C
omeçar uma conversa a falar do tempo é, por norma, sinal de que não temos outro assunto de que falar, hoje o dia está bom, assim-assim, começa a ameaçar chuva, não gosto desta humidade, que faz mal aos ossos, e que calor fez hoje, nem se podia respirar, coisas assim, ditas mais ou menos desta maneira, são aquilo a que vulgarmente se chama conversa de chacha, mas é que na verdade me tem faltado tempo para escrever, que é uma das coisas (ele há outras, felizmente) que mais gosto de fazer, e se uma pessoa lhe perde o hábito depois fica com as palavras para ali recalcadas, a quererem sair a toda a força e não terem por onde nem como, sem saberem lá muito bem se é hoje, amanhã, ou um dia destes, que vêm passear para a rua, que é como quem diz nos caminhos de papel ou digitais para onde lhes damos ordem de marcha, que isto também não é assim de qualquer maneira, como elas querem, têm que andar ordenadinhas, senão é uma salgalheira, um vê-se-te-avias, a anarquia total, as palavras precisam de disciplina, de andar na ordem, estas aqui e aquelas acolá, como bom esquadrão que se preze, enfileiradinhas, aprumadas, à maneira militar, mas voltando ao tempo, que era por onde pretendia começar este texto, que foi entretanto ganhando alguma vida própria, acabando por entrar num ou noutro desvio de que eu não estava à espera, é no que dá uma pessoa não dar rédea curta às palavras, o tempo, dizia, acaba por ir faltando, que é um maneira de dizer que temos algumas falhas na maneira de o ir organizando, porque o tempo é sempre igual todos os dias, são vinte e quatro horas certinhas, nem mais uma nem menos uma, mil, quatrocentos e quarenta minutos, uns sempre atrás dos outros, que estes não têm a mania de ir passear de vez em quando e deixar-nos à espera numa qualquer esquina ou sentados a uma mesa de café, estão sempre ali, depois de um vem logo outro, o que muitas vezes não sabemos é como lhes dar uso, vamos pela vida a pensar que estarão sempre ali à nossa espera e tentamos ir esticando um aqui, encolhendo acolá um outro, e isso não é sistema, claro que não, mas uma pessoa distrai-se, nem dá por eles a correrem uns atrás dos outros, que estes não batem com os pés no chão nem fazem alarde das correrias em que se metem, de repente damos por nós e já lá vão longe, e depois ficamos a lamentar-nos e a choramingar que não tivemos tempo, que isto e aquilo, que era pouco, quando no fundo é sempre o mesmo, todos os dias, todas as horas, todos os minutos, e o que acaba por sobrar é mesmo a nossa azelhice.
terça-feira, setembro 19, 2006
A sabujice política
H
á coisas para as quais nunca tive estômago, e uma delas é a sabujice política, seja ela servida de que maneira for, com mais ou menos acompanhamentos, é no que dá ser esquisito, quem me manda a mim, se porventura o não fosse seria hoje talvez autarca, quadro político de um qualquer partido, ou, quem sabe, upa, upa, que nestas coisas estomacais o que é preciso é ter ambição, e quanto mais medíocre se for tanto melhor, torna-se afinal mais fácil, que uma pessoa que não tenha escrúpulos nem consciência, mesmo que venha a público alardear que a tem, é capaz de tudo e mais alguma coisa e para isso não tenho pachorra, nunca a tive, talvez nunca tenha morrido em mim um certo espírito anarca dos meus tempos de juventude, mas quebranta-me o ânimo e a esperança no género humano observar como existe quem se disponha a tudo para aparentar ser aquilo que não é e defender o que na verdade nem sequer acredita, se é que para tais gentes haja ainda alguma crença pela qual valha a pena pugnar que não seja o expediente político e o benefício pessoal, aliado a um qualquer prestígio pelintra que, na minha ingenuidade, não consigo entender nem à lei da bala, para isso se pretendendo fazer passar o que é manifestamente falso por uma grande verdade e um facto comprovado, sem que tal crie indigestões, e ainda menos pelos sapos que se dispõem a engolir, que eu cá se engolisse sapos certamente os vomitaria logo de seguida, nem sequer aprecio coxinhas de rã, nem muito nem pouco, nada, e se me dispuser a beijar a mão de uma senhora fá-lo-ei unicamente por cortesia e boa educação e não para prestar quaisquer vassalagens, que já foi chão que deu uvas e, se calhar, bom vinho.
