maior parte das vezes nem sabemos muito bem de onde é que veio, o certo é que chegou mesmo, e com uma força capaz de mover montanhas, escrevi montanhas?, devia ter escrito serras inteiras, e se já escrevi, aqui fica, que não faço por menos, isto das escritas é um tanto ou quanto diferente das conversas, aí pode emendar-se assim ou assado que as palavras acabam por se ir sumindo e ninguém dá por elas a não ser os mais atentos ou as mais atentas, se calhar são mais as mais atentas e menos os mais atentos, que confusão que já fiz, é para se ver que esta mania de corrigir as frases enquanto se escreve por vezes dá nisto mesmo, numa bagunça total, mas aqui é possível voltar atrás, reler, tresler, aquela linha não me apetece por isso vou saltá-la, um perído inteiro, um parágrafo, há quem leia livros assim, aos saltos pelas páginas fora, lê ao pé coxinho, é o que é, só pode resultar numa leitura coxa, que não sei bem o que será, deve ser uma daquelas que mal se aguenta sentada, quanto mais de pé, meti-me aqui nesta conversa e já nem sei onde é que quero chegar, que diabo será uma leitura sentada ou de pé, uma pessoa lê de qualquer maneira, eu pelo menos faço por isso, de pé, sentado, deitado, aos saltos é que é mais complicado, que já não tenho saúde nem vista para tanto, ao fim destas linhas todas já fiz para aqui uma mistura maior do que as confusões que costumo armar quando me meto na cozinha, que tinha começado este texto para falar de uma coisa a afinal saiu-me outra, o pior é que fui embalando, as letras e as palavras acabaram por tomar velocidade e foram por aqui fora, ainda vão, olha para elas a encarreirar-se assim todas direitinhas uma a seguir às outras da esquerda para a direita e de cima para baixo, zás, zás, cá vão elas, já não as consigo parar, tomaram conta de mim, assenhoraram-se desta fraca vontade que tenho de lhes dar ordem para parar, para se ficarem por aqui, digo-lhes que já chega, nada, não me prestam atenção nenhuma, dizem-me que isto de autores já foi chão que deu uvas, que já não deixam que mandem nelas, que se autonomizaram, fizeram uma revolução e mandaram os escreventes às urtigas, se quiserem ter a mania de achar que são criadores então que criem outra coisa qualquer, que ponham o espírito criativo a render, inventem novas maneiras de comunicar, as palavras são assim mesmo, gostam de achar que são importantes, que sem elas nada feito, não se fala, não se conversa, não há cá combinaçõezinhas de espécie alguma nem declarações de amor, acabam-se os livreiros e as boticas de livros, os escritores, os revisores, os jornalistas, os comunicadores, os críticos, os que acham que são críticos e o resto da canalha também, os secretários e os chefes de gabinete, os ministros e os presidentes, faz-se uma limpeza total, e já que o homem é tão esperto então que se avenha, mas eu cá dei-lhes com a manha, disse já chega de tanto disparate, e escrevi um ponto final.
Desde que entrara para o jornal, já lá iam alguns anos, o Carlitos encarregara-se, ou melhor tinham-no encarregado, da secção de obituários, tarefa que levava a peito e que exercia com todo o rigor, face aos dividendos que o matutino obtinha e cuja responsabilidade não se cansava de apregoar aos colegas, que o mimoseavam com epítetos como gato-pingado, vade retro, pretérito perfeito, e outras preciosidades no género, e cuja secretária na redacção era habitualmente referida como o cantinho do Lázaro, a botica das urnas, alto de São João ou colina dos prazeres, uma vez até, por partida, tinham-lhe metido ali um caixão, um dos verdadeiros, que lá na redacção havia quem tivesse conhecimentos numa funerária, se bem que não se percebe bem para que é que queremos conhecer alguém que trabalhe numa funerária, se quando precisarmos já nem sabemos que precisamos, mas uma pessoa também não vai deixar de conhecer alguém só porque trabalha numa funerária, olha, trabalhas com os mortos, então pronto, já não te conheço, conhecia-te dantes, mas agora já não sei quem és, as coisas não funcionam assim, pelo menos tenho para mim que não, está-se mesmo a ver que o Carlitos não achou piada nenhuma à brincadeira, o certo é que lá fazia o seu trabalho com todo o esmero, compunha obituários com uma antecedência razoável para as figuras mais famosas da nossa praça e das praças alheias, para o caso de acontecer algo de inesperado e não ser apanhado desprevenido, com uma biografia completa, com referências à obra feita ou desfeita, historial da família, mas sem emitir juízos críticos ou de valor acerca da personalidade, que isso deixava para outros colegas, não se ia pôr a ultrapassar as suas funções, que não queria que o tivessem por metediço nem muito menos por pedante, e fazia por antecipação uma pesquisa das imagens em arquivo acerca da pessoa, não fosse dar-se o caso de dar-lhe a travadinha de um momento para o outro e depois terem que andar que nem uns doidos a vasculhar no arquivo à procura de fotografias para ilustrarem o artigo.
