entia com quantos dentes tinha na boca, e até levava de empréstimo mais alguns, postiços se preciso fosse, que isto de petas às vezes torna-se um vício, pior ainda que o de roer as unhas, nem o tabaco e a bebida juntos levam a tanto, se calhar até levam, que por culpa de um ou de outro se acaba por dizer que sim quando na verdade se devia era dizer que não, ou vice-versa, que vai dar ao mesmo, afinal de contas uma pessoa habitua-se, faz disso modo de vida, profissão, porventura até é capaz de transformar a mentira numa fé, e por isso sobe na vida, começa a mandar nos outros, aqueles a quem tanta cegueira junta não permite já distinguir isto daquilo, preto do branco, encarnado de cor de rosa, o punho estendido no ar de uma flor, que até pode nem ser flor que se cheire, isso que importa, qual quê, quem acha que sabe, sabe e pronto, mesmo que não saiba nada, desde que se convenceu de que sabia pôs-se a dar ordens a torto e a direito, tu fazes isto, tu fazes aqueleoutro, vou pôr isto tudo na ordem, der por onde der, e os outros lá vão engolindo as petas umas atrás das outras sem sequer darem conta que afinal está tudo na mesma, se não pior ainda, depois há os basbaques que batem palmas, mas esses também já estão habituados a bater palmas por tudo e por nada, que alguém lhes diz para saltarem e é vê-los aos pulos que nem os cangurus, já antigamente era assim, tornou-se um hábito, porque é que agora havia de ser diferente, o que mudou foi o tipo de conversa, a mentira que de anos a anos se vê transformada num papelinho cheio de cruzes. Livra! Cruzes canhoto.
Q
uando abriu a gaveta, esperava encontrar o que habitualmente se encontra dentro das gavetas, uma espécie de bricabraque de utilidades e coisas esquecidas, que aos poucos e poucos se vão amontoando e pondo de parte com o passar dos tempos, e aqueles pequenos objectos úteis a que se recorre de vez em quando, tesouras, agrafadores e respectivas caixas de agrafos, furadores, apara-lápis, fita-cola, fitas métricas, punaises, que ainda não conseguiram arranjar termo em português que lhes dê destino, tubos de cola, borrachas, carimbos fora de uso e almofadas de carimbo já ressequidas, canivetes, calculadoras de bolso já sem préstimo, clipes pequenos, médios, grandes, de metal e de plástico, esferográficas que há muito perderam a tinta, marcadores de diversas espessuras, isqueiros e porta-chaves há anos postos de lado, duas ou três moedas cobertas de verdete, a tralha do costume, agora o que era inesperado, mesmo invulgar, era encontrá-la vazia, sem nada lá dentro, nem um pedaço minúsculo de papel, nada, e de repente ouvir vozes que lhe sussurravam lá do fundo, afinal ali não havia apenas silêncios, quem sabe o que lhe diziam, não foi capaz de perceber, talvez se tratasse de memórias do que lá tinha existido, escritos já fartos de guardar segredos, palavras sem nexo, poemas de amores desditosos, imagens sem rosto nem cor, lembranças perdidas, sons já emudecidos pelo tempo, quem sabe o que se deixa pelas gavetas, mesmo quando nada lá fica, aqui e além sempre resta qualquer coisa, nem que sejam sombras de palavras.
