ltimamente tenho andado desanimado, desmotivado, farto, abatido, cansado, triste, irritado, desgostoso, quebrantado, deprimido, sorumbático, amargo, taciturno, e outros adjectivos mais que agora não me vêm à memória, tudo estados de espírito que pouco ou nada abonam a favor de quem, por motivos profissionais, deveria sentir exactamente o oposto, é no que dá ter-me metido nestas coisas do ensino, devia ter tido mais juízo e optado por coisa mais lucrativa e onde se possa aldrabar à vontade, que é o que toda a gente faz, muito embora depois venham passar por santinhos e digam o contrário, que não senhor, que o que querem é o bem do país, e depois vão metendo dinheiro ao bolso às mãos cheias e nem se ralam com quem dele precisa, está bem de ver que é uma atitude perfeitamente solidária, digna destas democracias globais que agora se diz que temos e que queremos impingir a toda a gente, depois é ver as casas que têm, os carros à porta ou na garagem, as fortunas gastas em viagens aqui e acolá, ao que dizem a acompanhar a bola, que isto tudo agora gira à volta de uma bexiga cheia de ar à qual se dá pontapés a torto e a direito, mais aqueles do que estes últimos, uma pessoa até podia pensar que cá andava porque a Terra girava à volta do Sol, mas qual quê nem meio quê, se por cá nos vamos arrastando é porque há por aí quem ponha a tal bexiga às voltas à força de pontapés, e depois há essa gente toda que quer que se ensine, que valorize quem se mostra disposto a aprender, o esforço, a vontade, a aquisição de conhecimentos, o raciocínio, a capacidade de trabalho, de aprendizagem, de adaptação a novas situações, para quê, se o que se pretende é mostrar alguns resultados, custe o que custar, lá aos estrangeiros que andam não se sabe bem por onde nem a fazer o quê, dar uma boa imagem estatística, quer-se lá saber de comportamentos cívicos de quem os não tem nem provavelmente terá nunca, que a mensagem que mais se transmite é a do egoísmo mais radical, do enriquecimento fácil, do prémio a troco de nada, para compensar o alheamento, se calhar assim é que deve ser e estive enganado até agora, pelos vistos andar assim pela vida compensa, e até dá para pôr uma bandeira à janela e achar que a pátria é assim, pintada de encarnado e verde, com uma esfera armilar ao meio que é para consolar este nada que somos de qualquer império que nunca fomos nem soubemos ser.
Para a Carolina
Q
uando a mãe a acordou nessa manhã, nem passou pela cabeça da Carolina o que lhe viria a acontecer nesse dia. O que é perfeitamente natural: quando acordamos, nunca nos passa pela cabeça o que nos pode vir a acontecer nesse dia. Pensamos que vai ser um dia normal, toma-se banho, o pequeno-almoço vem a seguir, depois a escola, as aulas, as pessoas que vemos todos os dias, todas mais ou menos na mesma, tirando a roupa que vestem, que pode ser mais assim ou mais assado, com esta cor ou aquela, mais saias menos calças, uma camisola de uma cor qualquer, os livros e os cadernos, sempre iguais, a professora com este ou aquele penteado, as conversas sobre o que aconteceu no dia anterior, o que vimos na televisão, os trabalhos de casa que estão feitos ou nem por isso, o que é que vai ser o almoço, a comida do costume, isto ou aquilo, o Pedro olhou para ti, não olhou, não, se calhar foi o Miguel, eu gostava de saber o que é que eles dizem um ao outro, qualquer dia transformo-me em mosca e fico ali a ouvir as conversas todas, descubro os segredos deles, e depois conto-te, aí é que a gente se ia rir e a bom rir, olha a mosca atrás deles para a casa de banho, que nojo, respondia logo a outra, eu é que não ia, nem que me pagassem, mas lá que gostavas de ouvir o que eles dizem isso é que não dizias que não, pois, isso talvez não, se calhar eles dizem o mesmo que nós, não me parece, tu sabes lá, eles só pensam é em brincar, querem lá saber de raparigas, isso pensas tu, mas se calhar estás enganada, enfim, a lengalenga de todos os dias.
