V
ivendo de uma modesta agricultura de subsistência, como tantos outros nessas esquecidas aldeias do interior, que lhe servia, de quando em vez, para compensar o magro pecúlio que lhe pagavam pelas tarefas no cemitério, cada vez mais esporádicas, dada a desertificação ocasionar apenas um funeral de ano a ano, às vezes nem tanto, o Bento lá ia amealhando uma pérola de sabedoria aqui e outra ali na sua cultura quase analfabeta durante as conversas mais ou menos sussurradas que lhe proporcionavam os raros cortejos fúnebres, tendo sido por uma dessas vezes que lhe chegara aos ouvidos o facto de o defunto não ter sido capaz de recuperar de uma súbita perda de consciência, nem mesmo com as tentativas de um tal Ramiro, que tinha feito serviço militar no ultramar como enfermeiro, que, em desespero de causa, chegara a experimentar a respiração boca a boca, num derradeiro esforço para salvar aquela vida que se ia esvaindo aos poucos e poucos, o que deixou uma forte impressão no espírito simples do Bento, que nem fazia ideia que tal coisa fosse possível, daí que, quando começou a escapar-se-lhe por entre os dedos a possibilidade de engordar o ordenado por altura das vésperas de Natal com a venda dos melhores exemplares da sua criação de perus, devido a uma súbita enfermidade que atacou as fêmeas da espécie, deixando-as de espinhela caída, não estivesse com meias medidas e se pusesse a soprar-lhes no bico, para ver se arrebitavam e se salvava mais umas dezenas de euros daquela tragédia que já lhe ensombrava o espírito, para isso reforçando-se com uma boa dose de copos de vinho, no que resultou uma boa intoxicação nas bichas que, com aquele bafo alcoolizado, se foram desta para a melhor ainda mais depressa, provocando uma enorme frustração no desgraçado do coveiro, que num ápice passou de crente a céptico sobre as conversas dos acompanhantes dos funerais, servindo-lhe a experiência de emenda para futuras práticas de ressuscitação.