Quando alguém importante estava mesmo prestes a entregar a alma ao criador, ficava cheio de ansiedade, roía as unhas todas que encontrasse pela frente, se alguém lhe emprestasse as suas marchavam também, revia o texto vezes sem conta para ver se não estava a falhar nada, imaginava títulos bombásticos para a notícia, embora não fosse da sua conta, que isso eram competências lá dos superiores da redacção, e quando finalmente lá se dava o óbito estava mais do que pronto para fornecer os dados todos, na hora, e depois ficava com um enorme melão porque lhe escortanhavam aquilo tudo, estragavam-lhe a prosa, mas como já estava habituado ultrapassava depressa aqueles repentes de frustração, e então punha-se a fazer uma análise crítica ao que tinha sido publicado, a chamar nomes, lá no íntimo, aos colegas jornalistas, e o facto de tecer comparações entre o que era publicado e o original tinha para si como um invulgar raciocínio filológico, digno de uma qualquer tese de mestrado ou até mesmo do doutoramento mais exigente, o trabalho tinha-se-lhe colado à alma, já não passava sem defuntos, sem os elogios fúnebres, sem as últimas palavras, sem os jazigos de família, os crematórios, as sepulturas rasas, sem as valas comuns, quando um dia se reformou, a contragosto, é preciso que se diga, levou para casa ficheiros e ficheiros de gente morta, metidos em fúnebres pastas que arquivava com extrema minúcia e com grande desvelo, eram os seus mortos, dizia, tinha-lhe subido à cabeça, e passava os dias a percorrer os cemitérios à procura das campas e dos jazigos das suas referências biográficas, onde abria uma última entrada com os dados do local onde se encontrava o cadáver, como se já não soubesse viver entre os vivos e nos mortos encontrasse consolo para o fim que se aproximava.
domingo, abril 17, 2005
Não há uma sem duas, nem duas sem três
...os das campanhas bem que deviam era dar o exemplo em vez de se porem a dizer aquelas coisas todas da boca para fora e depois andarem o dia inteiro de rabo tremido no carrinho do Estado ou da empresa...
O dia de anos começara a correr-lhe mesmo bem, tinham-lhe atropelado o cão, batido no carro, depois tinham fugido, como gente civilizada que se preze, passara o dia entre veterinário e mecânico, de cá para lá numa correria insana, ora porque o bicho gania com dores ora porque uma das rodas do carro tinha ficado entalada na chapa e aquilo fazia uma barulheira de todo o tamanho, para além de lhe dar cabo do pneu, vá lá que o bicho apenas tinha uma perna partida, do mal o menos, tinham-lhe dado uma vacina, coisa de que não gostava mesmo nada, que só de ver a seringa o cão tentava escapar-se da marquesa, com perna partida e tudo, depois puseram-lhe gesso, no fim até nem tinha reagido mal à adversidade, ficara a andar pela casa como o capitão da perna de pau, toc-toc-toc, até lembrava a história da moleirinha, o pior ia ser de noite, que a casa era toda em chão de madeira e o desgraçado tinha o mau hábito de fazer a ronda das cinco da madrugada, quando não era a das quatro, das três, das seis, sempre que lhe dava na mona, o carro acabou por ficar no mecânico para lhe endireitarem a chapa e darem uma pintura, não ia sair barato, mas o que tinha que ser soaria, para regressar teve que chamar um táxi pelo telefone e ficar ali à espera que chegasse, que para os lados da oficina transportes públicos nem vê-los, era sem dúvida um bom sítio para lançarem campanhas de apoio aos transportes públicos, como se aquilo ficasse no fim do mundo, não era nada, quando muito um bocadinho fora de mão, também ninguém quer oficinas ao pé de casa e elas têm que existir e ficar nalgum lado, ao menos que houvesse quem nos levasse até lá, mas nada, nicles, para que é que queres ir à oficina de transportes públicos, se precisas vais de carro, para isso é que elas foram feitas, para arranjar carros, voltar voltas quando estiver arranjado, ou então a pé, que faz bem à saúde, o que ele gostava era de ver os que vão dizer estas coisas para a televisão a vir de pé da oficina até à próxima paragem de autocarro, sempre são umas boas duas léguas, porventura um bocadinho mais, por uns caminhos um tanto ou quanto estranhos e meio desertos, sem passeios nem nada, voltava-se a pé da oficina e ia-se mas era parar ao hospital, os das campanhas bem que deviam era dar o exemplo em vez de se porem a dizer aquelas coisas todas da boca para fora e depois andarem o dia inteiro de rabo tremido no carrinho do Estado ou da empresa, com motorista à conta e tudo, depois à noite foi a festa, tinha que haver uma festa, pois claro, com bolo e tudo, e a miúda teimou que queria trazer o bolo da cozinha para a sala já com tudo às escuras e com as velas acesas, estava-se mesmo a ver que ia tropeçar no meio do caminho e atirar com o bolo e as velas e o prato para o chão, começou a choradeira, por mais que lhe disséssemos que não tinha culpa, que tinha sido um acidente, que havia por ali umas formigas que gostam de pregar partidas e passar rasteiras às meninas que andam com bolos na mão pela casa inteira, nada, as lágrimas não paravam, davam para encher um copo e depois fazer um quilo de sal, do fino, claro, que ela é pequenina e mimosa, o sal grosso nasce é das lágrimas dos crescidos, assim como assim se deitam aquilo cá para fora é porque não lhes faz falta, há-de haver mais de onde veio aquele, certamente que sim, na fábrica do sal devem ter lá uma data de gente a martelar na cabeça uns dos outros e a pô-los a chorar que é para depois se fazer o sal de cozinha e o sal refinado e a flor de sal essa então é quando picam as pessoas com os espinhos das roseiras, ai não que não é, que dói que se farta, e para fechar a festa às tantas faltou a luz, os convidados tiveram que descer sete andares pelas escadas à luz da lanterna, e quem foi o desgraçado que foi lá baixo a alumiar o caminho e depois teve que subir os mesmos sete andares que já pareciam catorze, quem foi?, claro que foi o aniversariante, mais o cão manco, que teve que vir à rua fazer as necessidades, que sete andares para os miúdos virem com o cão era demais, pois era, para o desgraçado do cão é que não, nem para o pobre coitado, que quando chegou à cama caiu para o lado e só se levantou dois dias depois para ir buscar o carro à oficina.