domingo, setembro 17, 2006
Vírgulas e outros sinais
À
s vezes a escrita vai por ali fora e, zás, uma vírgula, depois outra, outra ainda, afinal servem para quê, estes minúsculos traços que escrevemos a seguir às palavras, a separar frases, pensamentos, será que somos assim tão limitados no pensamento para necessitarmos dessas pequenas pausas que nos façam organizar o raciocínio acerca do que lemos, do que escrevemos, do que nos passa pela cabeça, será que pensamos com vírgulas, com pontos, com interrogações e exclamações, afinal há quem pense com imagens e não só com palavras, e será que as imagens precisam de vírgulas ou porventura usamo-las na nossa vida, levanto-me, acendo a luz, vou à casa de banho, abro a torneira, ligo o esquentador, entro na banheira, pego no sabonete, no champô, passo após passo uma vida separada por vírgulas, de quando em vez um ponto final, um parágrafo, mudo de ideias, penso noutra coisa qualquer, esqueço o que tinha pensado antes, fico ensimesmado, sem nada que me passe pela cabeça, com reticências, acordo de repente deste estado de meia sonolência, exclamo, no que estava eu a pensar, ponto de interrogação, estava mas era a perder tempo, que os minutos estão mais do que contados, irrito-me comigo mesmo, uso outro ponto de exclamação, apresso-me a vestir-me, a comer qualquer coisa para não sair para a rua em jejum, tudo pequenos actos em sucessão, entrecortados por vírgulas, lá estão elas outra vez, será que é assim que organizo as minhas ideias, com vírgulas, ponto de interrogação, um ponto final semeado aqui e ali para separar melhor, um parágrafo se encerro um assunto, se já deu o que tinha a dar, se acabo uma sequência antes de passar a outra, até por fim adormecer e começar tudo de novo.
terça-feira, setembro 12, 2006
A pobreza nacional de arte contemporânea

U
m destes dias, aproveitando um pouco do meu tempo de férias, decidi visitar o Museu Nacional de Arte Contemporânea, vulgarmente conhecido como Museu do Chiado, tendo de imediato sido alertado na bilheteira para o facto de a colecção do museu em exposição estar reduzida ao que se podia ver no átrio e pouco mais, havendo no entanto uma instalação vídeo de Alexandre Estrela intitulada Stargate que podia ser visitada, ainda assim não esperava que o pouco que se pudesse ver da arte contemporânea portuguesa fosse uma paupérrima mostra de pouco mais do que uma dúzia de peças, dela estando ausente a grande maioria das obras que pudessem dar uma ideia do panorama da arte portuguesa que dá título ao museu, para mais numa altura em que mais estrangeiros visitam Lisboa, para já nem falar do momento em que muitos portugueses têm maior disponibilidade de tempo para passear e para, de algum modo, formarem uma opinião acerca da produção artística no nosso país ao longo destes últimos anos, visitando o pouco que esta cidade, capital de um país da União Europeia, dentro em breve presidindo aos destinos da mesma, tem para oferecer a quem se disponha efectuar uma ronda pelos espaços culturais em vez dos bares, das discotecas, dos estádios de futebol e dos centros comerciais, predisposição de poucos, dir-se-á, mas que ainda assim mereceriam ser tratados com algum respeito e consideração e não sofrerem uma decepção idêntica à que senti nesse dia, num enorme e bonito espaço praticamente vazio, o que não admira, em que havia mais do dobro de funcionários para os escassos visitantes que por ali perambulavam, tentando vislumbrar o mínimo que havia para ver, onde não havia sequer um Sousa Cardoso, um Medina, um Cesariny, um Malhoa, um Carlos Botelho, um Abel Manta, um Júlio Resende, um Cargaleiro, para já nem falar de Vieira da Silva, de Maluda, de Paula Rego, de pintores estrangeiros, ou de outras manifestações artísticas contemporâneas, como a fotografia, por exemplo, mas qual quê, nada de nada, nem um cheirinho, deve mas é andar por aí uma data de gente distraída ou a fazer qualquer coisa que não seja nem financiar nem gerir museus, se quiserem vão mas é à Gulbenkian, que isto de museu nacional é só fachada, um nome para aparecer nas listas e já é bem bom.
