e sei que este meu corpo é também teu.
P
ara os que crêem que a ciência existe única e soberana sobre tudo o resto, aqui ficam alguns bons exemplos do que era a ciência farmacêutica há cerca de 300 anos atrás, dos conceitos que então a norteavam e das possíveis consequências físicas para os pacientes. Será que daqui a três séculos também apreciarão da mesma maneira as nossas actuais incontestáveis práticas científicas?
Electuário De Satirião
Tomem-se 2 onças de Raiz de Satirião cristalizado; de Raiz de Eríngio cristalizada, 1 onça; de Maçã conservada em açúcar, meia onça; de suco de Quermes em pó e de Álcool de Salva, 2 onças de cada; 16 grãos de Pimenta-Longa moída. Misture-se.
É um afrodisíaco e, de certo modo, restabelece pessoas emaciadas e tuberculosas. Tomar doses de 2 ou 3 dracmas, de manhã e à noite, com um copo de Vinho Velho de Málaga ou com Vinho Abafado de Espanha.
Água De Fezes De Cavalo
Tomem-se de Tília, de Agrião e de Língua-Cervina, 3 mãos-cheias de cada; 3 Cascas de Laranja sumarentas; de Noz-de-Moscada, 3 dracmas; de suculentas Fezes de Cavalo, 3 libras; de Soro de Leite Coalhado, 9 pintos; de Sumo de Escabiosa, Dente-de-Leão e de Água de Hissopo, 1 pinto de cada. Retire-se lentamente o líquido da mistura e destile-se a frio, num alambique, durante 3 dias (necessários para apressar a operação).
Pode usar-se em refrescos. Bom para a pleuresia, para o escorbuto e para as dores do vago.
Um Epítema Reconfortante
Tomem-se 6 dracmas de Água da Rainha da Hungria; de Álcool Destilado de Lavanda e de Açafrão, 2 dracmas de cada; de Bálsamo Apoplético, 1 escrópulo; de óleo de Cravinhos, 10 gotas. Misture-se.
É uma óptima receita contra desfalecimentos e palpitações do coração. Mas não se recomenda a mulheres histéricas, dado o seu perfume, que muito poucas podem suportar.
Um Electuário De Mostarda
Tome-se meia onça de Mostarda em pó; de Conserva de Arruda, 2 onças; de Xarope de Lavanda, 1 onça e meia; de Óleo de Alecrim e de Lavanda, 4 gotas de cada. Misture-se.
Penetra nos nervos, abre todas as obstruções, e dá um novo ânimo aos espíritos embotados.
Uma Cataplasma De Arenques
Tomem-se 2 onças de Raiz de Briónia, recentemente apanhada (ou se estiver seca reduza-se a pó); de Sabão Negro, 3 onças; de Arenques de conserva (ou de Anchovas), 4 onças; de Sal, 1 onça e meia. Misture-se.
Destina-se a ser posto nas solas dos pés e atado com ligaduras. Mude-se de 12 em 12 horas. É usado com sucesso para as matérias febris que assaltam a cabeça e oprimem o espírito. Pode causar torpor ou adormecimento.
Água Peitoral De Caracóis
Tomem-se três libras de caracóis esmagados com as cascas; de Migalhas de Pão, recentemente cozido, 12 onças; de Noz-de-Moscada, 6 dracmas; de Hera moída, 6 mãos-cheias; de Soro de Leite Coalhado, 3 quartos de galão. Destile-se a frio para não queimar.
Esta água humidifica, dilui, alivia, alimenta e conforta. Logo é muito recomendada para a palidez provocada pela tísica.
Um Refresco Tonificante Temperado Com Pérolas
Tomem-se de Águas de Borragem e de Azedas dos Bosques, 4 onças de cada; de Rosas de Damasco e de Água de Canela de Cevada, 2 onças de cada; de Pérolas Preparadas, 1 dracma; de Açúcar Branco em pedra, 3 dracmas; de Óleo de Noz-de-moscada, 1 gota. Misture-se.
Traz um enorme e agradável alívio àqueles que são incomodados pelos ataques e ânsias provocadas pela febre, pois não agita nem rarifica o sangue, nem promove sequer um aumento da sua efervescência. Contudo, socorre o ventrículo, trabalhando e quase suprimindo a opressão de indesejadas feculências, ajudando os humores adultos que flúem do sangue, esforçando-se para provocar despumação e expelindo a fermentação preternatural: todas estas coisas consegue operar, ao envolver o estômago com uma agradável sensação e sabor, de onde, ao reanimar os espíritos (quer os interiores quer os extravasantes) através de toda a máquina física, redobra num instante o seu vigor, dando-lhe assim todo o apoio necessário.
Uma Pequena Compressa Contra A Histeria
Tome-se meio dracma de Assa-Fétida; de Rícino e de Cânfora, 1 escrópulo de cada. Misture-se e ate-se num simples pano ou pedaço de seda.
Se o segurarmos várias vezes contra o nariz, ajuda a eliminar os vapores e ataques, pois acalma os humores enraivecidos, reprimindo-os nas suas loucas excursões e exorbitâncias. Põe-nos assim na ordem, impedindo que os mesmos se transformem em tumultos ou em explosões convulsivas.
Um Pó Esplâncnico
Tome-se 1 escrópulo de casca de Freixo; de Ruibarbo, 5 grãos; de Nardo Indiano e de Açafrão, 2 grãos de cada; de Pimenta-Longa, 1 grão. Reduza-se tudo a pó ao qual se poderá juntar Limalha de Ferro, pro re nata.
