Caminhava pelas sombras, com um cuidado imenso para que cada passo não entrasse em zonas de luz, e na sua voz trazia todos os medos do mundo, que nos olhos não transparecia porque os não mostrava a ninguém, desde pequeno que apenas saía de casa em dias de sol, quando houvesse sombras onde colocar os pés e deixar o corpo esquecido, tal como escurecera a sua vida e a escondera por detrás de janelas e portas que nunca se abriam, e então saía para se abrigar debaixo das árvores no caminho que o levava até onde tinha que ir, nunca ao acaso, que todos os centímetros eram planeados com rigor em elaborados esquemas que desenhava em páginas e páginas de cadernos que eram os seus diários, onde mais nada se acharia que não passos alinhados em traços que ligavam lugares a outros lugares e horas de sombra e sol e onde havia ausência de palavras, de sentimentos, de rostos e de nomes, dia após dia, mês após mês, ano após ano, um cálculo frio para se deslocar de casa às lojas onde comprava o pouco de que necessitava para estar vivo e onde ia embrulhado da cabeça aos pés e sempre com uma sombrinha para que não houvesse raio de luz que lhe mordesse a pele, o que muito estranhava na vizinhança a quem não lhe conhecesse aqueles estranhos hábitos, que quando chovia ou o sol se deixava esconder pelas nuvens ninguém lhe punha a vista em cima, semanas inteiras passavam até o voltarem a ver regressar de novo à pequena mercearia de bairro, à peixaria ou ao talho, ou à loja de sempre onde invariavelmente comprava aquilo de que precisava, e de noite era impossível encontrá-lo fosse onde fosse, abrigado atrás de janelas de onde não surgia nem uma réstia de luz porque se deitava mal o sol se punha e se levantava apenas quando a luz do dia era suficiente para que olhasse para as coisas sem o auxílio de coisas eléctricas, de candeeiros ou velas.
Vegetava assim pela cidade de onde nunca saíra e de que quase nada conhecia, porque não se aventurava para além do bairro, nem se metia em transportes nem em salas demasiado iluminadas, e nada se sabia de como ganhava a vida nem como levava os seus dias solitários, já que não havia memória de que alguém o tivesse alguma vez visitado nem de que recebesse correio, para além das habituais contas de água e de gás, que telefone e electricidade não as tinha porque nunca as havia pedido ou porque lhas tinham cortado sem que houvesse notícia de ter reclamado, quase nada se ouvia para além de alguns passos ou um ocasional arrastar de móveis, coisas que se sabia pelas inconfidências de carteiros, vizinhos ou porteira, tanto quanto se soubesse nunca abria a porta a figura de gente que se lhe dirigisse. Dizia-se que escrevia livros, embora nunca o tivessem visto na estação dos correios a enviar ou receber fosse o que fosse, que pintava quadros, se bem que jamais o tivessem visto com telas ou tintas debaixo do braço e não houvesse por ali perto onde as comprar, mas que era estranho isso não havia quem o negasse, que havia ali uma vida que não queria saber das outras nem de ninguém, e um dia entraram-lhe em casa e mataram-no uns ladrões de meia tigela sem que nada pudessem levar porque nada encontraram para levar: uma cama, uma mesa, uma cadeira, um velho sofá, um armário com roupas gastas, latas de conservas, um vetusto fogão, panelas, potes, copos e pratos usados vezes sem conta, um monte de jornais, pilhas e pilhas de cadernos arrumados numas simples prateleiras, que às vezes a vida não se conta pelas coisas que se tem.