sexta-feira, abril 15, 2005
Ter um belogue
Sa-be o se-nhor, eu gos-ta-va de sa-ber co-mo é que eu pos-so ar-ran-jar um be-lo-gue, é que eu te-nho ou-vi-do fa-lar mui-to dis-so, a-té já li u-mas coi-sas so-bre o as-sun-to, por e-xem-plo nos jor-nais e fi-quei com mui-ta cu-rio-si-da-de, é que eu sou cu-rio-so por na-tu-re-za, sa-be, e, pa-ra ser sin-ce-ro, sou com-ple-ta-men-te a fa-vor da be-lo-gos-fe-ra, sou, sim se-nhor, e que-ria en-trar nes-sa es-fe-ra, que de-ve ser co-mo a es-fe-ra da bo-la, do fu-te-bol, sa-be, a re-don-di-nha, que eu quem me ti-ra o Eu-sé-bi-o ti-ra-me tu-do, já não tem gra-ça sem o Eu-sé-bi-o, a-go-ra é só gen-te que es-tá con-ven-ci-da que sa-be jo-gar à bo-la mas o que sa-bem é pe-dir di-nhei-ro e mais di-nhei-ro, com-prar car-ros de lu-xo, ca-sar com mo-de-los pa-ra de-pois a-pa-re-ce-rem nas re-vis-tas e nos jor-nais, são é to-dos uns o-por-tu-nis-tas, sa-be o se-nhor, mas eu não, não sou co-mo e-les, sou é u-ma pes-so-a cu-ri-o-sa, a-ten-ta a es-tas coi-sas no-vas, co-mo is-so dos be-lo-gues, e en-tão di-ga-me co-mo é que eu fa-ço pa-ra ter um be-lo-gue, com-pra-se nas es-ta-ções dos cor-rei-os ou nos ban-cos, eu nun-ca vi à ven-da nos su-per-mer-ca-dos, por is-so a-cho que a-í não de-ve ha-ver, se ca-lhar te-nho que es-cre-ver pa-ra os te-le-fo-nes, pa-ra a Te-le-com, é as-sim que se diz, não é, a Por-tu-gal Te-le-com, o pi-or é que eu não te-nho te-le-fo-ne, só u-so o te-le-mó-vel, se ca-lhar a mim não me ven-dem por não ter te-le-fo-ne em ca-sa, e se é pre-ci-so um com-pu-ta-dor a-in-da é pi-or, por-que dis-so não sei mes-mo na-da e não te-nho, mas se me-ter te-le-fo-ne em ca-sa a-cha que che-ga, que pos-so ar-ran-jar um be-lo-gue?
quarta-feira, abril 13, 2005
Carta ao editor

Caminhava pelas sombras
Caminhava pelas sombras, com um cuidado imenso para que cada passo não entrasse em zonas de luz, e na sua voz trazia todos os medos do mundo, que nos olhos não transparecia porque os não mostrava a ninguém, desde pequeno que apenas saía de casa em dias de sol, quando houvesse sombras onde colocar os pés e deixar o corpo esquecido, tal como escurecera a sua vida e a escondera por detrás de janelas e portas que nunca se abriam, e então saía para se abrigar debaixo das árvores no caminho que o levava até onde tinha que ir, nunca ao acaso, que todos os centímetros eram planeados com rigor em elaborados esquemas que desenhava em páginas e páginas de cadernos que eram os seus diários, onde mais nada se acharia que não passos alinhados em traços que ligavam lugares a outros lugares e horas de sombra e sol e onde havia ausência de palavras, de sentimentos, de rostos e de nomes, dia após dia, mês após mês, ano após ano, um cálculo frio para se deslocar de casa às lojas onde comprava o pouco de que necessitava para estar vivo e onde ia embrulhado da cabeça aos pés e sempre com uma sombrinha para que não houvesse raio de luz que lhe mordesse a pele, o que muito estranhava na vizinhança a quem não lhe conhecesse aqueles estranhos hábitos, que quando chovia ou o sol se deixava esconder pelas nuvens ninguém lhe punha a vista em cima, semanas inteiras passavam até o voltarem a ver regressar de novo à pequena mercearia de bairro, à peixaria ou ao talho, ou à loja de sempre onde invariavelmente comprava aquilo de que precisava, e de noite era impossível encontrá-lo fosse onde fosse, abrigado atrás de janelas de onde não surgia nem uma réstia de luz porque se deitava mal o sol se punha e se levantava apenas quando a luz do dia era suficiente para que olhasse para as coisas sem o auxílio de coisas eléctricas, de candeeiros ou velas.
