Para a Carolina
Q
uando a mãe a acordou nessa manhã, nem passou pela cabeça da Carolina o que lhe viria a acontecer nesse dia. O que é perfeitamente natural: quando acordamos, nunca nos passa pela cabeça o que nos pode vir a acontecer nesse dia. Pensamos que vai ser um dia normal, toma-se banho, o pequeno-almoço vem a seguir, depois a escola, as aulas, as pessoas que vemos todos os dias, todas mais ou menos na mesma, tirando a roupa que vestem, que pode ser mais assim ou mais assado, com esta cor ou aquela, mais saias menos calças, uma camisola de uma cor qualquer, os livros e os cadernos, sempre iguais, a professora com este ou aquele penteado, as conversas sobre o que aconteceu no dia anterior, o que vimos na televisão, os trabalhos de casa que estão feitos ou nem por isso, o que é que vai ser o almoço, a comida do costume, isto ou aquilo, o Pedro olhou para ti, não olhou, não, se calhar foi o Miguel, eu gostava de saber o que é que eles dizem um ao outro, qualquer dia transformo-me em mosca e fico ali a ouvir as conversas todas, descubro os segredos deles, e depois conto-te, aí é que a gente se ia rir e a bom rir, olha a mosca atrás deles para a casa de banho, que nojo, respondia logo a outra, eu é que não ia, nem que me pagassem, mas lá que gostavas de ouvir o que eles dizem isso é que não dizias que não, pois, isso talvez não, se calhar eles dizem o mesmo que nós, não me parece, tu sabes lá, eles só pensam é em brincar, querem lá saber de raparigas, isso pensas tu, mas se calhar estás enganada, enfim, a lengalenga de todos os dias.
Mas aquele ia ser um dia diferente, iam buscar um coelho a uma loja de animais, um coelho anão, daqueles todos branquinhos, com olhos encarnados, porque um coelho ainda vá que não vá, agora um cão, com a história de o levar à rua pelo menos duas vezes por dia nem pensar, e um gato muito menos, lá se iam os cortinados que custaram os olhos da cara, mais os sofás, e então o cheiro que fica dentro de casa, que chichi de gato é das coisas que mais empestam o ambiente, nunca, havia de ser um coelho ou nada, pois lá foi um coelho, aliás uma coelha, que lhes impingiram como anã e que depois foi crescendo, crescendo, mais e mais, até se transformar numa enorme coelha, comilona e irrequieta, a pequena gaiola dentro em breve teve que dar lugar a uma senhora gaiola, que quase enchia o banco de trás quando iam de férias, mal deixando lugar para a Carolina, fora o resto das tralhas da bicha, a comida, os brinquedos, mais uma coisa ou outra, uma trabalheira, a Carolina é que não se ralava, está visto que não, se não era ela que limpava a gaiola, que comprava a comida, que lhe mudava a água, por que razão havia de importar-se?
O avô quando lá ia a casa só dizia que já estava na altura de a enfiarem na panela, a Carolina ficava chocada, mas era na brincadeira, claro, quem é que teria coragem para matar a coelha dos olhares ternurentos, nem ele nem ninguém da família, ora essa, já ia ficando de lado o nome com que a baptizaram: Sissy. De onde é que veio a lembrança para tal nome é que desconheço, mas pegou e a tipa lá se foi habituando a pouco e pouco, já ia respondendo aos sons, o pior é que antes de obedecer fosse a quem fosse ia comendo os bocadinhos de fio do tapete da sala, que era daqueles farfalhudos, como estão na moda, que até dão para esconder os minúsculos dejectos que ia semeando por aqui e por ali, depois era a caça às caganitas, uma das distracções diárias lá de casa, menos da Carolina, como é evidente, que tinha mais que fazer do que andar a apanhar aquela porcaria, era vê-los de rabo para o ar a ver se descobriam as pistas, uma festa, a mãe a chamar porca à Sissy e ela nas tintas para os insultos, coelha que se preze, ainda por cima com um nome pomposo, não presta atenção a baixezas, está visto que não, tem outros interesses na vida, por exemplo roer maçarocas ou mastigar bocadinhos de feno e andar aos pulos daqui para ali, o pior era quando roía os prospectos das férias, as revistas de cima da mesa da sala, as cartas que chegavam pelo correio, todo e qualquer papel constituía uma boa distracção para roer, e nem escapavam os fios eléctricos e os do telefone, que tiveram que ser protegidos para evitar alguma electrocussão inesperada, afinal ali em casa não havia pena de morte na cadeira eléctrica como nos Estados Unidos, ainda não tinham chegado a tanto, era tudo gente mais ou menos pacífica, da última vez que lá fui a casa lá continuava ela rainha e senhora do lar e até ver continuava a safar-se de ir para o forno.