que é para mim profundamente estranho é a razão inversamente proporcional entre a quantidade de iluminação existente nas casas das pessoas e a sua idade, já que, ao que parece, quanto mais as pessoas vão envelhecendo menor é a potência das lâmpadas que utiliza, o que deverá por certo ser uma questão que intriga uma boa parte dos oftalmologistas, os quais pretendem que com a idade se vê cada vez menos, quando certo, certo, é que as pessoas com a idade usam menos luz para ver seja o que for, ou então é por já não andarem às pressas e terem tempo para tudo e mais alguma coisa é que essas pessoas, face à inusitada perda do mais minúsculo dos objectos, conseguem levar uma eternidade à sua procura, pensando certamente, e com razão, que tal coisa não tem pernas para andar e por isso há-de aparecer mais cedo ou mais tarde, cá para mim o ideal para essas pessoas era ainda a luz de vela, de candeeiro a petróleo é que não, porque deita mau cheiro e dá uma trabalheira danada andar a arrastar garrafões de petróleo pela rua fora, que ainda por cima é um produto inflamável, para já não falar nas torcidas que se tem que enfiar no sítio correcto e nos torcicolos que se sofre para meter aquilo correctamente, deve ser exactamente por isso que ainda falam em lâmpadas de 25 velas, que muitas vezes é o que usam, com 25 velas faz-se uma festa, e chega muito bem, não se cansam de afirmar, que não é preciso exagerar, ainda me lembro da sonolência que me dava em casa dos meus avós, com tal iluminação e o semi-silêncio que por lá imperava, depois do jantar então era uma completa pasmaceira, que não via a hora de voltarmos todos para casa, e nessa altura nem tinha voto na matéria, por isso era aguentar estoicamente o resto do serão e tentar não adormecer que era coisa que ficava mal, sevícias destas acho que já nem se usam, mas as coisas eram assim mesmo e ai de quem mostrasse cara de contrariedade ou se pusesse com lamúrias, a minha avó lá jogava um bocadinho às cartas e aproveitava a pouca luz para fazer uma data de batota, e uma belíssima justificação para quando era apanhada era que não tinha reparado, que não tinha visto bem, como se a culpa das lâmpadas de 25 velas não fosse dela mas das crianças, que nem sequer chegavam aos candeeiros do tecto, nem empoleiradas em escadotes, se fosse agora saía mas era um g'anda lata e estava o caso arrumado, quando comecei a ler as primeiras letras lá me esforçava por conseguir decifrar umas linhas nos livritos que me autorizavam a levar para ajudar a passar o tempo, debaixo do olhar inquisidor do meu avô, meio escondido por detrás do fumo dos charutos, cá para mim a luz chegava-lhe e sobrava-lhe, que para ficar sentado a fumar charutos não é cá precisa grande iluminação, ainda para mais assim não se via bem o que é que se estava a comer ao jantar, que era invariavelmente galinha, que para mim se transformava em carapaus, que eu galinha nem vê-la com pouca luz, quanto mais com muita, e no final lá surgia o pão-de-ló da minha avó sempre meio afundado, o meu pai dizia que ela se tinha sentado em cima, era a piada habitual, para observar tais iguarias também não era preciso mais do que lâmpadas de 25 velas, e se calhar se toda a gente pensasse da mesma maneira não andávamos a importar electricidade do estrangeiro e éramos todos mais poupadinhos.
Há coisas ainda piores do que os responsos a Santo António, que são as cartas em cadeia (nem sei bem se é assim que se denomina tal coisa) a prometer uma catadupa de maldições, maus olhados e azares de todos os géneros e feitios a quem se atrevesse a quebrar a corrente, como a maldição de que me lembro de tempos recuados, chuva, nevoeiro e tempestades, feitiço de Cleópatra, e nunca percebi para que tais coisas serviam, deve ser da minha ingenuidade congénita, só pode ser isso, mas houve quem se tivesse infelizmente lembrado de me enviar um questionário de cadeia, desses inventados por um sádico qualquer para atazanar os amigos e mais tarde infectar uma data de desprevenidos como eu, um senhor que, além de vir cá a casa abarbatar-se com as vitualhas que lhe ofereço de quando em vez, ainda por cima depois me apresenta a conta sob a forma de perguntas. Só podia ser coisa de advogado...
Não podendo sair do Fahrenheit 451, que livro quererias ser?
