nabela Cidade era moça prendada, embora dada a namoricos de ocasião, havia quem a tivesse por doidivanas, por maria-vai-com-as-outras, de todo em todo o oposto às manas Serra, que mal punham o nariz fora de casa sem levar um irmão mais velho como pau-de-cabeleira, como se vivessem num daqueles países árabes em que uma mulher mal pode pôr o pé na rua sem ficar logo mal vista na sociedade inteira, e com isso perder casamento e ainda por cima ser transformada em alvo de tiro com pedra, o que não tem piada nenhuma, esclareça-se para que não fiquem dúvidas acerca da posição do autor acerca de tão ancestrais como condenáveis práticas, que revelam que nem sempre as tradições devem ser mantidas, se bem que as tais meninas recatadas vivessem numa rígida obediência à vetustez dos hábitos patriarcais, o que, no final de contas, não impediu que uma tivesse engravidado de um tal Aparício, pintor de profissão, homem já casado, que durante uma temporada andou lá por casa a renovar o estuque e a pintura das paredes, com especial esmero do quarto de dormir das meninas, que deram por falta de uns pares de cuecas e sutiãs, mais tarde utilizados para solitária satisfação erótica do pintor, tendo a outra mana acabado por fugir de casa aos dezasseis anos com um angariador de seguros que, com tanta lábia, acabou por convencer o paizinho a adquirir seguros de vida para si e para a dona Ester, a sua estremosa esposa, um seguro automóvel para as duas viaturas particulares e para os pesados da empresa, daqueles contra todos os riscos e que custam os olhos da cara e cujo prémio acaba por se manter mais ou menos na mesma apesar dos veículos se irem desvalorizando todos os anos a olhos vistos, para além de um seguro familar, daqueles que cobrem tudo e mais alguma coisa e que, num dia de azares maiores, vai-se a ver nas entrelinhas e não servem para o que é preciso, muito menos para impedir que uma filha se ponha a mexer com quem lhe der na gana, ou melhor, com quem lhe sopre ao ouvido meia dúzia de falinhas mansas, é no que dá querer mantê-las fechadas em casa a todo o custo em vez de as deixar ir ganhando experiência de vida, e a tal menina Anabela Cidade, mais moderna, como se dizia, mais vivida, a tal doidivanas, acabou os estudos, foi para a universidade formar-se em medicina, fez um casamento de estalo com um economista de sucesso, e acabou a passar a certidão de óbito ao desgostoso senhor Serra.
É
certo e sabido que quem percorre a estrada de Sintra, ali por volta de Queluz de Baixo, a meia dúzia de passos da via rápida, se estiver com menos atenção à estrada do que às reduzidas faixas de terra que ainda conseguem sobreviver no meio do betão, pode dar com um indivíduo aí pelos seus setenta anos a cavar uma minúscula horta um tanto ou quanto abafada pela poluição, e nesse homem curvado sobre a enxada entrever não o Colimério, mas alguém que saberá com certeza explicar-lhe de quem se trata a figura a que se refere este título, conhecido que é nas redondezas de quem possui memórias de tempos idos por aqui há uns bons cinquenta anos ter estado na origem de um mistério que nem nos dias de hoje encontrou explicação cabal para o que aconteceu durante cerca de duas semanas, quando diversos corpos esventrados de galinhas surgiram espalhados ao longo de cerca de quinhentos metros da estrada que hoje em dia todos conhecem como o icê dezanove e que, na altura, era muito menos calcorreada a todas as horas e minutos do dia, fenómeno que se repetiu três vezes, o que, como toda a gente sabe, é um algarismo com uma história cabalística de se lhe tirar o chapéu, isto para quem ainda se atreve a ostentar um tal adereço, tendo na altura mobilizado diversos meios militarizados, daqueles que noutros tempos eram mais conhecidos como capicuas, que patrulharam para a frente e para trás o já mencionado troço de estrada sem descobrir fosse o que fosse nem muito menos impedir que a coisa se repetisse ainda outras três vezes, para vergonha das polícias e embaraço das restantes autoridades, para já nem falar do reforço da cabalística do número, que se apressaram a censurar tais