...chefe
que é chefe
é chefe e pronto.
Quando o Zé chegou a chefe, decidiu que era chefe, que o mesmo é dizer agora mando eu e mais ninguém, para isso é que chefe é chefe e não outra coisa qualquer, sem tirar nem pôr, para serem mandados estão cá os outros todos, os que não são chefe nem nada que se pareça, carne para canhão, dir-se-ia noutros tempos, quando o chefe dizia vai e o desgraçado, que não tinha outro remédio, ia mesmo, e vinha o canhão e pimba, lá se ia a carne e o resto, o que sobrava nem dava para ver, mas o chefe também nem precisava de ver, era chefe e sabia tudo, e os restos não lhe serviam de nada, que chefe que é chefe quer o prato inteiro, nada de restos, manda e é tudo, os outros obedecem e é só isso, o chefe é que sabe, fala quando quer, nem que os outros se ponham a falar ao mesmo tempo, e toda a gente tem que o ouvir, porque é o chefe e os outros não são nada ou, se alguma coisa são, nem merecem que um chefe olhe para eles, de tão insignificantes que são, além do mais um chefe não mente, não, um chefe diz e está dito, é verdade porque o chefe disse e pronto, para mentir lá estão os sub-chefes, e os subordinados dos sub-chefes, e para fazerem asneira também, despropósitos desses não cabem a um chefe, não, nem pensar nisso, antes pelo contrário, mesmo que fiquem as dúvidas que contrário seja esse, o chefe disse e está dito, os outros que se amanhem, não estão lá para outra coisa senão para se amanharem, que importa o olhar sobranceiro do chefe, um ou outro laivo de arrogância, desprezo se preciso for, chefe é chefe, não sofre dessas minudências, um chefe pode ser vesgo mas nunca será vesgo, pode ser coxo que nunca é coxo, e além do mais os mentirosos são mais fáceis de apanhar do que os coxos, pelo menos é o que se diz por aí, que nunca fiz tal experiência, mas pelos vistos há quem a tenha feito, caso contrário tal proposição nunca passaria por verdadeira, e não é responsável por nada porque um chefe nunca é responsável por nada, a não ser, e esta é a excepção que compõe a regra, que se trate de verdadeiros êxitos ou de ideias brilhantes, que as ideias de um chefe não podem ser outra coisa senão brilhantes, notáveis, louváveis, importantes, extraordinárias, menos que isso é que não, que ideia, um chefe pode ser isto ou aquilo que nunca será nem isto nem aquilo, não, chefe que é chefe é chefe e pronto.
segunda-feira, janeiro 23, 2006
Ora bolas
Ora bolas, acabaram-se as actividades circenses, partiram os palhaços, os ricos e os pobres, mais os assim-assim, que ele há sempre lugar para meias-tintas, para os nem-carne-nem-peixe, o que vale é que para a semana que vem há jogo da bola, sempre dá para encher jornais e conversas, se bem que ainda há quem fique para aí a discutir se as coincidências foram mesmo coincidências ou se foi de propósito, que isto de toda a gente querer falar ao mesmo tempo é no que dá, pensam que é tudo com eles e que têm o rei na barriga e esquecem-se afinal de que são republicanos, ou pelo menos dizem que são, que isto com alguns até dá para desconfiar, é uma pouco vergonha, é o que é, diriam algumas senhoras mais abespinhadas com a falta de pudor que vai por aí, para já nem falar de falta de organização, depois querem que isto vá lá, para onde é que falta saber, mas pela amostra não deve ser para lado nenhum, e depois a culpa é dos professores, claro que é, de quem é que havia de ser, da ministra?, ora essa, pelos vistos há um staff que não staffa nada, que é o mesmo que dizer que não pesca nada do assunto, que a pesca já foi chão que deu uvas, ou melhor, peixes, deve ser por causa dos cortes de Bruxelas, a tal das couves, que isto das pescas já nem à linha, quanto mais de arrasto, arrastados vamos mas é todos, e o empurrão é de tal ordem que nem se sabe de que terra somos, que era o que se dizia noutros tempos quando as crianças se portavam mal, para os crescidos já é mais difícil, que estes quando se portam mal levam medalhas e comendadorias, empregos bem remunerados e reformas ainda mais bem pagas, um lugarzito aqui e outro ali, pela calada que é para ver se não se dá nas vistas, e o triste disto tudo é acabarem-se as arruadas, as comiciazadas, as feiradas, as caravanadas, as debatadas e as debandadas, fica para ali a um canto o palhaço rico a tocar no saxofone e o pobre lá se contenta com dar umas violinadas numa serra, o espectáculo foi de férias, ficaram apenas uns tristes a moerem a juízo a meia dúzia de desgraçados ali num canto da praça, ora bolas, ora bolas.
