...os das campanhas bem que deviam era dar o exemplo em vez de se porem a dizer aquelas coisas todas da boca para fora e depois andarem o dia inteiro de rabo tremido no carrinho do Estado ou da empresa...
O dia de anos começara a correr-lhe mesmo bem, tinham-lhe atropelado o cão, batido no carro, depois tinham fugido, como gente civilizada que se preze, passara o dia entre veterinário e mecânico, de cá para lá numa correria insana, ora porque o bicho gania com dores ora porque uma das rodas do carro tinha ficado entalada na chapa e aquilo fazia uma barulheira de todo o tamanho, para além de lhe dar cabo do pneu, vá lá que o bicho apenas tinha uma perna partida, do mal o menos, tinham-lhe dado uma vacina, coisa de que não gostava mesmo nada, que só de ver a seringa o cão tentava escapar-se da marquesa, com perna partida e tudo, depois puseram-lhe gesso, no fim até nem tinha reagido mal à adversidade, ficara a andar pela casa como o capitão da perna de pau, toc-toc-toc, até lembrava a história da moleirinha, o pior ia ser de noite, que a casa era toda em chão de madeira e o desgraçado tinha o mau hábito de fazer a ronda das cinco da madrugada, quando não era a das quatro, das três, das seis, sempre que lhe dava na mona, o carro acabou por ficar no mecânico para lhe endireitarem a chapa e darem uma pintura, não ia sair barato, mas o que tinha que ser soaria, para regressar teve que chamar um táxi pelo telefone e ficar ali à espera que chegasse, que para os lados da oficina transportes públicos nem vê-los, era sem dúvida um bom sítio para lançarem campanhas de apoio aos transportes públicos, como se aquilo ficasse no fim do mundo, não era nada, quando muito um bocadinho fora de mão, também ninguém quer oficinas ao pé de casa e elas têm que existir e ficar nalgum lado, ao menos que houvesse quem nos levasse até lá, mas nada, nicles, para que é que queres ir à oficina de transportes públicos, se precisas vais de carro, para isso é que elas foram feitas, para arranjar carros, voltar voltas quando estiver arranjado, ou então a pé, que faz bem à saúde, o que ele gostava era de ver os que vão dizer estas coisas para a televisão a vir de pé da oficina até à próxima paragem de autocarro, sempre são umas boas duas léguas, porventura um bocadinho mais, por uns caminhos um tanto ou quanto estranhos e meio desertos, sem passeios nem nada, voltava-se a pé da oficina e ia-se mas era parar ao hospital, os das campanhas bem que deviam era dar o exemplo em vez de se porem a dizer aquelas coisas todas da boca para fora e depois andarem o dia inteiro de rabo tremido no carrinho do Estado ou da empresa, com motorista à conta e tudo, depois à noite foi a festa, tinha que haver uma festa, pois claro, com bolo e tudo, e a miúda teimou que queria trazer o bolo da cozinha para a sala já com tudo às escuras e com as velas acesas, estava-se mesmo a ver que ia tropeçar no meio do caminho e atirar com o bolo e as velas e o prato para o chão, começou a choradeira, por mais que lhe disséssemos que não tinha culpa, que tinha sido um acidente, que havia por ali umas formigas que gostam de pregar partidas e passar rasteiras às meninas que andam com bolos na mão pela casa inteira, nada, as lágrimas não paravam, davam para encher um copo e depois fazer um quilo de sal, do fino, claro, que ela é pequenina e mimosa, o sal grosso nasce é das lágrimas dos crescidos, assim como assim se deitam aquilo cá para fora é porque não lhes faz falta, há-de haver mais de onde veio aquele, certamente que sim, na fábrica do sal devem ter lá uma data de gente a martelar na cabeça uns dos outros e a pô-los a chorar que é para depois se fazer o sal de cozinha e o sal refinado e a flor de sal essa então é quando picam as pessoas com os espinhos das roseiras, ai não que não é, que dói que se farta, e para fechar a festa às tantas faltou a luz, os convidados tiveram que descer sete andares pelas escadas à luz da lanterna, e quem foi o desgraçado que foi lá baixo a alumiar o caminho e depois teve que subir os mesmos sete andares que já pareciam catorze, quem foi?, claro que foi o aniversariante, mais o cão manco, que teve que vir à rua fazer as necessidades, que sete andares para os miúdos virem com o cão era demais, pois era, para o desgraçado do cão é que não, nem para o pobre coitado, que quando chegou à cama caiu para o lado e só se levantou dois dias depois para ir buscar o carro à oficina.