Poderia alegremente dizer um livro de cheques, mas como hoje em dia uma tal coisa já peca por vetustez, pelo menos para o comum dos cidadãos, e cheques carecas são o que mais abunda por aí, resolvendo desde já precaver-me contra investigações judiciárias, prisões preventivas, penas suspensas e sei lá mais que sarilhos, e ainda por cima porque este negócio me foi passado por um advogado, sendo por isso devido algum respeito ao cumprimento da lei, poderia muito calmamente enveredar por uma das minhas manias e dizer que era A Balada do Mar Salgado do Hugo Pratt, mas como não deve ser nada fácil decorar texto e desenhos, ainda para mais com o jeito que tenho, o melhor será ficar-me mesmo pelas letras, e referir o Peregrinatio Ad Loca Infecta, de Jorge de Sena, que lugares nauseabundos é o que mais começo a encontrar sempre que me dá na gana meter-me por aqui e por ali.
Já alguma vez ficaste apanhadinho por uma personagem de ficção?
Pelo anjo da Barbarella quando li a história e vi o filme, que me meteu cá uma inveja na altura que nem vos digo nem vos conto, isto para calar bem caladinho alguns outros momentos em que fiquei verde e não foi por ser sportinguista nem nada que se parecesse, mas houve mais tarde alguns personagens masculinos dos livros do Henry Miller que me deixaram ainda mais de cara à banda, vai-se a ver e é algum tipo de defeito ou tara, e se não for é mesmo cá uns formigueiros que nos atacam assim de repente quando uma pessoa vai passando os olhos por estes livros ou por aqueles, ele há coisas que de vez em quando nos passam pela vista que nos deixam um bocado atordoados, já fiquei assim por diversas vezes, já, sim senhor, umas mais, outras menos. Mas também não me importava nada de passar por Corto Maltese...
Qual foi o último livro que compraste?
...xa cá ver, acho que foram três, em simultâneo, quatro, se contar uns dias antes, por isso não vou fazer discriminações, e paguei-os com cartão multibanco, que é coisa que dá bastante jeito para uma pessoa não andar por aí com a carteira cheia de dinheiro que ainda se arrisca a levar uma traulitada e a ficar sem nada, e se apresenta queixa depois ainda vêm juízes e advogados, para já não dizer polícias, acusarem uma pessoa de andar com dinheiro, mas para que é que o senhor queria andar com dinheiro na carteira?, estava-se mesmo a ver que andava a pedir que o roubassem, nunca ouviu falar em cartões de débito ou de crédito?, se bem que há que se entretenha na mesma a pedir emprestados os cartões e os respectivos códigos, mas esses livros não foram roubados nem nada, que não se fique com a ideia de que ando a roubar livros nas livrarias nem seja onde for, passo a nomeá-los, de João Aguiar, O Jardim das Delícias, Edições Asa, Porto, 2005, ISBN 972-41-4144-6, para que fique aqui a informação completa (está-me a parecer que isto é uma sondagem patrocinada pelas editoras em vésperas de feira do livro), João Miguel Fernandes Jorge, Castelos I a XXXV, Averno, sem lugar de edição, 2004, sem ISBN (para minha grande tristeza), de Maria José Guerreiro Duarte, As Armadilhas da Paixão, Vega, Lisboa, 2005, ISBN 972-699-761-5, Umberto Eco, A Misteriosa Chama da Rainha Loana, Difel, Miraflores, 2005, ISBN 972-29-0732-8, ou não fosse eu um maníaco dos quadradinhos por a obra conter algumas referências (e ilustrações) sobre o assunto. Ah, ia-me esquecendo do volume 16 dos Spirit Archives, da Will Eisner, publicado pela DC. Era grave!
Qual foi o último livro que leste?
De Martin Amis, O Cão Amarelo, Teorema, Lisboa, 2004, ISBN 972-695-596-3, por ser um autor de que gosto e que já traduzi para português, para ver se a tradução estava bem feita (isto é subterfúgio, bem sei), e de facto não estava, se bem que não é fácil traduzi-lo, mesmo nada fácil, mas podia estar bem melhor, não gostei de certas expressões, que não são nada naturais na língua portuguesa, nota-se o esforço mas não chega, enfim, é uma opinião, mas achei a obra menos interessante do que outras que já li do mesmo autor.
Que livros estás a ler?
Só faltava, já agora, virem vasculhar-me as prateleiras, os livros que tenho empilhados na mesa de cabeceira, depois abrirem as gavetas para ver se há alguma coisa inconfessável escondida lá dentro, não querem lá ver...