quarta-feira, abril 19, 2006
Feitios
F
eitios há que são assim ou que são assado, uns que tendem mais para a esquerda ou mais para a direita, outros ainda que são assim-assim, nem-tanto-ao-mar-nem-tanto-à-terra, há-os de todas as maneiras, caindo no pleonasmo, há para todos os gostos e feitios, e pouco se pode fazer a não ser reconhecer isso mesmo, depois ainda surgem os de maus fígados, aqueles que já não têm remédio, se calhar já remediados estão, que remédio, os desconfiados, que por tudo e por nada olham de través, como quem não quer a coisa, o seguro morreu de velho, lá vão pensando com os seus botões, e mais vale prevenir, não vá a coisa dar para o torto, o trejeito no olhar lá vai ficando e deve ser por isso que depois os oftalmologistas lucram que se farta, mais as lojas de óculos e os fabricantes de lentes, para já nem falar dos que inventam a moda e que, mal vêem uma oportunidade de se aproveitarem da miséria alheia, aparecem logo com modelos xpto, termo que também já deu o que tinha a dar mas que ainda dá algum jeito de vez em quando, pois esses têm feitio de aproveitadores, que são assim umas pessoas que vivem escondidas nas esquinas à espreita de sabe-se lá o quê que quando surge lhes faz aparecer uma luzinha por cima da cabeça e depois lhes dá pano para mangas, deve ser o tal de empreendedorismo de que tanto se fala para aí, um tique dos tempos actuais, é o que é, apesar de haver quem tenha a mania de corrigir os tiques de toda a gente e mais alguma e de achar que isso de tiques é defeito, não é feitio, há ainda os provocadores, como alguns que eu conheço, tenho até um vizinho que tem essa mania, por-dá-cá-aquela-palha põe-se a escrever a torto e a direito a ver se pega, e quando dá resultado é vê-los a engalfinharem-se uns com os outros, estes do contra, aqueles a favor, e vão por ali fora, zaca-zaca, que é como quem diz pimba-pimba, ora os padres ora outra coisa qualquer que dê azo a conversas daqui, conversas dali, bate de um lado, dá-lhe do outro, como se de algum estafermo se tratasse, daqueles do antigamente, que ficavam ali dependurados o dia inteiro a levar pancada que fervia, eu cá é que não tinha temperamento para isso, nem pensar, fugia a sete pés e ia mas era sentar-me numa esplanada calminha à beira-mar a beber qualquer coisa fresca e ficava a olhar para onde me apetecesse, mas isso sou eu e o meu feitio.
domingo, abril 16, 2006
A pública função da função pública
N
ão conheço função pública nenhuma que seja tão função como a dos representantes parlamentares, que em vez de aprovarem diplomas que podem ser importantes para o país resolvem adiar tudo para as calendas, para quando der mais jeito, faltam a essa aprovação, ainda por cima tendo tentado provar que estavam presentes quando já se tinham posto a milhas, e pelos vistos para justificarem tão irresponsáveis atitudes bastar-lhes-á, tão-só, darem a sua palavra de que não faltaram quando faltaram (porque tinham escrito o seu nome assegurando que, de facto, não estavam a faltar), em nome de qualquer coisa tão diáfana como a respeitabilidade da palavra, assim se governa o país, ou nos governam a nós, que o mesmo é dizer que se governam uns aos outros ou se governam a si mesmos, vai tudo dar ao mesmo, assim como assim não passamos da cepa torta, o que, pensando bem, já nem é mau de todo, pior seria se não houvesse cepa de todo, nem torta nem direita, embora desconfie que a cepa já nem nos pertence, já foi vendida ao estrangeiro, ou então alguém já se apropriou dela, mesmo tortinha de todo, que ele há gente que não é esquisita nem se põe com exigências despiciendas, não olham os dentes a cavalo dado, é dado e pronto, logo se vê se daí vem algum lucro, que é no que toda a gente pensa, nem sei para que é que afinal se vota quando vai tudo dar ao mesmo, alguma razão teria o Saramago para pôr toda a gente a votar em branco, que se isso acontecesse lá teriam que vir as associações todas anti-racismo em peso, mas que é isso de votar em branco?, porque é que não se vota preto?, que discriminação é essa?, e outras atoardas parecidas, que há sempre uns à espreita que se dê um passo em falso para virem logo ameaçar com as bengalas e com os riscos de entorses e coisas no género, já não temos é gente responsável, ou pelo menos estamos reduzidos ao mínimo dos mínimos, o estatuto é bom mas o serviço é mal pago, por isso vamos todos às amêndoas e quem vier atrás que feche a porta.
