurar o chapéu de chuva aberto, tirar a chave do carro, enfiar as coisas lá dentro, depois enfiar-me eu lá dentro também, com o chapéu de chuva ainda aberto, e fechá-lo só depois de estar sentado no lugar, fazendo uma ginástica de jogos de braços e de mãos para evitar os pingos da chuva, que acabam sempre por entrar e por me deixar enredado numa data de papéis e de chaves de carro e de chapéus de chuva e de sacos de compras e de jornais e revistas entretanto adquiridos para estar a par do que se passa, que por norma é sempre o mesmo, com ligeiras variantes, não, para ser realmente franco não gosto da chuva, detesto molhar-me contra a minha vontade, mas a chuva havia de vir, estava-se mesmo a ver, se está para durar ou não é coisa que se há-de ver, mas tinha mesmo que estar guardada para esta altura, essa é que é essa, não é coisa que se coma, a chuva, quanto muito bebe-se, por isso não vejo lá muita lógica que a chuva estivesse guardada para mim, que tenho que comer com ela logo que a Primavera está para começar, mas que remédio, tenho que me conformar, se é para o bem de todos pois que venha, mas que fique bem claro que eu não votei na chuva, nem que viesse nesta altura. Não votei, não.