Como costumo ler mais do que um livro ao mesmo tempo, aproveito aqui para avisar que sou fã de quadradinhos (ainda não tinha dito isto em lado nenhum, pois não?), e que normalmente deito mão a isto e aquilo (para ler ou reler), por isso ando a ler o volume 4 da (re)edição da DC Archives de The Plastic Man, de Jack Cole (estou à espera do volume 16 de Spirit Archives, de Will Eisner, já adquirido a Tales of Wonder pela Internet), vou aí pela página 50, mais coisa menos coisa, de As Armadilhas da Paixão, de Maria José Guerreiro Duarte, Vega, Lisboa, 2005, ISBN 972-699-761-5, e ainda vou lendo uns capítulos da História da Lisboa de Dejanirah Couto, Gótica, Lisboa, 2004, ISBN 972-792-046-2. Entretanto, já depois de ter escrito estas linhas, mas ainda antes de ter colocado o post, chegou o tal volume 16 dos Spirit Archives, de Will Eisner, editado pela DC e adquirido à Tales of Wonder, a que vou deitar a mão já hoje.
Que livros (5) levarias para uma ilha deserta?
Em primeiro lugar, se me esquecesse dos óculos bem que podia dispensar os livros, que sem eles nem me valia de nada ter lá a Biblioteca do Congresso à disposição, sem eles é que nada feito, nada de nada, mas se ao menos tivesse essa lembrança podia então exercer alguma selectividade. Para ler e reler sempre, a referida Peregrinatio Ad Loca Infecta, de Jorge de Sena, isto se não pudesse levar a Obra Completa, pelo menos um dos volumes, que ao menos sempre tinha mais leitura, depois A Balada do Mar Salgado do Hugo Pratt, a Poesia do Século XX editada pelo Jorge de Sena, Ficções do Jorge Luís Borges (aqui hesito entre este e o Livro de Areia, se bem que podia também levar o volume 1 das Obras Completas, que ainda por cima tem O Aleph e a História Universal da Infâmia), e ainda me falta um, se fiz bem as contas, que podia ser uma edição das Páginas Amarelas, não é que me servisse de muito (a leitura sempre entretinha), mas quando acabasse o papel higiénico podia dar bastante jeito.
A quem vais passar este testemunho (três pessoas) e porquê?
A quem podemos chatear com um questionário deste género? Eis uma boa pergunta. Como já não posso reenviá-lo ao senhor que me veio desassossegar o juízo, irei enviá-lo a pessoas que não conheço pessoalmente, excepto no primeiro caso, e assim já não me podem bater, nem vir fazer manifestações aqui à minha porta, nem muito menos furar-me os pneus do carro, que serão: a LolaViola, para se entreter a responder a perguntas parvas e para ver se ao menos mete um post novo, que anda um tudo-nada preguiçosa ultimamente, à Estounua, do Vareta, para poder ao menos rogar-me uma maldição e porque vou mexericar nas suas leituras :-) , além do facto de, tal como a Lola, conhecer pessoalmente o senhor que me enviou isto e a quem encomendo um bom raspanete, para já não falar numa coça das antigas da próxima vez que se encontrarem, e ainda ao Vizinho porque não o conheço, mas é sportinguista como eu e porque, como gosta de motos, bem como o senhor que me enviou esta joça, pode ser que um dia destes se encontrem por aí os dois e cheguem a algum entendimento acerca deste desporto, cujo objectivo eu nunca percebi.
segunda-feira, maio 09, 2005
Dilema
Estou num grande dilema, que agora com a proximidade da feira do livro surge-me a tentação de comprar este e aquele título, uns para guardar para leitura de férias, outros para ir lendo até lá, e começo a ter uma enorme falta de espaço em casa, com pilhas amontoando-se por aqui e por ali, isto a somar ao resto da tralha que para aqui tenho, uma boa parte herdada e outra que advém das minhas manias, a dos quadradinhos e a de coisas de outros tempos, a que não será alheio o hábito de ir guardando tudo e mais alguma coisa, apesar de a casa não ser assim tão grande, que já vai com duas divisões (fora corredores) atulhadas quase até ao tecto, acho mas é que os bichos do papel devem fazer grandes festarolas cá em casa, para já não falar de traças e outros seres vivos de que nem sei os nomes, que também não têm por hábito convidar-me lá para tais arraiais, apesar de lhes ceder o espaço e as vitualhas, mas não me passam cartão, ignoram-me sobranceiramente, que é coisa que não me posso dar ao luxo de fazer quando convido á, bê ou cê para cá jantarem, mas enfim, são educações, e eu nunca vi bicharada mais mal educada do que esta que cá tenho.

