Q
uando abriu a gaveta, esperava encontrar o que habitualmente se encontra dentro das gavetas, uma espécie de bricabraque de utilidades e coisas esquecidas, que aos poucos e poucos se vão amontoando e pondo de parte com o passar dos tempos, e aqueles pequenos objectos úteis a que se recorre de vez em quando, tesouras, agrafadores e respectivas caixas de agrafos, furadores, apara-lápis, fita-cola, fitas métricas, punaises, que ainda não conseguiram arranjar termo em português que lhes dê destino, tubos de cola, borrachas, carimbos fora de uso e almofadas de carimbo já ressequidas, canivetes, calculadoras de bolso já sem préstimo, clipes pequenos, médios, grandes, de metal e de plástico, esferográficas que há muito perderam a tinta, marcadores de diversas espessuras, isqueiros e porta-chaves há anos postos de lado, duas ou três moedas cobertas de verdete, a tralha do costume, agora o que era inesperado, mesmo invulgar, era encontrá-la vazia, sem nada lá dentro, nem um pedaço minúsculo de papel, nada, e de repente ouvir vozes que lhe sussurravam lá do fundo, afinal ali não havia apenas silêncios, quem sabe o que lhe diziam, não foi capaz de perceber, talvez se tratasse de memórias do que lá tinha existido, escritos já fartos de guardar segredos, palavras sem nexo, poemas de amores desditosos, imagens sem rosto nem cor, lembranças perdidas, sons já emudecidos pelo tempo, quem sabe o que se deixa pelas gavetas, mesmo quando nada lá fica, aqui e além sempre resta qualquer coisa, nem que sejam sombras de palavras.