Vegetava assim pela cidade de onde nunca saíra e de que quase nada conhecia, porque não se aventurava para além do bairro, nem se metia em transportes nem em salas demasiado iluminadas, e nada se sabia de como ganhava a vida nem como levava os seus dias solitários, já que não havia memória de que alguém o tivesse alguma vez visitado nem de que recebesse correio, para além das habituais contas de água e de gás, que telefone e electricidade não as tinha porque nunca as havia pedido ou porque lhas tinham cortado sem que houvesse notícia de ter reclamado, quase nada se ouvia para além de alguns passos ou um ocasional arrastar de móveis, coisas que se sabia pelas inconfidências de carteiros, vizinhos ou porteira, tanto quanto se soubesse nunca abria a porta a figura de gente que se lhe dirigisse. Dizia-se que escrevia livros, embora nunca o tivessem visto na estação dos correios a enviar ou receber fosse o que fosse, que pintava quadros, se bem que jamais o tivessem visto com telas ou tintas debaixo do braço e não houvesse por ali perto onde as comprar, mas que era estranho isso não havia quem o negasse, que havia ali uma vida que não queria saber das outras nem de ninguém, e um dia entraram-lhe em casa e mataram-no uns ladrões de meia tigela sem que nada pudessem levar porque nada encontraram para levar: uma cama, uma mesa, uma cadeira, um velho sofá, um armário com roupas gastas, latas de conservas, um vetusto fogão, panelas, potes, copos e pratos usados vezes sem conta, um monte de jornais, pilhas e pilhas de cadernos arrumados numas simples prateleiras, que às vezes a vida não se conta pelas coisas que se tem.
Das duas, uma
Das duas, uma: ou vai ou racha, não se vai lá por menos, assim como assim vai tudo dar ao mesmo, se uma pessoa não se esforça é porque coisa e tal, zum-zum pelas costas, não vale nada, vai trabalhar, malandro, desde que entra até que sai é o mesmo que nada, não faz nenhum e ainda por cima complica, passa a vida nos chétes, nos éme-ésse-énes, nos blogues, vai-se a ver e o computador está cheio até cá cima de fotografias de poucas vergonhas, e se acontece o contrário é pimba que torna, dá-lhe-que-dá-lhe, trabalho e mais trabalho, o do próprio e o dos outros, que é para ver se aprende e não dar graxa aos chefes, zum-zum pelas costas na mesma, a secretária cheia de porcarias, a cadeira idem aspas, o teclado do computador com teclas trocadas, o rato sem bola, o que vale é que a palavra-passe é pessoal e intransmissível e o administrador de sistema não dá cavaco a ninguém e não vai em cantigas, para além de passar por lá só de quando em vez e ter cara de poucos amigos, que andam sempre a encravar-lhe as máquinas, a fazer downloads de porcarias e a viajar por sites pouco recomendáveis e cheios de bicharia, entenda-se vírus, quantidade de nabos e nabas que para ali andam que até conseguem apagar ficheiros sem saber como é que fizeram, deviam era regressar todos à era do papel e lápis que era bem feito, porque essa gente nem merece os computadores que tem e a maneira como lhes tornam a vida mais fácil, ficam ali sentados o dia inteiro com o rabo no fofo a enviar ficheiros daqui para ali e a receber mensagens de correio electrónico e depois vão com o rabo tremido para casa que já nem querem andar nos transportes públicos, cada qual no seu carrinho a poluir a cidade e tudo quanto é sítio, almoçam em pé e nem se importam, fariam melhor se tivessem regressado lá para a terra de onde vieram e deixassem trabalhar quem sabe, que cambada de inúteis e de parasitas, é o que o administrador de sistemas pensa lá com os seus botões acerca do pessoal que trabalha lá na empresa quando lhe metem os grãozinhos de areia do costume no sistema operativo e nos programas e nas bases de dados e nos discos rígidos e no servidor, e os inúteis todos a meterem-lhe cornos pelas costas, a bichanar para cá e para lá que o tipo é mas é maricas e não joga com os trunfos todos e só quer é lixar o pessoal e fazer queixinhas ao patrão, e deixar nos relatórios que fulano e fulana fizeram isto e aquilo, e o patrão, lá no gabinete, a deitar fumo pelas orelhas, a chamar o fulano e a fulana e a ameaçar com despedimentos e com processos cíveis e sabe-se lá mais o quê, ela a fazer-lhe olhinhos bonitos que prometem noites agitadas e ele a fazer olhinhos de carneiro mal morto e quase a levar com um pontapé no traseiro, a justiça que há nesta vida não é igual para todos, fica ele a remoer, e a insultar a colega para dentro de mais isto e aquilo, que se usasse saias também caía nas graças do chefe, e ela vai ralada com os olhinhos de promessas ao patrão e fica a pensar naquilo o resto do dia e já não acerta coisa com coisa, um dia destes ainda leva um apalpão daquele nojento, se não for coisa pior, e depois chora e já nem sabe se há-de queixar-se de assédio, que se vai a tribunal vai passar uma vergonha, vão-lhe falar no olhar cheio de promessas, e o marido em casa sem saber de nada, a pensar que tudo corre bem, o casamento está-lhes ainda demasiado fresco na memória e nas marcas da vida para dar em divórcio, mas as pessoas é que fazem a cama em que se deitam, se bem que algumas deitam-se nas dos outros e o que é que se há-de fazer, nada, pois claro, algumas não vão lá por menos, que para elas é ou vai ou racha, das duas, uma.