A questão que se me coloca é onde pôr as novas aquisições, se em cima dos montes já em equilíbrio precário e onde a empregada mal se atreve a limpar o pó, com medo de aquilo desabar tudo, ou então, pura e simplesmente, deixar de comprar livros ou oferecer os que para aqui tenho e que já li, que é mania de gente como eu guardar livros que já leu e por cujas páginas se calhar nunca mais voltará a passar os olhos, filmes engarrafados em caixinhas de plástico e fitas magnéticas que mais tarde ou mais cedo ficam cheias de bolor e também imprestáveis para novos visionamentos, além de que já me desfiz de um ou outro, mas quando se começa a querer escolher é que o problema se agudiza, mais dia menos dia dou mas é em minimalista e pronto.
domingo, maio 08, 2005
Omnipresenças

sexta-feira, maio 06, 2005
As termotebes
Aqui há uns anos atrás apareciam uns anúncios na televisão que faziam alarde às virtudes de umas camisolas interiores que, ao que se dizia, protegiam quem as usasse de todos os frios possíveis e imaginários, as termotebes, já nem sei se era assim que se escrevia, recordo-me de ter comprado um espécime dessa coisa para ver se havia algum fundo de verdade em tais publicidades, e não é que a coisa resultava mesmo, apesar de ficar a deitar faíscas por todos os lados quando a despia, com uma data de estalos à mistura, que a electricidade estática parece que tinha resolvido fazer precisamente ali o congresso das electricidades estáticas, nem sei se aquilo fazia algum mal, nesses tempos não havia cá recomendações da União Europeia acerca das camisolas interiores, nem era preciso usar colete reflector para se poder utilizar a camisola por baixo nem nada, e não tenho memória de terem alguma vez saído artigos na Proteste acerca de tais itens, entrava-se na loja, pagava-se em escudos e lá se levava a peça de vestuário para casa, depois era vesti-la e já estava, hoje em dia já nem sei se existem, não ando propriamente aí pelas lojas a procurá-las, a entrar e sair e a perguntar tem termotebes?, não?, podia dizer-me se ainda há à venda?, não sabe?, não conhece?, obrigado, também não faço disso um passatempo, mas podia fazer, quem sabe, tornar a demanda da termotebe a razão de existir, isto tudo apesar daquilo que para aí se propaga acerca de quem usa camisolas interiores (homem que é homem não usa camisola interior), de estarmos quase, quase no verão e o calor começar a apertar, ia-me já prevenindo para o próximo inverno, era o que era, que se o frio for tanto quanto o calor que vai estar nos próximos meses bem vale a pena ir guardando uma roupita mais quente, por oposição à roupa mais fresca que vai ser necessária nos tempos que se aproximam, para a falta de água que se anuncia pode-se ao menos combatê-la com a ausência de abafos, passa-se a ir quase nu para o trabalho, aí é que era o bom e o bonito, que afinal trabalho não é praia, não é, não, nem piscina nem nada disso, ia tudo parar à esquadra como nos filmes de antigamente, ao menos haviam de dar água aos detidos, que o tempo das sevícias por tudo e por nada já lá vão, isto digo eu, que gosto de contrariar a Amnistia Internacional, o fórum prisões ou lá o que é, que sou boa pessoa e ando mais do que convencido de que nas esquadras só tratam bem as pessoas, oferecem-lhes chá e bolinhos, até lhes dão acesso gratuito à Internet, auscultadores e aparelhos para se ouvir a música que se quiser sem incomodar ninguém, e se calhar ir lá parar no inverno ainda fornecem termotebes de borla. Viva o progresso. Vivam as termotebes.
O meu clube
Há dias assim, em que se crê, se descrê, e se volta a acreditar. Mesmo no fim. A segundos do fim. Quando nada mais há que nos leve por caminhos tão íngremes que até nos doem na alma. Mas depois surgem sorrisos que estavam lá no fundo, a espreitar-nos no meio das negaças que escureciam um céu de onde caíam bátegas de chuva apesar de não a sentirmos no corpo.
Nunca aqui falei de futebol. Mas hoje abro uma excepção. Para o único clube que leva no nome este país, aquele que não traz inscrito um bairro, uma cidade, aquele que trago comigo todos os dias. Sporting Clube de Portugal.
quarta-feira, maio 04, 2005
A minha caixa de óculos anda por aí...
