U
ma boa parte da minha infância passou-se sob a influência dos filmes que ia vendo passar nos cinemas, onde à data muito corriam fitas de caubóis, de índios, de pirataria, de gladiadores, para além de muitos outros que não estava autorizado a ver, devido à idade e às classificações para maiores de tantos anos, que iam dos 6 aos 12, aos 17 e adultos, que ainda sou do tempo em que frequentemente se pedia bilhete de identidade e se negava a entrada, mesmo com bilhete na mão, e havia até inspectores que de quando em vez aproveitavam para ver um filme à borla e verificavam se havia menores onde não devia haver, isto em estrita concordância com a lei de classificação dos espectáculos, que na sua grande maioria iam retalhados pela censura e pelas frequentes costuras provocadas pelo corta e cola depois de um bom pedaço da fita ter ardido durante a projecção, com óbvios protestos da assistência e uns bons dez minutos ou mais de demora para que o remendo se efectuasse, em que a audiência se entretinha a lançar arrotos, ou a atirar papéis, cascas de amendoins ou coisa pior da geral para a plateia, quando não se punha a aventar hipóteses durante o decorrer do filme, a avisar o personagem que, desavisado de todo, estava mesmo para ser atingido pelas costas com um ele está atrás da porta, ou com um dá-lhe agora, e nas matinés infantis pateava sonoramente ao som dos cascos dos cavalos, gritava animadamente quando aparecia a cavalaria para salvar os desgraçados que estavam debaixo de um ataque dos índios, não sem que antes tivessem morrido uns quantos e já poucos restassem para serem salvos, para grande azar dos que se tinham entretanto deixado matar, ou então aplaudia freneticamente, ainda durante a apresentação, os filmes de desenhos animados.
Tais influências devem ter-me sido francamente perniciosas, a julgar pelas diatribes que muitos e piedosos pedagogos, eu escrevi piedosos, mas quase ia trocando as duas primeiras vogais, vieram rogando ao longo dos anos a propósito da violência nos desenhos animados e no cinema de uma maneira geral, e ainda nem sei como não acabei delinquente e a cumprir pena numa qualquer penitenciária por andar por aí a estropiar tudo quanto fosse bicho careta que me surgisse pela frente, a dar cabo da propriedade alheia por-dá-cá-aquela-palha, mas para dizer a verdade as fitas acabam por nos deixar algumas subreptícias influências bem lá no fundo do subconsciente, já que brincava frequentemente com armas, de fingir, entenda-se, daquelas em que se metia umas fitas com fulminantes e que a maior parte das vezes nem davam estalo de espécie alguma, que vinham aldrabados e cheios de humidade, e uma das vezes em que fomos brincar aos índios e aos caubóis para uma quinta acabámos por apanhar o chefe dos índios e deixámo-lo com uma corda ao pescoço pendurada de uma árvore, se bem que com os pés assentes no chão, entenda-se, durante uma boa meia hora até o irmos soltar, facto de que originou uma série de telefonemas da mãe do dito chefe para a minha mãe e as dos outros malandrins a informá-las de que o Toni já não queria brincar mais connosco e queria saber porquê e o que se tinha passado, factos que, muito naturalmente, todas as mães desconheciam na totalidade, como desconhecem a maior parte das vidas dos filhos, por mais que queiram estar ao corrente de tudo, o que é perfeitamente natural e compreensível, porque as crianças, apesar de o serem, ou sobretudo por o serem, precisam de que uma boa parte das suas acções permaneça bem escondida das mães e ainda mais dos pais, principalmente se metem asneira pelo meio, o que, diga-se de passagem, é o que acontece com bastante frequência, que eu cá tenho alguma experiência no assunto, e livrei-me de algumas boas palmadas precisamente pela discrição com que pautava várias das minhas actividades extra-curriculares, prática que levei depois pela adolescência fora, também não era coisa que fosse contar à família, olhem, andei com a minha namorada a fazer isto e aquilo, não faltava mais nada, uma pessoa depois de crescida também não vai pôr-se a contar essas coisas, eu sei que há quem faça, pelas mais diversas razões, mas eu sempre tive alguma tendência para o low-profile, coisas dessas ficam, quanto muito, para os amigos e amigas, e não é para todos, que diabo, uma pessoa não anda propriamente por aí a contar a sua vida íntima a qualquer bicho-careta que lhe apareça pela frente, pelo menos eu cá não, há coisas que mais vale comer e calar, não gosto de passar vergonhas, já me bastou aquela da mãe do Toni e da minha mãe a querer saber o que tinha acontecido, acho que na altura dei uma explicação um tanto ou quanto esfarrapada, mas parece que a coisa pegou porque me safei sem consequências de maior, caso contrário se calhar nem contava aqui esse episódio, que da tareia que levei quando era pequeno o melhor é nem falar mesmo.