Quando alguém tem razão, quererá isso dizer que essa pessoa não é totalmente desprovida de razão, ou que há razão para dar o braço a torcer e por isso se fica sem razão nenhuma, completamente atoleimado, como se diz em certas zonas do país, ou que se pode, mesmo assim, contra todas as probabilidades, manter um bocadinho da razão que ainda se pode ter apesar de a outra pessoa ter a razão toda pelo seu lado, e quando se diz não batas mais no ceguinho, poderá tal asserção trazer consigo alguma carga pejorativa, que de alguma maneira subreptícia signifique olha lá, eu sei que tu és sádico, andas para aí a bater em quem não vê nada de nada, apesar de poder ouvir muito bem, ainda melhor do que tu, ou trará mais alguma água no bico, do género não lhe batas mais que agora é a minha vez, que diabo de expressões tem a língua portuguesa, algumas realmente curiosas e francamente vexatórias, outras nem por isso, um tanto ou quanto enigmáticas, como o vai-te encher de moscas, ou então bem que podes limpar os pés à parede, verdade, verdadinha, que as pessoas não andam por aí de boca aberta a ver se apanham as moscas, para isso usam insecticida ou um mata-moscas à moda antiga e vão por aí fora a fazer pontaria aos ditos voadores, se calhar é isso, deve ser, é isso mesmo, quando se diz a alguém para se ir encher de moscas é porque essa pessoa insiste em bater com o mata-moscas numa mosca cega, presumivelmente do sexo masculino, e para não abusar de tanta pancada será preferível ir por aí fora de goela aberta a ver se as apanha dessa maneira, e se entretanto tiver os pés sujos, por ir de boca no ar e não ver por onde anda, metendo a pata em tudo o que é poça, para não dar cabo dos tapetes roga-se encarecidamente que limpe os pés na parede e não estrague a dita tapeçaria, eis a solução para tão ancestrais enigmas.
O mais certo é estar eu completamente enganado com tais raciocínios, ao ponto de virem logo comentá-los, se calhar achando que têm toda a razão e que estoutro a foi vender ao mercado e ficou sem nenhuma, ainda hão-de acusar-me de a ter perdido a jogar às cartas e de ser um viciado no jogo, as coisas que uma pessoa tem que ouvir ou que ler, há-de aparcer logo uma a dizer eu vi-te no Casino no outro dia, não eras tu?, ai não que não eras, se não eras era o diabo por ti, que eu cá tenho uma belíssima memória para caras, quando vejo uma já não me esqueço dela nunca mais, pode ser daqui a um ano, a dez ou a vinte, se volto a ver a pessoa digo logo já vi esta cara em algum lugar, depois é só pensar um bocadinho e zás, já sei onde foi, foi aqui ou acolá, no dia tal e tal, era de dia ou era de noite, a fazer isto ou aquilo, com mais estes e aqueles, há sempre gente para pensar nestas coisas e saber melhor do que nós por onde é que andamos, com quem e a fazer o quê, nem que seja nos confins do mundo e às horas mais estapafúrdias possíveis, eras tu, sim senhor, a mim não me vens cá comer a sopa em cima da cabeça - como se fosse coisa realmente interessante de fazer -, pois eras, e estavas a bater na mosca ceguinha, coitada da mosca, ela a fazer pela vida e tu zás, pás, a bater-lhe que nem um desalmado, e nem sequer tinhas limpado os pés à parede. Ora vejam só!