Remove as obstruções das vísceras, corrige os fermentos depravados, reprime as flatulências espasmódicas, e abre e satisfaz o apetite, aliviando a dor e a tensão causada pela hipocondria.
Uma Cataplasma De Teias De Aranha
Tomem-se 2 onças de Terebintina Veneziana; de Sumo-de-Tanchagem, 1 onça e meia; 3 Figos; de Raspa de Casca de Laranja, 2 dracmas; de uma Grande Pílula, chamada Bolus, 1 dracma e meio; de Fuligem, 1 onça; de Esterco de Pombo, 1 onça e meia; 6 grandes teias de Aranha; de Sabão Negro, 4 onças. Vinagre suficiente para ligar os ingredientes.
Para acalmar os tremores de uma sezão, amarre as teias preparadas aos pulsos, de maneira que fiquem bem contra as veias, duas horas antes de um possível ataque.
Receitas extraídas da Pharmacopeia Extemporanea, compilada por Thomas Fuller, em 1710, citação (espero que me perdoem os direitos de autor pela publicidade aqui feita à obra) da obra de Michelle Lovric, O Remédio, Saída de Emergência, Parede, 2005.
domingo, maio 07, 2006
Mais uma história triste
A
ndreia acabou de matar o filho recém-nascido, vai presa entre dois polícias que a arrancaram da única casa que tinha como sua, nem sabe bem o que fez, sabe tanto ou tão pouco quanto os seus treze anos, uma criança ainda mesmo que o corpo diga que não, que afinal já é mulher, que foi violada, que foi mãe, assassina, tudo no curto espaço de tempo que é um único dia, demasiado curto para quem ainda nem sabe bem o que é viver, o que é ser feliz, o que é ter uma família, o que é o mundo, o que são as pessoas, quem é afinal aquele pai que a forçou na cama onde sonhava ainda brinquedos de criança, onde esses segredos que ele lhe pedia para guardar se tornavam cada vez mais pesados, aos poucos e poucos deixara de saber chorar, sorrir, cantar, a voz foi-se-lhe apagando aos poucos e poucos como se um mundo de silêncios de súbito a envolvesse nos seus braços, nem sequer sabe o que isso é, receber um gesto de ternura, aninhar-se no peito de alguém que a proteja dos outros, conhece tão-só um sono irrequieto, uma expectativa de dor, e agora vai deixar de saber tudo o resto, restar-lhe-ão apenas sombras de uma alegria que nunca sentiu.
quarta-feira, maio 03, 2006
Mais uma história disparatada
O
Tampinhas morava no sexto andar, de quando em vez lá se aventurava até ao quinto, mais raramente ao quarto, para baixo disso nem pensar, que era arriscar demais, tinha uma memória algo difusa da infância, mas a sua predilecção eram as tampas, daí a alcunha, sempre que apanhava uma à mão de semear era um vê-se-te-avias, tomava logo sumiço, levava-as à janela e depois era fazer pontaria cá para baixo, se alguém viesse a passar pois paciência, levava com a tampa na tola, como eram de plástico não deixavam mossa, porque não se aventurava com as metálicas, de frascos de compota, para ele não contavam, não eram tampas, eram outra coisa qualquer que não se enquadrava na sua didascália, um indivíduo que se preze tem que ter uma didascália, é o que dá razão à existência, fora disso nada feito, é o caos, a desordem, a desorientação, que era o que lhe acontecia caso se atrevesse a descer mais degraus do que os que conhecia para voltar ao seu poiso habitual, regras são regras, preceitos são preceitos, mesmo os que lhe inculcaram desde pequeno, quando lhe davam um leve açoite no rabo até ter interiorizado o que esperavam de si, quem se habitua habituado está, é mesmo assim que o mundo funciona, e quem o conhecesse já sabia de antemão como é que era, em passando debaixo da janela era tampa na tola com certeza, daí que houvesse quem olhasse para o alto, a ver se a costa estava livre, que é como quem diz não vinha por ali abaixo uma tampinha de plástico, já se viu que não era por causa da mossa que pudesse fazer, mas as pessoas não gostam de ser surpreendidas, assustam-se, e uma pessoa assustada torna-se perigosa, depois vêm as represálias, as queixas, um trinta e um por uma coisinha de nada, aqui d'el-rei que me ia tirando um olho à menina, ou ao menino, ou à sogra, tornava-se caso de polícia, de queixa ao delegado de saúde, um ponto na ordem de trabalhos da reunião de condomínio, sabe-se lá onde é que as coisas podem ir parar por causa de uma mínima tampa de plástico, já houve quem fizesse grandes asneiras por muito menos, por isso já andavam quase todos de boné ou de chapéu ou fosse lá o que fosse, a moda tinha pegado, depois já nem tiravam os bonés, nem sequer dentro dos automóveis, nos restaurantes, os outros julgavam que era por causa da parolice dos filmes americanos, quais fitas nem meias fitas, era por causa das tampas que caíam do sexto andar, um dia lá em casa decidiram fazer uma colecta de tampas para ver no que dava, o que ninguém estranhou, estava na moda juntar tampas porque tinha havido alguém que um dia se lembrara de pôr toda a gente a juntar tampas, e quando as largaram lá em casa foi um festival de tampas pela janela abaixo, até parecia granizo às cores, lá iam tombando uma após outra e nesse dia só quem não sabia de nada é que foi apanhado, os que habitualmente passavam por ali já sabia do que é que a casa gastava e estavam prevenidos, agora os estranhos de passagem é que ficaram de boca à banda, estava a chover tampas, era um disparate completo, tal como esta história, mas o certo é que o danado do gato ficou mesmo com a alcunha.
