Dia sim, dia sim, dou por mim a deixar a caixa de óculos enfiada num qualquer canto, que é no que dá já ir avançado nos anos e perder horas a fio a mirar um ecrã de computador, para além de decifrar letra miudinha nos livros, se bem que tenho cá para mim que o que mais mal me fez à vista foi olhar para as caras dos senhores da televisão, e depois passo o tempo todo a perguntar se alguém viu a dita caixa de óculos por aí, e o mais provável é que já se tenha metido a fazer companhia ao Santana ou ao Jardim, que também andam por aí, pelo menos foi o que disseram, que eu ouvi muito bem e ainda não estou surdo mas se calhar não há-de faltar muito, esta minha caixa é mesmo descarada, não querem lá ver que se meteu com más companhias, ainda dou com ela a aparecer na televisão, rodeada de uma data de desconfiados polícias armados até aos dentes no aeroporto e depois ainda me mete numa data de trabalhos, o que me consola é não ter lá escrito o meu nome e morada, senão era tiro e queda, de quem é esta caixa suspeita?, quem é o responsável por esta confusão?, zás, toca a baterem-me à porta, a fazerem buscas cá em casa, nem é bom pensar nisso, que se não fosse preso por uma coisa ia por outra, que ele há-de haver sempre por onde pegar e toda a gente tem rabos de palha, ai não que não tem, o que preciso mesmo é um daqueles dispositivos electrónicos enfiados na dita cuja e quando precisar de a localizar só tenho que carregar no botão para ouvir de onde é que vem o sinal sonoro, mas se vier do aeroporto é que é pior, que eu não passo lá os dias, nem pensar, uma pessoa tem mais que fazer do que andar sempre de cá para lá no aeroporto, e muito menos andar por aí, isso é bom é mesmo para os ociosos que não têm nada de nada que os ocupe ou que os preocupe, eu já ando mas é ralado com o descaramento da minha caixa de óculos, ia lá agora ficar com cabelos brancos por causa dessa gente toda que anda por aí, agora um, dali a nada dois, no dia seguinte já são duzentos ou trezentos, passada uma semana o número já vai nos milhares, aquilo é doença que se pega, a de andar por aí, num ar que lhes deu ficaram de repente sem fazer nada, a olhar para anteontem, e eu para aqui angustiado por não saber da minha caixa de óculos, vai-se a ver e está em cima do frigorífico, o pior é se a meti lá dentro, a esta hora está mas é congelada, se ao menos fosse isso não andava para lá e para cá que nem uma doida, e de malucos já estou vacinado, pelo menos para os tempos mais próximos.