quinta-feira, setembro 07, 2006
Os Maleáveis
Q
uando assumiu as responsabilidades para as quais foi designado, o Artur decidiu, de uma vez por todas, adaptar-se às circunstâncias o melhor que pudesse e soubesse, e nisso tinha uma já longa experiência, habituado que estava a dizer uma coisa e a fazer outra, não é que enganasse fosse quem fosse, não, era tão só uma capacidade de adaptação ao momento e à altura em que tinha que tomar decisões, uma maleabilidade que, considerava ele, era um das suas mais importantes características, não estranhando, portanto, que com ele levasse uma série de amigalhaços que, à sua imagem e semelhança, possuíssem essa ductilidade mais ou menos intrínseca às respectivas maneiras de ser, quem olhasse para aquilo com olhos de ver acharia por certo que não passava de uma súcia de aldrabões, sempre prontos a meter a mão no que não lhes pertencia e a darem cabo de tudo e mais alguma coisa só para levarem a opinião deles avante, se é que de opinião se tratava, ou não houvesse ali alguma estratégia bem oculta dos mais atentos observadores, com que intenções é que não se sabia ao certo, boas é que não eram certamente, e más dependia do ponto de vista, que havia sempre uns quantos néscios que achavam que sim, e à grande maioria não era difícil enganá-la, bastando para tanto acenar-lhe com umas quantas pataratas, quanto mais bem engendradas melhor, fundamento legal daqui, fundamento legal dali e já estava, se fosse preciso arranjava-se umas quantas determinações europeias, daquelas que quase ninguém contesta porque vêm de lá do centro da Europa e, como estamos cá arrumados num cantinho, aquilo deve ser verdade mesmo, vai-se então duvidar?, ora essa, se uma pessoa desata a desconfiar nos de lá do centro da Europa então em que é que vai confiar?, no vizinho é que não, isso nem pensar, não faltava mais nada, que sempre que puder ele vai é dar-me cabo da paz e do sossego, nem mais, vizinho serve é para isso mesmo, se não for isso serve então para quê?, agora essa gente que tem duas caras, ou até mesmo mais, o tal Artur e a sua pandilha, esses é que não se ralam com nada disto, vão fazendo o que muito bem querem e lhes apetece pela calada, e nem sequer é da noite, que não lhes falta descaramento suficiente para descartarem o período diurno, aquilo vai a todo o vapor, dão a cara a qualquer hora do dia e levam tudo à frente, os menos atentos e os mais atentos, venha quem vier leva pela mesma medida, com uma ou outra eventual excepção para os amigos do peito, aqueles que, mesmo sofrendo da maior incompetência, acabam por recolher benefícios aqui e acolá, afinal quem manda é quem manda e está tudo dito.
