Não sei dormir sem ti.
em que não te posso olhar.
que era o mesmo que isto.
Apago a luz e choro.
O inesperado aconteceu, que nunca lhe passara pela cabeça ser possível, muito menos digno sequer de alguma vez o imaginar, impensável, calculou, de todo em todo incrível, que é o que se diz das coisas em que não se consegue crer nem com todas as fés neste mundo e no outro, quando menos estava à espera, no quarto de dormir rodeado de estantes e de livros, começou por ouvir um zumbido no silêncio da noite, tão leve que pensou ser qualquer problema nos ouvidos, uma otite que o atacava inesperadamente, um motor qualquer lá fora na escuridão da rua, qualquer objecto mecânico que desatara de súbito a dar acordo de si às tantas da madrugada, uma dessas geringonças electrónicas que qualquer miúdo da vizinhança com problemas de insónia decidisse pôr a funcionar sem sequer pensar nos que ali por perto pretendiam dormir em tranquilidade, mas depressa percebeu que aquele ténue sibilo logo se transformou em murmúrio, como se mil e uma vozes decidissem, de um momento para o outro, entrar em mútuas confidências, e ele ali no meio, a ter que assumir o papel de confessor de sabe-se lá que mistérios inconfessáveis, mas pouco depois descobriu que aqueles sussurros provinham dos livros, das dezenas de obras que se empilhavam pelas prateleiras em aparente desalinho, nas mais diversas línguas e nos mais diferentes tons, uns mais alvoroçados que outros, aqui e além uma súplica, ali ao lado uma veemente reprimenda, mais abaixo um exaltado diálogo, em cima um apaixonado intercâmbio de inquebrantáveis promessas, por detrás algum desencontrado monólogo lírico, mais à frente um qualquer dogma defendido com desenvoltura, num discurso firme e recheado de convicção, e foi quando percebeu, finalmente, que os livros falavam, que lhe dirigiam as palavras encerradas nas suas capas dobradas, nas suas páginas e páginas de papel e tinta, como se quisessem, todos e cada um, assumir o protagonismo e ter o monopólio da sua atenção, num bulício crescente, nas mais diversas línguas, aqui e além conseguia até discernir uma toada melancólica de quem apenas enumera palavras e nomes por ordem alfabética, deviam ser os dicionários, pensou, os de línguas, os de autores, os corográficos, os de história, os disto e daquilo que se arrumavam mais ou menos num ajuntamento de que pretendiam sobressair, as gramáticas azamboavam-lhe os ouvidos com regras atrás de regras num desregramento dissonante, uma vez por outra chegavam-lhe gritos desesperados, apelos impetuosos, vozes atrás de vozes, masculinas, femininas, infantis, outras de difícil qualificação, criando-lhe no cérebro um vórtice de desvario que já quase nem o deixava pensar, incapaz de fazer um movimento, de se levantar da cama e de sair dali, de abandonar aqueles apelos egoístas, que dele exigiam uma individualizada atenção, um pequeno gesto que os tirasse da imobilidade a que, em muitos casos, há anos estavam entregues, mas a custo lá conseguiu içar-se, abrir a porta e fugir, fugir mesmo, seminu, para o meio da rua, onde o encontraram no dia seguinte, encostado a uma árvore, enregelado e enlouquecido, a murmurar um discurso interminável e sem nexo nas mais diversas línguas e tons.
sábado, novembro 12, 2005
Há profissões abençoadas
O que mais temos para aí são Leis, Decretos-lei, Portarias, Despachos, Despachos Conjuntos, Ofícios, Circulares, Ofícios-Circulares, Comunicações, Ordens de Serviço, para já nem falar de Projectos de Lei, e outras algaraviads projectadas que mais não servem do que para alimentar uma série de gente que vive destas coisas de juntar dois mais dois para fazerem cinco, que há sempre quem apareça a mais sem ter sido convidado, os brasileiros é que lhes arranjaram um belo epíteto, o de penetras, e esse exército organiza-se bem, protege-se mutuamente, e vive e respira para inventar doses maciças e contínuas de Leis, Decretos-lei, Portarias, Despachos, Despachos Conjuntos, Ofícios, Circulares, Ofícios-Circulares, Comunicações, Ordens de Serviço, e Projectos de Lei e quejandos, trocando as voltas às mais aplicadas das pessoas, que, cheias de boas intenções, tentam encontrar alguma ordem onde se insiste em criar desordem, e depois ainda levam nas orelhas porque não fazem outra coisa senão mudar papéis de um lado para o outro, e mais isto e mais aquilo, além de que os primeiros a criticar são precisamente os que têm como passatempo, para já nem dizer profissão, legislar, despachar, oficiar, comunicar, e isto sem falar de projectar uma vida infernal a quem quer que seja que não se tenha especializado na mesma área de influência, criando um estreito círculo de vícios que se vão alimentando uns aos outros e sugando o que podem e não podem de um enorme grupo de vítimas alheias a este incomensurável espírito criativo, ou seja, todos quantos não são gente das leis, particularmente os advogados, que são pessoas honestas, certamente que são, sem qualquer dúvida, pelo