Mas aquele ia ser um dia diferente, iam buscar um coelho a uma loja de animais, um coelho anão, daqueles todos branquinhos, com olhos encarnados, porque um coelho ainda vá que não vá, agora um cão, com a história de o levar à rua pelo menos duas vezes por dia nem pensar, e um gato muito menos, lá se iam os cortinados que custaram os olhos da cara, mais os sofás, e então o cheiro que fica dentro de casa, que chichi de gato é das coisas que mais empestam o ambiente, nunca, havia de ser um coelho ou nada, pois lá foi um coelho, aliás uma coelha, que lhes impingiram como anã e que depois foi crescendo, crescendo, mais e mais, até se transformar numa enorme coelha, comilona e irrequieta, a pequena gaiola dentro em breve teve que dar lugar a uma senhora gaiola, que quase enchia o banco de trás quando iam de férias, mal deixando lugar para a Carolina, fora o resto das tralhas da bicha, a comida, os brinquedos, mais uma coisa ou outra, uma trabalheira, a Carolina é que não se ralava, está visto que não, se não era ela que limpava a gaiola, que comprava a comida, que lhe mudava a água, por que razão havia de importar-se?
O avô quando lá ia a casa só dizia que já estava na altura de a enfiarem na panela, a Carolina ficava chocada, mas era na brincadeira, claro, quem é que teria coragem para matar a coelha dos olhares ternurentos, nem ele nem ninguém da família, ora essa, já ia ficando de lado o nome com que a baptizaram: Sissy. De onde é que veio a lembrança para tal nome é que desconheço, mas pegou e a tipa lá se foi habituando a pouco e pouco, já ia respondendo aos sons, o pior é que antes de obedecer fosse a quem fosse ia comendo os bocadinhos de fio do tapete da sala, que era daqueles farfalhudos, como estão na moda, que até dão para esconder os minúsculos dejectos que ia semeando por aqui e por ali, depois era a caça às caganitas, uma das distracções diárias lá de casa, menos da Carolina, como é evidente, que tinha mais que fazer do que andar a apanhar aquela porcaria, era vê-los de rabo para o ar a ver se descobriam as pistas, uma festa, a mãe a chamar porca à Sissy e ela nas tintas para os insultos, coelha que se preze, ainda por cima com um nome pomposo, não presta atenção a baixezas, está visto que não, tem outros interesses na vida, por exemplo roer maçarocas ou mastigar bocadinhos de feno e andar aos pulos daqui para ali, o pior era quando roía os prospectos das férias, as revistas de cima da mesa da sala, as cartas que chegavam pelo correio, todo e qualquer papel constituía uma boa distracção para roer, e nem escapavam os fios eléctricos e os do telefone, que tiveram que ser protegidos para evitar alguma electrocussão inesperada, afinal ali em casa não havia pena de morte na cadeira eléctrica como nos Estados Unidos, ainda não tinham chegado a tanto, era tudo gente mais ou menos pacífica, da última vez que lá fui a casa lá continuava ela rainha e senhora do lar e até ver continuava a safar-se de ir para o forno.
