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elos vistos, o amor à pátria é redondo, está cheio de ar, serve para dar pontapés, de quando em vez algumas cabeçadas, e quem lhe consegue meter a mão é herói, proeza de facto merecedora de relevo, essa de conseguir deitar a mão a tão diáfano quanto transitório sentimento, e uma tal intrepidez é hoje em dia comemorada com buzinadelas, gritaria generalizada, e acumulação de multidões em locais previamente definidos como apropriados para tais festejos e para onde convergem gentes de todas as cores e feitos, com roupagens adequadas, coloridas q.b., chapéus de bobo, cachecóis adequados à estação do ano, que é o verão, bebidas fermentadas pelos povos do norte, estandartes que testemunharam a glória das mais diversas batalhas, o pior é quando o balão se esvazia, que não fica nada, ou talvez apenas as unhas roídas, depois volta-se à mesma tristeza de sempre, às mesmas caras, à conversa fiada que já se ouviu ou leu vezes e vezes sem conta, ao desemprego, à crise, aos défices do costume, às culpas que vão sempre dar aos mesmos e nunca àqueles a quem deviam ir dar, que esses têm a esperteza de saber esconder-se por detrás de qualquer subterfúgio de amor à pátria, que se calhar é igualmente redondo mas desta vez menos visível, quem sabe se não aparece por aí algum responsável político a pedir que, se a culpa da educação estar assim é dos professores, não será de corrê-los à pedrada das escolas, se há gente a mais a trabalhar para a função pública não poderá levar idêntico tratamento, partem-se umas cabeças e fica o problema resolvido, calam-se os outros todos, os graúdos que mandam, os que deviam responsabilizar quem afirma tais alarvarias, nas televisões desconversa-se, os jornais enchem páginas atrás de páginas de análises científicas acerca das estratégias do jogo da bola, parece até que não se passa mais nada, depois disto vai-se a banhos e entretanto passa-se mais um ano no diz que diz-se, no faz-se de conta, certamente que haverá por aí quem esfregue as mãos de contentamento com tão desvelado amor à pátria.