ocorrências nos meios jornalísticos da altura, muito embora obtivessem muito menos sucesso com as notícias que circularam de boca em boca, que é algo que acontece quando se pretende à viva força impedir que qualquer acontecimento seja do conhecimento geral, constituindo muitas vezes emenda pior que o soneto, porque o mistério dá origem a distorções, aumentos, lendas, para já nem falar do anedotário nacional, que era muito mais imaginativo e interessante do que o que por aí agora se ouve, que é falho em piada e abundante em brejeirice gratuita, e que, de mais a mais, nesses tempos recuados, originava uma literatura mais ou menos clandestina, que constitui raridade bibliográfica, largamente disputada por quem se especializa em tais áreas da actividade e do conhecimento humanos, e em cuja origem se diz que o próprio autor das proezas terá metido a sua colherada, em proveito do próprio bolso, diga-se de passagem, sem que mesmo agora se saiba se o que terá estado na origem dos factos terá sido um mero aproveitamento financeiro, algo que as más línguas logo se apressaram em aventar, posto um súbito e inexplicável enriquecimento aparente de um figurão que não se livrava da fama de Fantasma da Porcalhota, e de quem se dizia ter sido praticante de luta livre, mercenário, pirata, angariador de prostitutas, e mais uma boa quantidade de profissões do mesmo calibre, tendo dado origem a investigações que duraram meses e meses sem que se chegasse à obtenção de meios de prova, de testemunhos dos actos praticados, provocando até uma boa quantidade de álibis que tanto poderiam ter sido forjados ou não, e que chegaram até à descoberta de um cadáver do sexo masculino que logo deu origem ao boato de se tratar de alguém que se aprestava a denunciar o perpetrador do estripanço dos galináceos, fosse ele o misterioso Colimério ou não.
quarta-feira, julho 12, 2006
Esta noite discute-se
U
ma das maiores controvérsias a que assisti nestes últimos tempos, e na qual acabei por meter a minha colherada, discorreu a propósito de um problema de identidades relacionado com uma avantajada senhora, momentaneamente vizinha de piscina do grupo a que eu pertencia, e a quem uns iluminados progenitores decidiram chamar Preciosa, nome que esteve na origem da tal troca de opiniões e deste improviso, já que houve quem tivesse ouvido tratá-la por Graciosa a um anafado miúdo com mais tendência para leão marinho do que para primata, que fazia esparrinhar litros e litros de água por todos os lados sempre que decidia atirar-se de qualquer maneira para dentro de água, dúvida que se manteve ao longo de toda a tarde e do serão, gerando alguns equívocos que na altura nos pareceram relevantes para traçar um retrato psicológico da pessoa em questão, a quem certamente não faltariam preciosidades de carácter, muito embora não fossem notórios ao grupo de observadores que constituíamos, podendo contudo dar-se o caso de ser a nossa atenção que pecava por escassa, já que muito menos nos foi possível descortinar a graciosidade da referida figura, e ainda menos notá-la nalguns aspectos da conversa que ia mantendo com a tal foca humana e com a sua companheira de cadeira, o que não quer, de modo algum, dizer que o nosso tempo tivesse sido totalmente preenchido na observação fenomenológica do problema, Preciosa ou Graciosa era a questão, tendo daí surgido uma complicada problemática face à impossibilidade de chegarmos à verdade, a qual poderia ostentar diversas formas, que é o que frequentemente acontece à verdade, está uma pessoa convencida de qualquer coisa e às tantas por tantas dá por si envolvida num equívoco, apesar de por vezes ser difícil demonstrar o contrário, já que as demonstrações também podem estar na origem de novos lapsos, propositados ou não, geram grandes burburinhos, discussões, insultos, velados ou não, zangas, bofetada para cá, bofetada para lá, acabando tudo numa enorme confusão sem que se levante a menor pontinha do véu, mas uma coisa eu posso afiançar, fosse o nome da dita cuja este ou aquele, pelo menos não aparentava nem um nem outro, e até hoje fiquei na dúvida.
