Acordava-se de manhã cedo, com uma excitação guardada desde o ano anterior, ou pelo menos desde a última vez que tinha havido qualquer razão para que a manhã tivesse sido tão luminosa quanto aquela que agora se apresentava pela frente, uma manhã inteirinha para se gastar da melhor maneira que se podia e sabia, e tudo era como se no ano passado não se tivesse já repetido os gestos do ano anterior e dos outros antes dele, a busca de um travesseiro antigo, daqueles compridos, onde se pintava uma boca com um baton qualquer subtraído às escondidas das gavetas do psiché, o mais vermelho de todos, para que o lugar dos lábios ficasse vivo, enorme, medonho, como competia a uma figura daquelas, depois eram os olhos a carvão, redondos, bem abertos, o mais possível, a fazer lembrar os do Lobo Mau, o nariz disforme, com umas narinas frementes, como se aspirasse o resto do ar do mundo, ou desse a entender que aquele fôlego, aquele em especial, seria o derradeiro antes do ataque final, depois o chapéu, um dos velhos, dos que o pai já não usava e que serviam para brincar aos caubóis, de abas largas, que os mais pequenos faziam atenuar o efeito, perdiam-se na dimensão do rosto largo de devorador de gente, finalmente a camisa, o casaco, as calças, tudo escuro, sombrio, lúgubre, o mais possível, que só assim é que a figura se tornava horrenda e disforme como devia e, pronto o boneco, era agora a vez de sentá-lo numa cadeira em frente a uma janela que desse para a rua, no primeiro andar, que assim ficava a olhar de cima para quem por ali passasse, sobranceiro mas também pronto a mergulhar num ataque repentino, como o fazem as aves de rapina, quando se lançam sobre as presas desatentas e descuidadas, a intenção era meter medo, afastar os maus espíritos, que tivessem cuidado, esses, porque ali estava quem os rechaçaria de imediato, ao mais pequeno aviso de ameaça à tranquilidade do lar, o maio, feito naquele primeiro dia do mês.
Era assim o primeiro de Maio, nos tempos em que não se podia ir para a rua aos magotes, nem comprar farturas em feiras improvisadas, nem gritar no meio das multidões, quando as conversas eram em voz baixa, quase sussurradas para que não houvesse ouvidos atentos que as levassem dos cafés para os registos das polícias, e muitos anos depois fossem enterradas em arquivos bafientos que andam por aí aos tombos de um lado para o outro até que, depois de cinquenta ou mais anos, algum mais curioso os vá ler quando dessa memória nada mais restar do que uns cadáveres nos cemitérios que já não fazem sombra a ninguém porque simplesmente já todos os esqueceram e aos outros que morreram porque alguém os matou, e com tais segredos se faz a história que mais tarde já nem aparece nos livros, porque aqueles que mandam hão-de achar que já não vale a pena que os livros contem coisas como essas.