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Tampinhas morava no sexto andar, de quando em vez lá se aventurava até ao quinto, mais raramente ao quarto, para baixo disso nem pensar, que era arriscar demais, tinha uma memória algo difusa da infância, mas a sua predilecção eram as tampas, daí a alcunha, sempre que apanhava uma à mão de semear era um vê-se-te-avias, tomava logo sumiço, levava-as à janela e depois era fazer pontaria cá para baixo, se alguém viesse a passar pois paciência, levava com a tampa na tola, como eram de plástico não deixavam mossa, porque não se aventurava com as metálicas, de frascos de compota, para ele não contavam, não eram tampas, eram outra coisa qualquer que não se enquadrava na sua didascália, um indivíduo que se preze tem que ter uma didascália, é o que dá razão à existência, fora disso nada feito, é o caos, a desordem, a desorientação, que era o que lhe acontecia caso se atrevesse a descer mais degraus do que os que conhecia para voltar ao seu poiso habitual, regras são regras, preceitos são preceitos, mesmo os que lhe inculcaram desde pequeno, quando lhe davam um leve açoite no rabo até ter interiorizado o que esperavam de si, quem se habitua habituado está, é mesmo assim que o mundo funciona, e quem o conhecesse já sabia de antemão como é que era, em passando debaixo da janela era tampa na tola com certeza, daí que houvesse quem olhasse para o alto, a ver se a costa estava livre, que é como quem diz não vinha por ali abaixo uma tampinha de plástico, já se viu que não era por causa da mossa que pudesse fazer, mas as pessoas não gostam de ser surpreendidas, assustam-se, e uma pessoa assustada torna-se perigosa, depois vêm as represálias, as queixas, um trinta e um por uma coisinha de nada, aqui d'el-rei que me ia tirando um olho à menina, ou ao menino, ou à sogra, tornava-se caso de polícia, de queixa ao delegado de saúde, um ponto na ordem de trabalhos da reunião de condomínio, sabe-se lá onde é que as coisas podem ir parar por causa de uma mínima tampa de plástico, já houve quem fizesse grandes asneiras por muito menos, por isso já andavam quase todos de boné ou de chapéu ou fosse lá o que fosse, a moda tinha pegado, depois já nem tiravam os bonés, nem sequer dentro dos automóveis, nos restaurantes, os outros julgavam que era por causa da parolice dos filmes americanos, quais fitas nem meias fitas, era por causa das tampas que caíam do sexto andar, um dia lá em casa decidiram fazer uma colecta de tampas para ver no que dava, o que ninguém estranhou, estava na moda juntar tampas porque tinha havido alguém que um dia se lembrara de pôr toda a gente a juntar tampas, e quando as largaram lá em casa foi um festival de tampas pela janela abaixo, até parecia granizo às cores, lá iam tombando uma após outra e nesse dia só quem não sabia de nada é que foi apanhado, os que habitualmente passavam por ali já sabia do que é que a casa gastava e estavam prevenidos, agora os estranhos de passagem é que ficaram de boca à banda, estava a chover tampas, era um disparate completo, tal como esta história, mas o certo é que o danado do gato ficou mesmo com a alcunha.