sábado, janeiro 21, 2006
Azares
Das pessoas que conheço, o Miguel é sem dúvida uma das mais azarentas, não sofrendo daqueles grandes azares que dão cabo da vida de alguém de forma irremediável, mas antes de pequenos azares, que estes também se servem em doses de diferentes dimensões, suficientemente incisivos, no entanto, para deixar uma pessoa de cara à banda, ou pelo menos para a levar pela vida fora aos trambolhões, ainda no outro dia ia pela rua a caminho do emprego quando deu uma topada e se espalhou ao comprido no passeio, esfolando um joelho e um braço, só que decidiu aterrar precisamente em cima de um razoável amontoado de dejectos caninos, uma dessas invulgares obras de arte que os donos mais civilizados resolvem deixar ali expostos à admiração dos transeuntes, só que foi precisamente aí que o braço esfolado acabou por aterrar, o que lhe provocou uma valente infecção que o deixou de cama durante duas semanas, altura em que tinha que pagar a conta da luz, de que compreensivelmente se esqueceu, o que lhe valeu ficar às escuras e sem aquecimento em casa durante uns dias, até ter arranjado quem lhe fosse pagar a conta e telefonar para a empresa para que lhe voltassem a ligar a corrente, e há não muito tempo atrás havia-lhe sucedido contrariedade semelhante, só que com a água, e quando lha ligaram não estava em casa, só que se tinha esquecido de uma torneira aberta, de maneira que quando regressou tinha involuntariamente proporcionado uma belíssima cascata pelas escadas do prédio aos restantes moradores, que volta meia volta lhe conferem umas boas amolgadelas no carro, dessa vez foram ainda em maior número, por vingança ou não é que nunca chegou a saber, de maneira que costuma ter uma conta calada na oficina de mecânica e bate-chapas, baterias então é um ver-se-te-avias, que além de azarado o Miguel é distraído q.b. para se esquecer de apagar algumas daquelas luzinhas que existem no interior dos automóveis e que nunca se sabe lá muito bem para é que servem, por isso liga-as e nem lhe passa pela cabeça desligá-las a seguir, também já é cliente assíduo das Chaves do Areeiro, que uma vez por outra lá se esquece das chaves dentro de casa e é preciso chamar um técnico que lhe arrombe a porta e meta uma fechadura nova, às tantas resolveu deixar uma cópia da chave com uma vizinha, a quem assaltaram a casa e, por terem dado com a cópia da chave da sua porta, os larápios fizeram umas horas extraordinárias no seu domicílio, foi uma confusão com a seguradora, que não queria aceitar por nada a explicação da chave emprestada, mas também é certo e sabido que as seguradoras têm como finalidade receber o dinheiro dos seguros e tentar pagar o mínimo dos mínimos, afinal de contas, ao que se diz, o seguro morreu de velho, e não deve ter sido por andar a dar dinheiro a torto e a direito.
domingo, janeiro 15, 2006
O chato
O chato é aquele tipo de pessoa de sexo indeterminado - muito embora haja uma maior tendência no sexo masculino, vá-se lá saber porquê - que tem por hábito estar no sítio errado à hora errada, nunca se dando conta de que está onde não se deseja que esteja, tendo uma capacidade inata de dar cabo dos projecto seja de quem for, sem olhar a meios, custe o que custar e seja a que horas for, o mesmo é dizer que aparece quando menos se espera que apareça, surgindo inesperadamente nos locais mais inusitados com um sorrido daqueles de orelha a orelha, sem qualquer espécie de remorso, o que é uma característica específica deste género de pessoa, a ausência total de remorsos ou até mesmo de consciência social, para já não falar de maneiras, que é coisa intolerável sempre que se trata de situações potencialmente embaraçosas, mas chatos, chatos, são mesmo aqueles que nos entram pela casa dentro todos os dias, sem pedir licença seja a quem for, e que vêm com a mesma conversa de sempre, que é aquela que sim, que não, mas que também, sem variações de espécie alguma, nem meio tom acima nem meio tom abaixo, surgindo a qualquer hora do dia sem se fazer rogado, ainda para mais com uma data de gente atrás a fingir que sim, que o chato é que é bom, que o chato é que sabe, que o chato não é chato, não senhor, isso é o que dizem dele para o denegrir, que é impressão de quem o ouve, vai-se a ver e no fundo o chato continua chato como sempre, mais ainda, se tal for possível, a azamboar-nos constantemente os ouvidos, a mostrar o nariz em tudo quanto é sítio sem pejo algum, a meter-se à frente dos outros, a meter conversa sem para ali ser chamado, e se o chamam ainda é pior, então é que não se cala mesmo, que o chato é assim mesmo, chato por natureza, ainda me recordo dos tempos em que dizer tal palavra era socialmente condenável, não é que hoje seja assim tão mais aceite, mas como o que vale hoje em dia é ser ordinário, e quanto mais, melhor, lá me lembrei de escrever uma data de chatices.