Dia sim, dia sim, dou por mim a deixar a caixa de óculos enfiada num qualquer canto, que é no que dá já ir avançado nos anos e perder horas a fio a mirar um ecrã de computador, para além de decifrar letra miudinha nos livros, se bem que tenho cá para mim que o que mais mal me fez à vista foi olhar para as caras dos senhores da televisão, e depois passo o tempo todo a perguntar se alguém viu a dita caixa de óculos por aí, e o mais provável é que já se tenha metido a fazer companhia ao Santana ou ao Jardim, que também andam por aí, pelo menos foi o que disseram, que eu ouvi muito bem e ainda não estou surdo mas se calhar não há-de faltar muito, esta minha caixa é mesmo descarada, não querem lá ver que se meteu com más companhias, ainda dou com ela a aparecer na televisão, rodeada de uma data de desconfiados polícias armados até aos dentes no aeroporto e depois ainda me mete numa data de trabalhos, o que me consola é não ter lá escrito o meu nome e morada, senão era tiro e queda, de quem é esta caixa suspeita?, quem é o responsável por esta confusão?, zás, toca a baterem-me à porta, a fazerem buscas cá em casa, nem é bom pensar nisso, que se não fosse preso por uma coisa ia por outra, que ele há-de haver sempre por onde pegar e toda a gente tem rabos de palha, ai não que não tem, o que preciso mesmo é um daqueles dispositivos electrónicos enfiados na dita cuja e quando precisar de a localizar só tenho que carregar no botão para ouvir de onde é que vem o sinal sonoro, mas se vier do aeroporto é que é pior, que eu não passo lá os dias, nem pensar, uma pessoa tem mais que fazer do que andar sempre de cá para lá no aeroporto, e muito menos andar por aí, isso é bom é mesmo para os ociosos que não têm nada de nada que os ocupe ou que os preocupe, eu já ando mas é ralado com o descaramento da minha caixa de óculos, ia lá agora ficar com cabelos brancos por causa dessa gente toda que anda por aí, agora um, dali a nada dois, no dia seguinte já são duzentos ou trezentos, passada uma semana o número já vai nos milhares, aquilo é doença que se pega, a de andar por aí, num ar que lhes deu ficaram de repente sem fazer nada, a olhar para anteontem, e eu para aqui angustiado por não saber da minha caixa de óculos, vai-se a ver e está em cima do frigorífico, o pior é se a meti lá dentro, a esta hora está mas é congelada, se ao menos fosse isso não andava para lá e para cá que nem uma doida, e de malucos já estou vacinado, pelo menos para os tempos mais próximos.
terça-feira, maio 03, 2005
Versos de pé-quebrado
No dia em que o Rogério caiu da motorizada e partiu o tornozelo, levaram-no para o hospital na carrinha da feira, deitado em cima de tapetes, de enormes sacos de plástico recheados de camisolas e t-shirts, peúgas e collants, para além de outros atavios, e quando lá chegaram acabaram por mantê-lo em observação durante algum tempo até lhe engessarem a perna, o suficiente para ter ficado babado por uma das enfermeiras, ao ponto de ter pedido à tia que lhe fosse comprar umas flores para oferecer à sua mais recente paixão, já que o irmão se recusara de imediato a fazê-lo, onde é que se viu um gajo andar para aí de flores na mão, isso era coisa de paneleiros e ele era demasiado homem para fazer uma figura dessas; entretanto, para aproveitar o tempo de espera, metera-se a fazer umas quadras dedicadas à tal enfermeira, versos de pé quebrado, chamou-lhes, não porque soubesse o que é que tal expressão significava mas porque, na verdade, estava a fazer versos e tinha mesmo quebrado o pé, além de que já tinha ouvido aquilo nalgum lado e agora vinha mesmo a propósito, que raio, então não eram versos e não tinha o pé quedrado?, pois claro que tinha, mas a coisa não lhe correu lá muito bem, a moça estava comprometida e não lhe achava piada nenhuma, nem aos versos que, além do mais, não estavam lá muito bem feitos, parecendo uma mistura de brejeirice com lamechice pegada, metendo palavras que designavam os órgãos sexuais femininos e masculinos pelo meio, das mais vulgares ainda por cima, a moça ficou ofendida e arranjou maneira de se vingar, arranjando uma seringa de tamanho cavalar e, enfiando-lha nas nádegas, pespegou-lhe com um cocktail de anti-inflamatórios, antibióticos e vitaminas que quase o deixaram ainda mais coxo do que entrara, para além de ter ficado com o rabo mais dorido do que se tivesse apanhado uma tareia do calibre das que a mãe lhe dava quando era pequeno, após o que o devolveu ao ajuntamento familiar na companhia do tal ramo de flores e de alguns gemidos doloridos que se tornaram ainda mais audíveis quando o içaram para cima dos tapetes, dos sacos de camisolas, t-shirts, peúgas e collants, no meio de um chorrilho de novas alcunhas para a enfermeira, decerto novas inspirações para futuros versos, quem sabe?