segunda-feira, setembro 04, 2006
Os lusicidas
T
empos houve em que se podia mandar alguém à outra parte sem que daí viesse problema de maior, porventura quando de lá voltasse até traria novidades, e das grandes, passava-se à história por ter sido mandado para lá, coisa que hoje em dia dificilmente acontecerá, basta experimentar, ó fulano de tal, vai mas é à Taprobana, e logo de volta se recebe um vai tu, sendo isto já considerado um tratamento de delicadeza face à capacidade inventiva que por aí grassa de utilização de um léxico ainda mais vernáculo, e se considerarmos juntar algum esforço a tal requisito então é que nem pensar, não queriam lá ver, assim como assim este povo de São Valente já deu o que tinha a dar, de borla nem mai' nada, isso é que era bom, sopas e descanso é que é, heróis do mar só no hino, e do nobre povo nem amostra, deve ter havido algum equívoco quando escreveram tal coisa, estariam porventura a pensar nalgum outro país que não neste, acontece com alguma frequência, uma pessoa engana-se e depois já não vai a tempo de voltar atrás, está escrito e pronto, não há nada que se possa fazer, apesar de tudo cá vamos durando, ano após ano, mesmo com os barões de hoje em dia, que de assinalados têm muito pouco, para dizer a verdade nem um bocadinho que se veja, que aquilo que anda à vista o melhor seria que andasse mas era escondido, tal como tantas e tantas vezes anda a inteligência, a sensibilidade, a boa educação, o bom gosto, embora mais pareçam ausentes do que ocultos, mas isso são opiniões, enfim, mais valia que fosse a falta de vergonha a ter tais pruridos, mas essa é que não há maneira, pavoneia-se de um lado para o outro como não se não fosse nada consigo, desfila por tudo quanto é lugar, é vê-la nas revistas, nos jornais, na televisão, sempre que pode, e mesmo quando não pode, desde que ande de barriga cheia fica satisfeita da vida, quanto mais ingénua na sua ignorância melhor, afinal a sabedoria serve para quê, para conhecer o caminho até ao supermercado, para comprar uns mariscos e fazer uma patuscada, para contar umas anedotas ordinárias, se calhar já chega, não vá uma pessoa gastar a inteligência que tem a preocupar-se com uns livros e uns quadros e uns filmes e umas fotografias e umas casas (velhas ou novas, tanto faz) e umas esculturas e uns concertos, que o que é preciso é reservá-la para as anedotas e os jogos da bola e as férias no Algarve e as missas de domingo e o telemóvel que faz isto e aquilo e o resto das coisas que afinal são mais importantes, nem que seja só para mostrar às visitas.
sexta-feira, setembro 01, 2006
Acabaram-se as vacanças
Q
uando se acabam as férias, começo a entrar em profunda crise de nervos, o que me tem vindo ultimamente a dar cabo do juízo, principalmente de um ano para cá, aguardando de pé atrás as brilhantes soluções que a época de verão traz à tona nas mentes inundadas de ideias de quem de há uns tempos a esta parte vem mandando nos destinos do país, ou seja, extraordinárias inovações tecnológicas, curas milagrosas para isto e para aquilo, peregrinas teorias económicas que até façam dar lucro às pedras do chão e às árvores que entretanto arderam por aí fora, novas formas de encarar a divulgação artística e cultural, enfim, uma panóplia de assombros que me faça abandonar a depressão, o desânimo, a descrença e a vontade de fugir para um lado qualquer onde não haja nem jornais, nem rádio, nem televisão, o que não é fácil, bem sei, que há quem consiga aparecer em todo o lado, até mesmo onde menos se espera, como me aconteceu durante as férias, quando estava hospedado num hotelzito na Galiza e nem aí me consegui livrar de dar de caras com um desses espécimes governativos omnipresentes, pondo-me a maldizer tudo e todos na vã esperança de que não passasse de uma mera ilusão de óptica, mas qual quê, para além de não ter tido sorte nenhuma, ainda por cima foi quando desataram a aparecer incêndios por tudo quanto era canto, deixando-me mais defumado que um arenque, deve haver qualquer relação entre ambos os casos, ai não que não há, que uma desgraça daquelas nunca vem só, não vem, não.
