U ma vez por outra acontecia-lhe mordiscar as palavras como um cão a quem atiraram um osso meio descarnado para roer, pegava-se por tudo e por nada, e por ainda menos era capaz de, em meia dúzia de frases, atiradas ao acaso no meio de uma conversa que até então decorria da forma mais amena possível, gerar um tal burburinho que só não chegava a vias de facto porque se pisgava de mansinho, da forma mais discreta que lhe era possível, sem que ninguém desse por nada, entretido que estava o grupo em fazer das tripas coração para que da discussão nascesse a luz, ou pelo menos a calmaria que antes havia e que entretanto deixara de haver só porque a negrura daquela alma que lhe vivia no corpo tinha largado um bocado de tinta como fazem os chocos quando se sentem ameaçados, se bem que, a dizer verdade, nem havia razão para tal, mas a nuvem de ira que se tinha abatido sobre o grupo dava-lhe jeito para disfarçar o movimento de retirada, prática que aliás lhe era habitual nessas alturas, que não gostava de confusões, apenas de as provocar, para mais tarde apreciar a ressaca e semear mais veneno entre os conversadores que se haviam digladiado e posteriormente desaguisado, tinha armazenado lá bem dentro de si tanta quantidade de fel que chegava e sobrava para as eventuais crises de desânimo que uma vez por outra o tornavam completamente insociável, como se alguma vez tivesse nascido para se dar com os outros, facto que desde bem cedo os pais lhe tinham notado, pelas sucessivas manifestações de desagrado que a vizinhança lhes ia fazendo chegar, pelas vezes sem conta que tinham ido à escola para ouvir as professoras queixarem-se do mau ambiente que criava nas turmas, pelos inúmeros conselhos para que levassem o miúdo ao psicólogo, o que sempre tinham recusado para não criar estigmas na criança, que mais tarde aquela mania havia de passar, o tempo tudo resolve, diziam de si para si ou um para o outro, tão equivocado que era aquele amor ao filho único de um casamento já serôdio que por um triz nem chegava a dar frutos.
E a vida do Heitor, que devia o nome não de forma directa à figura de guerra de Tróia mas ao compositor Berlioz, já que os pais se haviam conhecido durante uma récita da ópera As Troianas, lá se foi compondo, aos poucos e poucos, destes momentos que para ele constituíam os únicos episódios em que era real e completamente feliz e nos quais se sentia realizado, que tinha aliás para si como propósito de vida, como única razão que a seus olhos justificava a sua própria existência, à qual não dava outro propósito que não esse, e não raros eram os dias em que exultava por ter tido a capacidade de, sem que lhe dessem o mérito, que dispensava, criar um tal clima no consultório de advocacia onde trabalhava que punha os clientes contra os próprios advogados, as secretárias contra os estagiários, as telefonistas a berrarem com os desgraçados que para lá ligavam a marcar consultas, e quando ia a tribunal as suas faculdades atingiam o supra-sumo ao gerarem tal controvérsia entre os delegados do Ministério Público, os juízes, os advogados, os réus, as testemunhas, os escrivães, que uma vez por outra os julgamentos acabavam por levar muito mais meses do que aquilo que deviam, num sistema judicial já de si perfeitamente demorado, sem que, no entanto, lhe fossem imputadas quaisquer culpas pelo sucedido, porque sabia fazê-las tão bem que ninguém chegava a dar por nada, até que um dia deu de caras com uma juíza que deu pela marosca, ferrou-lhe o dente, que é como quem diz agarrou-o com todos os subterfúgios que a lei lhe dispensava, ameaçou-o com queixa à Ordem, com pena de prisão, acabaram a jantar juntos, a ir ao cinema, ao teatro, à ópera, a passar férias em Itália, casaram, tiveram quatro filhos, amansou-o completamente, pô-lo com rédea curta, o Heitor deixou de se meter em discussões, ficou mais mansinho do que gatinho de colo, viu-se de repente a ter que resolver disputas entre os filhos, mas de vez em quando, de longe em longe, às escondidas, para não perder o hábito, escreve umas cartas para os jornais, que assina com um nome falso, a semear a discórdia dentro do partido do governo. O que, diga-se, pode até ser bem salutar.