segunda-feira, abril 11, 2005
A desconversar é que a gente se entende
...há maples que têm orelhas mas não têm ouvidos, se tivessem é que havia de ser o bom e o bonito...
Com conversa se desconversa, é um dos hábitos que reinam cá nesta terra, que nos leva a inventar palavras para as colocarmos onde à partida não deviam estar, quer por uma questão de lógica quer simplesmente situando-as num contexto de todo em todo diferente do original, ou então apenas porque apetece, vai uma pessoa muito bem a meio da uma simples tergiversação quando alguém pergunta e depois, e a tendência é logo para desatinar, depois?, depois morreram as vacas e ficaram os bois, que é uma antiga tradição das historietas infantis, que deixam as crianças de cara à banda, a pensar mas que raio é que fizeram às vacas para morrerem todas de uma assentada, foram todas para bifes?, e o que é que ficam para ali a fazer os bois abandonados à sua sorte, vão à procura de outras vacas ou pura e simplesmente resignam-se e pronto, ficam contentes com a sua sorte, desatam às marradas uns aos outros ou ficam para ali a jogar às cartas e a dizer asneiras, que é o que os machos costumam fazer quando ficam sozinhos, sem alguém que lhes infunda respeito e lhes meta pimenta na língua, o que é um desperdício de pimenta, diga-se de passagem, mas as soluções são muitas e variadas, por exemplo quando sai um então leva logo a um antão era pastor, e guardava ovelhas, e tinha carrapatos atrás das orelhas, o que não é muito digno, diga-se, nem higiénico, francamente, essa de ter carrapatos atrás das orelhas só de quem não pode dar lições de higiene pessoal, não querem lá ver uma pessoa a dar lições de moral cheia de bicharada e de porcaria, e logo num sítio escondido e que até nem é assim tão difícil de limpar, embora incómodo, que o digam as crianças, que uma pessoa fala em lavar-lhes as orelhas e põem-se logo aos berros, o que levanta a necessidade de uma campanha mediática nacional a este propósito, como a que foi feita para a higiene oral, para mal dos dentistas, com palavras de ordem e tudo, carrapatos atrás das orelhas, não, lave bem as pavilhões auriculares de forma regular, qualquer coisa neste género mas mais incisiva, com rima, que é para ficar no ouvido, a orelha no ouvido, essa é boa, desde que o tempo é tempo, pelo menos que eu saiba, que a orelha e o ouvido estão intimamente ligados, ficam no mesmo sítio, mais milímetro menos milímetro, nunca ouvi falar de orelhas que não ficassem por ali, com algumas excepções dignas de menção, como as orelhas dos livros, dos maples, que há maples que têm orelhas mas não têm ouvidos, se tivessem é que havia de ser o bom e o bonito, punham-se a contar histórias e a desenrolar inconfidências com os sofás, os tapetes, e sabe-se lá com que mais coisas acolchoadas, é bom nem sequer pensar nisso, para já nem falar dos ácaros, que esses se metessem a boca no trombone é que caía o Carmo e a Trindade, ou talvez nem fosse caso para tanto, arranjavam-lhes logo um programa televisivo e ficavam com a vidinha arranjada, e também é bom que os livros não tenham ouvidos, coitados, já lhes basta o que contam para ainda por cima terem que ouvir, então é que emigravam todos para algum lugar longínquo e ninguém lhes punha mais a vista em cima, que assim como assim há cada vez menos gente a pôr-lhes a vista em cima, mas isso são contas de outro rosário, e aqui não me vou meter em religião, já há quem o faça com bastante insistência e dispensa-se mais um, está bem?, ou em forma mais abreviada ‘tá bem, que é preciso ter alguma cautela com estas abreviações, uma pessoa vai descuidada numa conversa e responde, com a maior das simpatias e à-vontades ‘tá, ‘tá, e saem-lhe logo com o tá-tá é uma corneta, fica-se de repente assim a modos como que arrelampado, o que se pode responder perante um tão elevado exemplo de coloquialidade?, embrulha-se e pronto, leva-se para casa para o almoço, quem sabe se a tal corneta não serve para chatear os vizinhos que nos moem o juízo com pianadas sem jeito nenhum, música a altas rotações, concertos de berbequins, martelos e picaretas, pode ser que sim, que até sirva. Se calhar até vale a pena tentar. Pelo menos não se perde tudo.
domingo, abril 10, 2005
Paciências...