menos na sua grande maioria, aliás nem se conhece gente mais honesta e francamente cumpridora dos seus deveres sociais e cívicos, o que pode facilmente ser verificado pela linguagem nada obscura que utilizam quando redigem os tais pedaços de prosa atrás mencionados ou na altura de os interpretarem, o que não é de somenos, já que disso depende o futuro do país, bem como seu presente, alicerçado, é bom de ver, numa legião de antecessores da mesma classe, cuja acção sempre se pautou por idênticos e exemplares valores atitudinais, trabalhando sempre em prol do próximo, com sacrifício pessoal e familiar, de que estará ausente qualquer preocupação monetária ou de enriquecimento à custa das dificuldades alheias, não sendo difícil encontrar um pouco por todo o lado uma estatuária dedicada a celebrar tais benfeitorias, sendo a sua capacidade de falar sempre a verdade e agir em conformidade tido como exemplo para a Humanidade, surgindo as suas declarações de impostos nas repartições públicas como modelos exemplares para serem estudados e copiados pelos cidadãos que se pretende venham a ser igualmente cumpridores dos seus deveres para com o país, estimulando desta maneira a solidariedade social e o bem-estar comum e são por isso pessoas incapazes de se aproveitarem de eventuais buracos ou vazios legais em seu proveito, ou, colocando melhor a questão, daqueles cujos direitos reclamam defender, que o mesmo é dizer os desgraçados que se vêem metidos em palpos de aranha porque simplemente se esqueceram de ler o código de processo cível ou outra inefável obra literária do género, mas o pior de tudo, o pior mesmo, é que se torna cada vez mais improvável vermo-nos livres deles alguma vez, que é o mesmo que dizer que a esperança afinal já morreu, fizeram-lhe um funeral sem que ninguém desse por nada, às tantas pela calada da noite, e se calhar até foi incinerada que é para nem se lhe poder fazer uma autópsia e descobrir os autores de tamanhos tratos de polé.
quinta-feira, novembro 03, 2005
Sem exageros
Aquilo que se vai sabendo por ouvir notícias e por ler o que se mete nos jornais dá bem conta de uma maneira muito particular que se tem por estas terras de encarar a vida e o mundo de todos os dias, de que não faz parte qualquer especial consideração por regras e outras convenções que tais, venham elas escritas em letra de lei em calhamaços que ninguém lê - bem, ninguém, ninguém, não será o caso, que ele há-de haver sempre um advogado qualquer disposto aos maiores suplícios de poeiradas e teias de aranha para conseguir chegar aonde vivalma alguma o tenha feito antes e de lá sair com vida e saúde, pelo menos sem ataques de catarro de maior - ou escarrapachadas em páginas virtuais onde ainda menos gente se arrisca - a não ser que se proponha a uma candidatura no livro dos recordes pelo mais inusual acto de masoquismo - e menos ainda se aquilo que sobranceiramente se ignora estiver apenas presente na opinião geral e comummente aceite pela generalidade das gentes, pelo que esta maneira de encarar os outros é um solitário - se bem que não único, já que praticantes desta arte são o que por aí mais abunda - acto de veemente e firme desprezo por todos os outros que não a excelentíssima pessoa que os pratica, afirmação que já vai longa, para já não dizer confusa, e que está directamente relacionada com um indivíduo que terá sido apanhado 16 (dezasseis, por extenso, que é para não ficarem dúvidas acerca do algarismo em questão) vezes a conduzir sem estar habilitado com um título de condução, vulgo carta, continuando alegre e persistentemente a praticar o mesmo acto sem que haja alguma maneira de o impedir de repetir tal proeza, o que representa um perfeito exemplo da impunidade que se vai praticando nesta terra, em que toda a gente faz o que lhe dá na gana sem que haja quem ponha cobro a similares desmandos nem quem tenha coragem de dizer que já basta, chega, é suficiente, já se viu que isto assim não vai lá nem com paninhos quentes nem com aconselhamentos de psicologias de pacotilha, e pelos vistos vai continuar assim por tempo indeterminado, ou seja, para sempre, cada vez melhor, pelo menos até vir a mulher da fava-rica, que nos dias que correm já se sabe que nunca mais tem jeito de aparecer, agora favas só no supermercado, em sacos de plástico a saber a mofo, que é àquilo que sabe igualmente o bom senso das pessoas, pelo menos de muitas delas, que os desmandos são cada vez mais abundantes, e pelo que se vê e ouve já entraram numa rotação de moto contínuo, acabaram uns de nos moerem o juízo e já vêm outros atrás, e a procissão ainda vai no adro, isto apesar de haver muita gente que é contra as procissões, se bem que não sei então lá muito bem o que é que vão fazer atrás dos padres, perdão, dos caudilhos políticos, que são outra espécie de padres, lá para as reuniões, os comícios, atrás de seja lá que andor for. É que ele há muitas maneiras de ser ateu. E de não ser mitómano de espécie alguma.