terça-feira, junho 06, 2006
A terra dos bufos
P
elo que se vê, pelo que se ouve e pelo que se diz por aí, o que se pretende é fazer que cada português bufe por todos os lados, para a esquerda e para a direita, torná-lo um denunciador daqueles que havia no antigamente, em tempos que já lá vão, o que é bem exemplificativo de que os maus hábitos não morrem, apenas assumem novos disfarces, e de que quem manda afinal adora os tiques dos que mandaram antes deles, valendo tudo e mais alguma coisa para instaurar um estado de baixeza moral generalizada e de muito pouca democracia, dê por onde der, já apareceu até uma dessas mulheres que pelos vistos assumiram um tique qualquer da velha senhora de outras eras a afirmar que o que é bom nesta jigajoga de substituições de professores é que os que não faltam denunciem os absentistas, parecendo esta afinal a panaceia para a tendência de alguns profissionais não cumprirem com as suas obrigações, surgindo agora um novo conceito de denúncia por parte de proprietários de cafés, restaurantes e similares em relação aos fumadores, apontando o dedo aos criminosos, quando sempre me ensinaram desde criança que é feio apontar, criando dissensões entre frequentadores dos mesmos espaços, estimulando a quezília, e protegendo claramente a bufaria, qualquer dia temos aí a confraria dos bufos, se calhar com aspirações a sindicato, a ordem, a ministério, sabe-se lá a quê, o melhor é irem preparando um arquivozito para essa gente no género dos que havia na António Maria Cardoso e que agora, ao que parece, está a ganhar mofo na Torre do Tombo, porventura poder-se-á atribuir um prémio especial de comportamento cívico exemplar, se calhar com o nome de algum ex-inspector da PIDE, ou criar uma medalhística especial para outorga no dia de Camões, que serve para tudo, o coitado, muito embora nem lhe leiam os escritos ou, se o fazem, nem os apreciem por aí além, quem sabe se a essa gente não reservam igualmente uma pensãozita especial, um complemento de reforma, uma qualquer emprego num organismo a criar para o efeito, daqueles de ordenado chorudo que extinguem quando vagarem, tudo vale a pena num país de bufos, que eu cá, parafraseando um general dos tempos do PREC, o que poderei vir a dizer é: já fui bufado... duas vezes... não gosto de ser bufado... é uma coisa que me chateia, pá.
domingo, junho 04, 2006
A borbulha
É
certo e sabido que quem tem borbulhas não deve, de maneira nenhuma, coçá-las, muito menos aplicar as unhas em tal aparentemente aliviadora tarefa, porque tal leva a que, mais tarde ou mais cedo, estas acabem por assanhar-se e deixar chagas por todo o lado, e deve ser por ter passado por isso que possuo uma vaga memória dos meus tempos de criança, quando me calçaram umas luvas para evitar essa tendência mais ou menos primária de coçar o que não deve ser coçado, que foi o que aconteceu à menina Lurdinhas quando lhe começaram a surgir uns pruridos que tomou por doença crónica e desatou num esfreganço insano ao ponto de irritar muito mais as feridas que deviam ser tratadas com desvelo e cuidados redobrados, já que, ao que se diz, ou pelo menos dizia noutros tempos, cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém, mas há quem seja cego, surdo e mudo face a tais avisanças e, lá vai disto, raspa daqui, raspa dali, ficou com a cara transformada em bife cru, depois foi um Deus nos acuda, aqui d’el rei que me deram cabo desta frontaria que eu entrevia tão bem aperaltada, mas é preciso que se diga que ninguém a mandou desatar a meter as garras de fora e enfiá-las à bruta nas borbulhas, que tinha sido mais assisado tratá-las com tento e medida, a pouco e pouco, quis livrar-se delas duma só vez e foi o que se viu, já lá vai o tempo dos alfaiates, sobretudo dos matavam sete duma vez, que uma tal presunção seria vista hoje em dia como uma manifesta tendência para o extermínio indiscriminado, há quem não tenha tino nenhum nem sequer o bom senso para resolver o problema de uma simples borbulha, de uma nascem cem, da centena surge um milhar, é assim mesmo que se originam as epidemias, depois fica-se com cara de parvo, dispara-se em todas as direcções, sobretudo contra quem não se deve, perde-se o discernimento, o norte, o sul, o oes-noroeste e o resto dos pontos cardeais, fica-se para ali a andar à roda que nem um pião sem saber para que lado se virar, mas cá para mim quem se lança numa tal coceira é porque não tem gente decente que a aconselhe devidamente, e no fim nem se sabe quem fica a ganhar, que as borbulhas vêm e vão, a tal menina é que pelos vistos nunca pensou ver-se metida numa camisa de onze varas, e às vezes só apetece mesmo é dizer bem feito.