Às vezes mais valia, nesses centros comerciais que para aí abundam, abrirem umas lojecas de coisas que dão muito jeito, mesmo muito jeito, como a paciência, é que por tudo e por nada o que mais se ouve é tenha paciência quando uma pessoa já não tem nenhuma e está mas é desesperada de esperar e lhe dizem que nada feito, que naquele dia não pode ser, que passou o prazo, que falta ainda o papel tal e tal, mais o impresso xis-ípsilon-zê, quando se chega à bicha e se tira o papelinho e se repara que o número que temos é o vinte e três mil, quatrocentos e sessenta e sete e a ordem de chamada vai ainda no trinta e dois, pois na minha modesta opinião as lojas de paciência davam mesmo uma jeitaça, uma pessoa ia lá e comprava cento e cinquenta gramas de paciência, que dariam para o resto do dia, para os mais aflitos a dose poderia chegar ao meio quilo, ou então haver, nessas lojas do cidadão que agora estão na moda, uma secção específica onde se forneça paciência, assim ia-se ao guichet ali do lado e pedia-se uma dose, simples ou dupla consoante a estimativa do desespero, que podia ir à tripla para os casos mais agudos, e os maníaco-depressivos, tal com os hipocondríacos, até deviam ter direito a fornecimentos gratuitos, vitalícios, devia estar escrito no bilhete de identidade, logo abaixo da data de nascimento e da naturalidade, este senhor ou esta senhora tem direito a fornecimento vitalício de paciência, bastando para tal apresentar este documento aos respectivos fornecedores, assim acabavam-se as brigas, atenuava-se logo à nascença a tendência de muita gente para ir aos arames por-dá-cá-aquela-palha, haveria coisas mais interessantes para se tornarem motivo de discussão, por exemplo a Constituição Europeia ou as limitações dos mandatos de cargos políticos executivos, ou a identidade do próximo líder do Partido Social Democrata e qual a duração do presente, enfim, assuntos importantes, de Estado, as relações económicas com a China e os Estados Unidos, a desvalorização da moeda, a modernização das estruturas empresariais, nada de somenos como o tempo de demora da bicha até ser-se atendido, a cor do cabelo do último penteado da fulana de tal, as próximas contratações do clube de futebol da nossa preferência, a quantidade de golos marcados em situação de fora-de-jogo do clube da nossa antipatia ou de vítimas do processo de pedofilia, bem como a duração do julgamento do referido caso, nem muito menos a paciência que nos falta para ouvir uma vez mais as conversas do costume e para aturar as caras que aturamos todos os dias, era só ir à tal botica, esperar a nossa vez de sermos aviados, cem gramas, duzentas, meio quilo, fosse quanto fosse de paciência para nos conseguirmos ir aguentando, que nesta coisa de paciências há as das cartas e pouco mais.
sexta-feira, abril 08, 2005
Coisas que acontecem

terça-feira, abril 05, 2005
Com seiscentos mil demónios




Abigotr – Demónio de uma ordem superior, que comanda sessenta legiões e que se mostra sob a aparência de um belo cavaleiro com lança, estandarte e ceptro. Sabe o futuro e ensina aos chefes os meios de se fazerem amar pelos soldados.
Abraxas – Os demonógrafos fizeram dele um diabo com cabeça de rei e serpentes por pés, sendo apresentado nos amuletos com uma cabeça de galo, pés de dragão e chicote na mão, sendo um dos deuses de algumas teogonias asiáticas, de onde proveio abracadabra. Constituía o deus supremo para uma seita herética do século II, os basilídios, que, como achavam que as sete letras gregas com que formavam o seu nome faziam em grego o número 365, colocavam sob as suas ordens vários génios que presidiam aos trezentos e sessenta e cinco céus, e aos quais atribuíam 365 virtudes, uma para cada dia.
Adramelech – Grande chanceler dos infernos, intendente do guarda-roupa do soberano dos demónios e presidente do alto conselho dos diabos. Os rabinos dizem que aparece sob a forma de mula e por vezes de pavão. Era adorado na Assíria, onde se queimavam crianças nos seus altares.
Amduscias – Grão-duque dos infernos, que tem 25 legiões sob o seu comando. Tem a forma de um licorne, aparecendo sob figura humana quando é invocado. As árvores inclinam-se ao som da sua voz e tem o dom de dar concertos, fazendo-se acompanhar pelo som de trompetes e outros instrumentos musicais.
