Há já algum tempo que fui apresentado a um membro da raça felina que, por tudo e por nada, por dá-cá-aquela-palha, resume as suas relações sociais a bufar a quem quer que lhe surja pela frente, sem discriminações de qualquer espécie, e que não se faz rogada – por aqui se entende que a bicha pertence ao feminino sexo – a ferrar a dentadura e as unhas nos incautos que lhe estendam a mão ou que se aventurem a passar na sua área de acção, para isso servindo qualquer parte do corpo que lhe ofereçam para sua recreação, nele deixando uma indelével marca do seu enérgico temperamento que, desde tenra idade, sempre se manifestou como sendo nervoso e algo irascível, para já não dizer violento, embora um tanto ou quanto dissimulado, coisa aliás de somenos importância já que se trata de uma gata, pese no entanto o facto de ser ainda virgem e pouco dada a solicitações sociais de qualquer espécie, muito menos a demonstrações da carinho e amizade, que aparentemente recusa com altivez, embora o problema se coloque com maior acuidade quando os seus respectivos donos – embora na verdade ache que a dona é ela e que os humanos que com ela convivem é que obedecem aos seus mais pequenos caprichos – resolvem ir de férias para algum lado e tentam, o termo é exactamente este, tentam, passar a bola, melhor dizendo, a bicha, a algum desgraçado ou desgraçada de boa vontade que sofra de uma ingenuidade gritante, que foi o meu caso, ao receber com mordomias a criatura durante uns dias, que depois teria que transportar até casa de familiares para passar o resto da estada até ao regresso definitivo de férias dos seus estimados donos.
O caso é que a gata atirava-se sem aviso sempre que eu resolvia – ou necessitava – de vaguear pela casa, a minha, entenda-se bem, que pelos vistos tinha deixado de o ser, sem que eu soubesse lá muito bem quando é que tinha feito a transferência de propriedade, logo pela manhãzinha punha-se a passear-se pelo aquartelamento com o guizo que trazia à coleira a tilintar, fraca, fraquíssima ideia dos seus proprietários, e não me deixava pregar olho, eu que gosto de ficar no meu remanso até às tantas, e uma vez nem queria dar-me autorização para sair, metendo-se em frente à porta da rua, e bufando de forma enérgica sempre que metia mão à fechadura, de tal maneira que se a tentava desviar atirava-se de unhas e dentes aos pés, às pernas, num frenesim de recusa ao abandono, como se estar sozinha não fosse o seu estado mais natural, dada a fraca sociabilidade do animal, e o pior foi mesmo quando a tentei apanhar para a meter na caixa de transporte, esgatanhou-me todo, mesmo com as luvas grossas que já tinha calçado por prevenção a unhada chegou-me ao osso, após o episódio mal me via bufava que nem uma besta-fera, aquela coisinha pequenina estava mas era a tomar conta da minha vida inteira, a impedir-me de fazer fosse o que fosse, por pouco já nem saía à rua, estava mesmo a ver que ficava fechado em casa até esgotar os mantimentos todos, morria para ali à míngua, estava cercado em casa, e em conclusão os donos tiveram mesmo que regressar de férias para a virem buscar e deixar-me finalmente liberto daquela ferocidade que nunca em dias da minha vida tinha visto num tal grau de concentração.
A dita gata chegou a cair de um terceiro andar a partir a bacia, toda a gente pensava que morria, levaram-na ao veterinário, até este lhe deu poucos dias de vida, mas o que é certo é que ainda para lá anda, curou-se lindamente, e continua a infernizar a vida às visitas que se arriscam a entrar naquele último reduto da única besta-fera que tive o azar de conhecer.