segunda-feira, maio 02, 2005
A primeira memória
Há dias de maio assim, um tudo-nada maiores
do que outros que passaram
antes deles, antes de saber notícias de ti,
escritas num papel amarelado que esqueci numa gaveta qualquer.
E agora já nem me deixas as tuas palavras
(que não ouço há muito)
agarradas a uma fita magnética para me lembrar delas
quando a tristeza for mais forte do que o silêncio
de entrar em casa e saber que já lá não estás.
Agora encontro-te por aí, num rosto ao acaso
no meio da rua, sei que aqueles não são os teus olhos,
mas que importa,
se neles eu vejo os teus,
mesmo que não reparem nos meus.
Não sei se algum dia te encontrarei
no meio do mundo todo,
ou sentada num bar, à noite, a rir do que outros
te dirão, e então ir-me-ei embora
para não saber que segredos serão esses
que agora já não me irás contar.
Maio, 2002
domingo, maio 01, 2005
Primeiro de Maio
Acordava-se de manhã cedo, com uma excitação guardada desde o ano anterior, ou pelo menos desde a última vez que tinha havido qualquer razão para que a manhã tivesse sido tão luminosa quanto aquela que agora se apresentava pela frente, uma manhã inteirinha para se gastar da melhor maneira que se podia e sabia, e tudo era como se no ano passado não se tivesse já repetido os gestos do ano anterior e dos outros antes dele, a busca de um travesseiro antigo, daqueles compridos, onde se pintava uma boca com um baton qualquer subtraído às escondidas das gavetas do psiché, o mais vermelho de todos, para que o lugar dos lábios ficasse vivo, enorme, medonho, como competia a uma figura daquelas, depois eram os olhos a carvão, redondos, bem abertos, o mais possível, a fazer lembrar os do Lobo Mau, o nariz disforme, com umas narinas frementes, como se aspirasse o resto do ar do mundo, ou desse a entender que aquele fôlego, aquele em especial, seria o derradeiro antes do ataque final, depois o chapéu, um dos velhos, dos que o pai já não usava e que serviam para brincar aos caubóis, de abas largas, que os mais pequenos faziam atenuar o efeito, perdiam-se na dimensão do rosto largo de devorador de gente, finalmente a camisa, o casaco, as calças, tudo escuro, sombrio, lúgubre, o mais possível, que só assim é que a figura se tornava horrenda e disforme como devia e, pronto o boneco, era agora a vez de sentá-lo numa cadeira em frente a uma janela que desse para a rua, no primeiro andar, que assim ficava a olhar de cima para quem por ali passasse, sobranceiro mas também pronto a mergulhar num ataque repentino, como o fazem as aves de rapina, quando se lançam sobre as presas desatentas e descuidadas, a intenção era meter medo, afastar os maus espíritos, que tivessem cuidado, esses, porque ali estava quem os rechaçaria de imediato, ao mais pequeno aviso de ameaça à tranquilidade do lar, o maio, feito naquele primeiro dia do mês.
Era assim o primeiro de Maio, nos tempos em que não se podia ir para a rua aos magotes, nem comprar farturas em feiras improvisadas, nem gritar no meio das multidões, quando as conversas eram em voz baixa, quase sussurradas para que não houvesse ouvidos atentos que as levassem dos cafés para os registos das polícias, e muitos anos depois fossem enterradas em arquivos bafientos que andam por aí aos tombos de um lado para o outro até que, depois de cinquenta ou mais anos, algum mais curioso os vá ler quando dessa memória nada mais restar do que uns cadáveres nos cemitérios que já não fazem sombra a ninguém porque simplesmente já todos os esqueceram e aos outros que morreram porque alguém os matou, e com tais segredos se faz a história que mais tarde já nem aparece nos livros, porque aqueles que mandam hão-de achar que já não vale a pena que os livros contem coisas como essas.