Andras – Grande marquês dos infernos, que comanda trinta legiões. Aparece com corpo de anjo, cabeça de mocho, montando num lobo preto, levando na mão um sabre pontiagudo. Ensina a maneira de matar os inimigos, os senhores e os criados e suscita as discórdias e as querelas.
Astaroth – É um poderoso grão-duque dos infernos, que tem o aspecto de um anjo bastante feio e que se mostra montado num dragão infernal, segurando uma víbora numa das mãos. Ensina a fundo as artes liberais e comanda quarenta legiões. É citado com um dos sete príncipes do Inferno que visitaram Fausto.
Bael – Demónio citado no Grande Grimório, à cabeça das potências infernais, havendo quem lhe chame o primeiro rei do inferno. Mostra-se com três cabeças, tendo uma a figura de um sapo, outra a de um homem e a terceira a de um gato. A sua voz é rouca e torna aqueles que o invocam finos e espertos, e ensina-lhes a maneira de se tornarem invisíveis. Sob o seu comando tem sessenta e seis legiões.
Belphegor – demónio das descobertas e das invenções engenhosas, que muitas vezes se apresenta sob a forma de uma mulher jovem. Há quem diga que tem sempre a boca aberta e dá riquezas.
Beyrevra – Demónio indiano, chefe das almas que erram no espaço, transformadas em demónios aéreos, com grandes unhas muito curvas.
Cali – Rainha dos demónios e sultã completamente preta, que usa um, colar de crânios de oiro e a quem ofereciam vítimas humanas.
Caym – Demónio de classe superior, grande presidente dos infernos, que outrora pertenceu à classe dos anjos e que se mostra habitualmente sob a forma de um melro. Em forma humana, responde do meio de um braseiro ardente. Usa na mão um sabre afilado. É o mais hábil dos sofistas do inferno e pode fazer desesperar um mestre de lógica com a argúcia dos seus argumentos. Foi com ele que Lutero teve uma famosa disputa. Comanda trinta legiões dos infernos.
Copulação - Palavra que exprime a união dos sexos e que os demonógrafos utilizam quando referem que os bruxos e as bruxas praticam a cópula durante o sabat com um diabo que toma a forma de homem para as mulheres e de mulher para os homens, também actuando sob a forma de pato, galinha, gato ou qualquer outro animal. Os filhos nascidos destas cópulas são pequenos e magros, secam três amas sem disso tirar proveito, gritam quando se lhes toca e não vivem mais do que sete anos.
Diabo – Nome que se dá aos demónios em geral. Deriva de uma palavra grega que designa Satanás, precipitado do céu. Alguns demonógrafos afirmam que não se deve confundir demónios com diabos: os demónios são espíritos familiares e os diabos anjos das trevas.
Euronómio- Demónio superior, príncipe da morte. Tem dentes grandes e compridos, um corpo coberto de pústulas e veste uma pele de raposa. Era conhecido dos pagãos, havendo uma estátua dele no templo de Delfos.
Flauros – Grande general dos infernos, que se revela sob a forma de um leopardo. Quando toma a forma humana, adquire um rosto horrendo, com os olhos flamejantes. Conhece o passado, o presente e o futuro, e comanda vinte legiões.
Furcas – Cavaleiro, grande presidente dos infernos, que aparece sob a forma de um homem vigoroso, com uma longa barba e cabelos brancos, montado num cavalo, segurando um dardo pontiagudo. Ensina a lógica, a estética, a quiromancia, a piromancia e a retórica. Conhece processos de achar as coisas perdidas, descobre os tesouros e tem vinte e nove legiões de demónios sob o seu comando.
Homem Negro – O homem negro, que promete aos pobres fazê-los ricos se eles quiserem entregar-se a ele não é mais do que o diabo em pessoa.
Íncubos – Demónios libidinosos e lascivos que se metem com mulheres e donzelas. Outrora uma mulher não podia ter um amante que não fosse um demónio saído do abismo e constituíam prova das suas proezas amorosas as marcas que deixavam nos corpos das suas bem-amadas.
Lechies – demónio dos bosques, com corpo humano até à cintura, com cornos, orelhas e pêra de chibo, tendo figura de bode da cintura para baixo. Fazem um cerco cerrado aos viajantes, imitando vozes de pessoas conhecidas. Atraem-nos para as cavernas, onde se entregam ao prazer de os matar à força de cócegas.
Malphas – Grão-presidente dos infernos, que aparece sob a forma de corvo. Quando se mostra em figura humana, o som da sua voz é rouco. Constrói cidadelas e torres inexpugnáveis, derruba as muralhas inimigas, faz encontrar bons obreiros, recebe sacrifícios e engana os sacrificantes. Tem quarenta legiões sob o seu comando.
Melchom – Demónio tesoureiro, que, nos infernos, paga aos empregados públicos.
Pruflas ou Busas – Príncipe e grão-duque do império infernal. Provoca discórdias, desencadeia guerras e querelas e reduz as pessoas à mendicidade. Sob as suas ordens tem vinte e seis legiões.
Ronwe – Marquês e conde do inferno, que aparece sob a forma de um monstro; dá aos seus adeptos o conhecimento das línguas. Sob as suas ordens tem dezanove coortes infernais.