quarta-feira, julho 05, 2006
Aquariofilias
A
o fundo da sala, sobre um parapeito encimado a mármore, onde antes havia uma janela que dava para a varanda agora transformada em marquise, atraía o olhar mal se entrava, com os reflexos das luzes que iluminavam a água transparente e onde aqui e ali brilhava o colorido dos pequenos peixes que nadavam de um lado para o outro, naquela prisão mais ou menos dourada em que não raras vezes os peixes de água doce se vêem enclausurados para deleite da vista das gentes, merecendo que se diga que se tratava de um aquário de dimensões razoáveis, onde não faltavam as verdurinhas artificiais, umas tantas pedras no fundo, um aparelho para purificar e oxigenar a água, uma alimentação regular e suficiente para que os aquícolas fossem medrando nas suas minúsculas existências, enfim, tudo o necessário para preservar uma subsistência razoável para um peixe doméstico que se preze e a que os anglo-saxónicos poderão chamar the works, a isto se aliando uma limpeza esmerada de quando em vez de tal habitáculo, com toda a imensa panóplia de instrumentos necessários para a levar a bom porto, redezinhas para retirar os animaizinhos com todos os cuidados, instrumentos e acessórios de limpeza, mais isto e mais aquilo, tudo para contentamento do L. e da A., que alegremente apontavam esta e aquela espécie aos ignorantes visitantes, e não menos contentamento mostravam aos encómios prestados àquele minúsculo microcosmo que, até certo ponto, retinha uma boa parte da atenção de quantos entravam naqueles domínios, até mesmo dos que acabavam por se sentar no sofá que encostava ao dito parapeito, de costas para o domicílio piscícola, e isto foi durando até ao dia em que, após uma das já rotineiras barrelas ao aquário, e repousando ao fim do dia no já referido sofá, a A. sentiu uma agradável tepidez junto às costas, onde não havia nem aquecedor eléctrico nem nenhum outro aparelho destinado a aquecer o ambiente, reparando, com espanto, que os peixes se haviam abstido dos seus habituais passeios para a direita e para a esquerda, chegando à conclusão que se encontravam todos à tona da água, bem cozidinhos e defuntos, devido a um descuido na regulação do termóstato, que lhes oferecera uma temperatura ambiente bem mais apropriada a ambientes tropicais do que ao clima temperado a que estavam acostumados, o que serviu de exemplo para que o tal aquário acabasse na arrecadação da cave, desaparecendo definitamente da divisão de honra da casa, onde mais tarde começaram a aparecer os cartazes dos Pink Floyd, mas isso é outra história.
domingo, julho 02, 2006
O amor à pátria
P
elos vistos, o amor à pátria é redondo, está cheio de ar, serve para dar pontapés, de quando em vez algumas cabeçadas, e quem lhe consegue meter a mão é herói, proeza de facto merecedora de relevo, essa de conseguir deitar a mão a tão diáfano quanto transitório sentimento, e uma tal intrepidez é hoje em dia comemorada com buzinadelas, gritaria generalizada, e acumulação de multidões em locais previamente definidos como apropriados para tais festejos e para onde convergem gentes de todas as cores e feitos, com roupagens adequadas, coloridas q.b., chapéus de bobo, cachecóis adequados à estação do ano, que é o verão, bebidas fermentadas pelos povos do norte, estandartes que testemunharam a glória das mais diversas batalhas, o pior é quando o balão se esvazia, que não fica nada, ou talvez apenas as unhas roídas, depois volta-se à mesma tristeza de sempre, às mesmas caras, à conversa fiada que já se ouviu ou leu vezes e vezes sem conta, ao desemprego, à crise, aos défices do costume, às culpas que vão sempre dar aos mesmos e nunca àqueles a quem deviam ir dar, que esses têm a esperteza de saber esconder-se por detrás de qualquer subterfúgio de amor à pátria, que se calhar é igualmente redondo mas desta vez menos visível, quem sabe se não aparece por aí algum responsável político a pedir que, se a culpa da educação estar assim é dos professores, não será de corrê-los à pedrada das escolas, se há gente a mais a trabalhar para a função pública não poderá levar idêntico tratamento, partem-se umas cabeças e fica o problema resolvido, calam-se os outros todos, os graúdos que mandam, os que deviam responsabilizar quem afirma tais alarvarias, nas televisões desconversa-se, os jornais enchem páginas atrás de páginas de análises científicas acerca das estratégias do jogo da bola, parece até que não se passa mais nada, depois disto vai-se a banhos e entretanto passa-se mais um ano no diz que diz-se, no faz-se de conta, certamente que haverá por aí quem esfregue as mãos de contentamento com tão desvelado amor à pátria.