segunda-feira, janeiro 09, 2006
Pessimismos
Mais do que saber que um ano passa, que são trezentos e sessenta e cinco dias, uma vez por outra trezentos e sessenta e seis, que vamos gastando este tempo que temos assim ou assado, grande parte das vezes mais assado do que assim, e que depois de gasto não há nada que nos possa voltar a recebê-lo, que quem dá e volta a tirar ao inferno vai parar, dizia-se nos tempos em que ainda se podia falar em inferno sem queimarmos as mãos ou a língua, que hoje em dia há que olhar para o lado antes que se possa pronunciar uma palavra que seja sem que nos atirem à cara uma data de rótulos daqueles que têm uma cola mesmo nada fácil de retirar, que nem com água a ferver se vai lá, pior mesmo do que o adesivo na história do Tintin, e o que me divertia essa cena, que não deve ser mesmo nada divertido ficar colado a uma qualquer legenda a vida inteira, se fosse tinha-me transformado em personagem de cinema, de animação, de banda desenhada, de partido político, eu sei lá, o que não falta é por onde escolher, pois pior do que isso tudo é levar a vida a contar os dias, a vê-los a andar cada vez mais devagar ou mais depressa, consoante se espera ou desespera, nem sempre tudo o que parece é, e afinal andamos cada vez mais metidos num jogo de aparências de que a verdade está mais e mais arredada, e isto não é pessimismo de quem já encara o copo meio vazio, é o que se sente quando se olha para o que nos falta e o que nos resta, a pouco e pouco o balão vai-se esvaziando e nem damos por ela, um dia destes acordamos e já nada nos pertence, os livros, a roupa, a casa, o país, nem sequer a vida, que a demos de mão beijada a quem a não soube sequer gerir, tal como tudo o resto, ou então já nem acordamos e pronto, era uma vez, e é que é mesmo era.
segunda-feira, janeiro 02, 2006
Ano novo, vida nova
Ano novo, vida nova, disse ele à mulher, deixando-a acreditar que ia ao café, ou comprar cigarros, ou coisa no género, certo, certo, é que nunca mais voltou a pôr os pés em casa, desandou, como se diz, deu às de Vila-Diogo, dizia-se noutros tempos, pôs-se na alheta, bazou, que são expressões mais contemporâneas, depois ainda dizem que não há surpresas de ano novo, ai não que não há, aí está uma para amostra, nunca se chegou a saber bem o que o levou a tal, quem saberá dizer se estava farto, ras-le-bol, diriam os franceses, up to here, diriam os anglófilos, estendendo a mão à altura da testa, porventura outros dirão ainda da maneiras diferentes, que a cada povo seus usos e costumes, mesmo por cá há quem diga as coisas de uma maneira ou de outra, o mal é que as que se diziam hoje em dia já quase não se ouvem, assim se vão perdendo as memórias, que a linguagem está mais pobre de dia para dia, e a única excepção serão as asneiras, que tendência para essas é coisa que não falta, e ao fim e ao cabo a criatividade tem que ser canalizada para algum lado, o pior é que vai para o lado errado, assim não saimos da cepa torta, ou seja, da asneira, e já lá vai o tempo em que passear sem destino ou sem propósito era o que se dizia fazer uma visita à senhora disso mesmo, da asneira, para que fique claro o que se pretende aqui dizer, entretanto a conversa foi-se alongando noutro sentido e acabou-se por perder o fio à meada, ou melhor, ao tal indivíduo que se pôs ao fresco, que cá por estes lados andar na rua no ano novo é mesmo andar ao fresco, que ainda não chegámos aos trópicos, se bem que há uns pessimistas que dizem que pouco falta, pois desse tal que deixou casa, família, cama e roupa lavada nunca mais ninguém lhe pôs a vista em cima, sobretudo a mulher, se calhar era essa mesma a intenção, para além das pessoas deixou ainda o emprego, as contas no banco, o automóvel e tudo o resto, a coisa chegou a meter polícia, investigações mais ou menos aturadas, mas se um homem desaparece e não quer deixar rasto é porque não pretende mesmo que o encontrem, vai-se a ver e emigrou, foi para a Austrália, os antípodas, a China, o Canadá, as Bermudas, com ou sem triângulo, quem sabe?, se calhar sabe ele e já chega.