Sabat – É a assembleia em que os demónios, os feiticeiros e as feiticeiras realizam as suas orgias nocturnas. Entregam-se geralmente à prática do mal, desencadeiam o medo e o pavor, preparam malefícios e meditam em abomináveis mistérios. O sabat celebra-se numa encruzilhada ou em qualquer outro lugar deserto e selvagem, junto de um lago, de um tanque ou de um pântano, pois aí fazem o granizo e fabricam as tempestades. O local que serve para essa assembleia recebe uma tal maldição que nem a erva nem qualquer outra coisa aí pode crescer.
Sapo – Os sapos ocupam um lugar distinto na feitiçaria. As feiticeiras amam-nos ternamente e tratam-nos com muitos mimos. Têm sempre o cuidado de ter alguns, que elas habituam a servi-las e que vestem com librés de veludo verde.
Stolas – Grande príncipe dos infernos que aparece sob a forma de um mocho. Ensina a astronomia, as propriedades das plantas e o valor das pedras preciosas quando toma a forma de um homem e se mostra diante do exorcista.
Súcubos – Demónios que tomam a figura de mulheres e procuram os homens.
Ukobach – Demónio de uma ordem inferior. Mostra-se sempre com o corpo em chamas. Consideram-no o inventor das frituras e dos fogos-de-artifício. Está encarregado de cuidar do óleo das caldeiras infernais.
Xaphan – Demónio de segunda ordem. Quando Satanás e os seus anjos se revoltaram contra Deus, Xaphan juntou-se aos descontentes, que de bom grado o receberam por causa do seu espírito inventivo. No Inferno, atiça continuamente o lume dos fornos com a boca e com as mãos. Tem por emblema um fole.
Yan-Gant-Y-Tan – Espécie de demónio que circula de noite na Finisterra. Usa cinco velas sobre os seus cinco dedos, que faz girar como se fosse uma dobadoira. O seu encontro é de mau agoiro para os bretões.
Zozo – Demónio que possuiu, em 1846, uma donzela na vila de Teilly, na Picardia. Quando ela andava a quatro patas era Zozo que a puxava por detrás.
Obra de referência sobre este assunto, de ondem foram retiradas estas informações, é o Dicionário Infernal de Collin de Plancy, da editora Cavalo de Ferro.
domingo, abril 03, 2005
Lição de moral: o mal de uns é o bem de outros

sexta-feira, abril 01, 2005
Mais uma mania
...facto igualmente interessante é a maneira como as pessoas se apresentam na casa de banho antes da higiene matinal...
As mais das vezes as pessoas acordam com um aspecto bastante diferente do que depois aparentam durante o resto do dia, e ainda menos à noite, que é quando se produzem verdadeiros milagres de transfiguração, isto para já nem falar no hálito e no resto dos odores corporais, um mal bastante desagradável, diga-se, mas de que todos padecem, sem que haja remédio eficiente para tais sintomas, e facto igualmente interessante é a maneira como as pessoas se apresentam na casa de banho antes da higiene matinal, o que é geralmente omitido das técnicas e conteúdos romanescos para não parecer mal, como se desta maneira estivéssemos a transmitir a uma outra espécie inteligente algumas das facetas menos cativantes do género humano, vá-se lá saber porquê e a quem, mas a verdade nua e crua é exactamente esta, por mais que se queira inventar paliativos que não resultam, mas o assunto concreto a que queria chegar é precisamente o momento em que me dirijo para a banheira nos dias em que não faço lavagem de cabelo, com uma touca de banho que se destina a não molhar a zona superior do corpo, mas que me faz parecer um maluquinho recém-escapado de uma instituição de internamento, pelo menos é o que me dizem, que eu nunca vi pelas redondezas de estabelecimentos similares andarem por ali com toucas de banho na cabeça, embora possa ser distracção minha, já que uma pecha específica da minha personalidade é ser completamente distraído para grande parte do que se passa à minha volta, de ser capaz de passar na rua mesmo ao lado de pessoas com que convivo diariamente e nem reparar nelas, completamente de cabeça no ar, e com a idade que tenho já não há nada a fazer, mesmo nada de nada, se bem que quando conduzo um automóvel sou por norma bastante atento e previdente, enfim, é o que eu acho, mas estou sempre aberto a opiniões divergentes, desde que devidamente justificadas com base numa observação eficiente do meu caso e de estudos comprovados com uma quantidade de casos suficiente para demonstrar uma teoria que seja contraditória com esta característica específica que tenho por verdadeira, não é que seja teimoso, o que não é inteiramente verdade, que sou, pelo menos um bocadinho, há quem diga um bocado, que uma pessoa também não pode ser só virtudes, e os defeitos concedem alguma graça a uma pessoa de contrário bastante sensaborona, que há quem se tenha por símbolo da perfeição sem prestar a devida atenção à opinião que os outros possam ter dessa excelência e, cá para mim, para ser franco, é porque nunca se viram com uma touca de banho na cabeça logo de manhãzinha, mas isso se calhar é mais uma mania das minhas.
