As pessoas nascem, depois vão-se construindo a pouco e pouco, tal como as memórias, e fazendo do tempo o que dele bem entendem, na altura em que os dias duram semanas, meses ou anos inteiros, e às vezes até séculos, que depois vem a escola e as horas deixam de ser delas, passam a ser de outros, que lhes traçam gestos obrigatórios repetidos até à exaustão, e lhes contam vidas que não são suas, às vezes nem sequer são de ninguém, e que acabam por ser mais importantes do que aquelas que ali vão crescendo, cada vez mais regadas pelas palavras, e delas dependendo até pouco mais sobrar do que aquilo que nelas lemos; mais tarde apaixonam-se, ou pelo menos crêem que se apaixonam, conhecem o corpo, o desejo, a fome, arranjam um emprego qualquer que lhes sirva para roubar ainda mais tempo, casam-se, têm filhos ou não, aprendem a deixar de viver sozinhas, ou habituam-se a fazê-lo aos poucos e poucos, sem mais nada do que uns restos de vida todos os dias que não chegam para nada, nem sequer para se lembrarem de si mesmas e dos outros.
Existe um lugar, fantástico, magnífico, um lugar onde se pode ser sem que nos digam que não o podemos, onde os desejos se cumprem, e onde o tempo não é tempo, as horas não são horas, onde os relógios são proibidos, onde nem sequer se sabe que existem, e as memórias são aquilo que queremos que sejam, um lugar mágico, ao qual chegam apenas os que nem dele suspeitam, ou os que dele sabem mas não o desejam porque nele sempre souberam viver sem sequer saberem como lá chegar, os que aí continuam a viver sem que dele saibam como partir, mas parece que, no entanto, a esse lugar de súbito fecharam a porta e puseram um letreiro «fechado para obras de restruturação», deixando de fora os que um dia poderiam entrar, melhor, os que se esqueceram de que um dia poderiam chegar a entrar, acabou por sobrar apenas um sabor a amargo nos lábios, toda as pessoas se esqueceram então do sentido mágico das palavras para apenas se preocuparem consigo mesmas, e mais nada ficou nas suas curtas memórias do que esse silêncio de ser não sendo, uma voz ausente que pouco mais traz consigo do que um abandono irremediável, uma cada vez maior descrença no olhar dos homens, uma quase certeza na valorização da mentira, do embuste, da calúnia, na inutilidade de tudo, até dos gestos de amor, e cá fora foi-se morrendo minuto a minuto como antes nem se sabia que era possível morrer, nada restando para além do mais vazio dos silêncios, das vinganças sem nome, que se compravam por tuta e meia a qualquer esquina, era afinal tão fácil nem sequer saber olhar nos olhos de alguém, a isto os levaram, a esse fim nos conduziram, a uma ausência de esperança, à proibição das palavras, ninguém mais acreditava nas macabras combinações em esconsas salas de reunião onde se trocavam favores, dinheiros sujos, luxuosas benesses proibidas a quem delas na verdade nunca chegou a usufruir, onde se encomendavam liquidações gerais, discursos gratuitos, palavras sem nexo, negócios obscuros, e se ensinava a não ter escrúpulos, a roubar tudo até não ficar nem a alma. Haveria quem ainda acreditasse em tal gente?