segunda-feira, abril 10, 2006
Aqui há gato, ai não que não há
Aqui há gato, no plural gatos, que nunca ouvi dizer aqui há gatos, só se for por causa do cheiro, mas isso a mim não me diz respeito, que por enquanto isto ainda não deita cheiros, lá virá o dia, quem sabe, ainda há pouco li que já andam a inventar computadores que tresandem, já não basta quando este negócio queima os neurónios e fica um fedor a borracha queimada, se não é borracha é outra coisa parecida, tal e qual uma viagem no metro no pino do verão, depois há aqueles e aquelas que cheiram mal da boca, e para dizer a verdade nunca vi um gato que cheirasse mal da boca, apesar de comerem peixe e outras iguarias no género, verdade se diga que não andam por aí a dar conversa a torto e a direito por dá cá aquela palha, gato que é gato diz o essencial e mais nada, não se põe cá com retóricas de meia-tigela, se calhar até fariam bem melhor do que os que por aí andam a dizer que-sim-mas-que-talvez e depois fica tudo como dantes, se não for pior, e depois vão ao estrangeiro e metem-se em cuecas a correr que nem uns tontinhos e acham que aquilo assim é que está bem, que é figura de gente que se faça, uma data de gente numa correria doida pelas avenidas fora, já cá faltava também o cheiro a suor, ora gato que se preze corre quando é preciso e mais nada, não se mete por aí em roupa interior à frente de qualquer bicho careta, que é para não pôr isto no feminino, caso contrário é que era o bom e o bonito, depois vinham por aí fora a dizer que é preconceito ou qualquer baboseira no género, eu é que nunca vi um gato a dar um espectáculo daqueles, venham atrás de mim que eu é que sou o líder, ficaram a faltar os auscultadores nos ouvidos, que eu cá não vi nenhuns, deve ser tudo gente muito saudável, pois com certeza, correm, correm, não fumam nem metem sal na comida, pãezinhos sem sal é mas é o que são.
sábado, abril 08, 2006
13 passos para desenhar um gato (e um para o pintar)
Quererá isto dizer que é mais fácil pintar do que desenhar? Hum...





quinta-feira, abril 06, 2006
Hoje é o dia da minha morte
F
oi o título que deu à crónica do jornal para onde escrevia, o que não deixou de surpreender o director, a redacção, uns tantos que conhecia por lá, a palavra espalhou-se, telefonaram-lhe para casa, para o telemóvel, encheram-lhe a caixa de correio electrónico de mensagens, de conselhos, de conversa fiada, alguns atreviam-se a emprestar-lhe dinheiro caso o problema fosse uma questão de finanças, uma ou outra voluntariava-se para o acompanhar noite fora, não fosse o desespero dever-se à solidão, mas poucos saberiam que era apenas uma questão de estar farto, de não querer viver mais, de achar que já chegava, que a vida já lhe tinha dado o que tinha a dar, que dela não esperava mais nada, que - e seria principalmente isto - as palavras já não lhe causavam surpresa, não entrevia nada de novo no que pudesse vir a escrever, e ainda menos no que teria para ler, nada lhe interessava, nem gente, nem conversa, nada de nada, lembrou-se de um jornalista que anunciava, numa fita vista há anos, que se ia matar em frente das câmaras, o seu pudor não se atreveria a tanto, afinal era apenas um tipo que escreve crónicas num jornal e não uma estrela dos noticiários televisivos, era muito menos sofisticado do que isso, vogava mais nas sombras, por detrás de umas manchas a negro num fundo esbranquiçado, um ruído tão ténue que mal se dava por ele, mas as sombras são assim mesmo, se de repente desaparecessem é que seria o bom e o bonito, uma pessoa habitua-se a que elas estejam ali, lado a lado com os gestos, depois esquecemo-nos delas e nem nos perguntamos como seríamos caso levassem sumiço, é no que dá tomar uma coisa ou alguém por garantido, o que não deixa de ser uma atitude um tanto ou quanto irresponsável, mas como é que alguém se pode responsabilizar por uma coisa dessas, só se fosse louco, que era o que diriam a respeito dele, mas o tipo vai matar-se porquê?, a que cargas d'água?, não há problema que não tenha solução, afirmariam os dotados de espírito mais prático, foi um desgosto de amores, sustentariam os mais propensos para o drama, se calhar tem alguma doença incurável, proporiam os neurasténicos, qual doença, qual quê, viriam a terreiro os optimistas, aquilo é mania, mas o certo e sabido é que nunca mais ninguém lhe pôs a vista em cima, e até hoje ninguém faz a mínima ideia do que lhe aconteceu, nem com polícias de investigação à mistura nem nada.
