Há muitos, muitos anos, era eu ainda criança, não havia comboios. Víamos nos filmes aquelas máquinas que largavam fumo das chaminés e que os índios insistentemente teimavam em cravar de flechas e de lanças.
Na escola, estudávamos as linhas todas, as estações, os apeadeiros, as pontes, os túneis, as passagens de nível, com e sem guarda, pare, escute e olhe. Mas não havia comboios.
Ou melhor, havia um. O comboio da doca. Estava lá paradinho, muito sossegado e, quando andava, ia para a frente e para trás, e quase não saía dali. Era um dia de festa quando alguém o via percorrer aqueles quinhentos metros de uma ponta à outra, e considerávamos o feliz contemplado um miúdo com toda a sorte do mundo. Dali nascia uma interminável narrativa, recheada de pormenores descritivos, e acompanhada de sopros, de silvos, de sons de toda a espécie e feitio, que isto de histórias há que contá-las bem e com vagar, caso contrário não têm piada nenhuma.
E então das ilhas com nome de pássaros do meio do Atlântico passei às viagens pela linha do Oeste, pelas estações com nomes que me soavam a um Portugal antigo, ao mistério de lendas e sombras de outras histórias: Pero Negro, Runa, Dois Portos, Sabugo. Dessa memória dos comboios de corda, dos comboios eléctricos com que brincava quando era criança, dos desvios, dos cruzamentos, das passagens de nível, dos apeadeiros de cartão e madeira, das casinhas brancas e encarnadas de peças da Lego ficaram-me as imagens de uma viagem sem destino, a preto e branco, como o comboio da doca.
Camões dirige-se aos seus contemporâneos
Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terríveI. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.
JORGE DE SENA, Metamorfoses
Símbolos Nacionais
Reza o decreto nº 150, de 30 de Junho de 1911, e veja-se só a vetustez de tal actualidade legislativa, no seu Artigo 1º, que «a Bandeira Nacional é bi-partida verticalmente em duas côres fundamentaes, verde-escuro a escarlate, ficando o verde do lado da tralha.» E continua, referindo-se, a certa altura, ao jack (ipsis verbis). Menos vetusto é o Decreto-Lei nº 150/87, de 30 de Março, que vem estabelecer as normas de utilização da Bandeira Nacional, nomeadamente quanto aos dias da semana e às horas do astear, e ainda quanto à quantidade de mastros que devem existir no caso de o pavilhão nacional ser hasteado com outras bandeiras, nacionais ou estrangeiras.
Vem isto a propósito da febre de bandeiras nacionais hasteadas por todo o lado durante a realização de um campeonato de futebol e dos símbolos que nela figuram. É sobremaneira curioso que tanta preocupação incida nas cores e nas dimensões, nos horários em que a bandeira deve picar o ponto, e ninguém se rale com a simbologia que nela figura. Relembrando aqui algumas aparições de figuras do Estado nos órgãos de comunicação social, oficialmente ladeadas pela Bandeira nacional, notei com algum espanto que alguns dos símbolos são completamente diferentes na sua aparência, particularmente os castelos: ora aparecem com uma só torre, ora com várias; agora surgem com a porta a negro, depois apenas estilizada com uma linha. Isto para, ao correr da pena (e evitando o estrangeirismo), e já agora, recordar os disparates que surgiram no símbolo da nação aquando do tal campeonato de futebol, em que estes castelos muito pouco tinham de castelos.
É francamente de estranhar que de vez em quando os responsáveis pelos destinos da nação se ralem com a utilização que é dada aos símbolos nacionais, e ignorem a figuração nos mesmos. Já agora, por que razão não se substitui os castelos por bananas?
quarta-feira, novembro 17, 2004
Sem título
Espero-te pelos dias fora num café, numa rua de árvores
entre uma avenida e outra.
Não sei se vens; é como um prazer antigo, este café amargo,
estas mãos pelos jornais, estas sombras de rostos iguais.
No quarto pequeno, longe destas ruas, vais deitar-te sobre um leito,
deixas-me, sobre o fogão, o mesmo corpo que eu esqueço pelos dias,
vamos morrer também, um dia destes,
a tomar o mesmo chá,
a falar sobre as mesmas coisas.
segunda-feira, novembro 15, 2004
O vizinho é nosso amigo
Ele há gente cujo único propósito na vida parece ser o de infernizar a vida alheia. Estes castiços tipos portugueses acordam de manhã bem cedinho, abrem as janelas com o máximo estrépito para dizerem olá ao mundo e ficam em casa o dia inteiro a desempenhar as mais variadas tarefas. Destas, as variantes são as seguintes: berbequinar toda e qualquer superfície sólida com que se deparem; esgravatar tectos, paredes e soalhos com o maior dos empenhos; cozinhar o almoço logo bem cedinho mantendo desligado o extractor de fumos e cheiros para que a vizinhança inveje os acepipes que se encontram em fase de preparação; acolher os bebés alheios e entretê-los todo o dia com as mais belas cantorias (e vozes) do mercado da canção popular e infantil, preferencialmente esganiçando a voz para incentivar a educação musical do dito bebé desde a mais tenra infância, com a alegre acompanhamento de tachos, panelas e de preferência todo o trem de cozinha, imitando o ruído de descarrilamento do já referido trem; calcorrear com frequência todas as divisões da respectiva habitação para se assegurarem de que não mora lá mais ninguém; manifestar o seu enorme gosto pela decoração renovando a disposição do mobiliário pelo mais do que reconhecido método de arrastamento; fornecer gratuitamente os mais variados trechos musicais a toda a vizinhança sem quaisquer custos adicionais para esta, dinamizando o bom gosto musical de forma desinteressada e descomprometida; e ainda, como suplemento gratuito, fazer entender que uma das suas maiores preocupações é a limpeza e higiene, desenvolvendo matutinas actividades com o aspirador aos sábados, já que os restantes dias estão mais do que preenchidos com as tarefas supra-citadas, não deixando qualquer margem de manobra para uma alteração do calendário.
Eis um belo exemplo de solidariedade cívica, de inteligência e de gestão de recursos. Passe a ironia. Atentamente,
domingo, novembro 14, 2004
Enfim...
Ele há dias e dias. E também há outros em que não apetece fazer nada. Nada, mesmo. Nadinha de nada. O pior é que se acaba por fazer alguma coisa. Nem que seja andar para aqui a inventar frases sem sentido ou com muito pouco sentido, nem que seja apenas porque apetece. E isto de apetites tem que se lhe diga. Apesar de por vezes não apetecer dizer nada. Coisas. Resumindo e concluindo (ou, como dizem os bifes, in a nutshell), as coisas são assim mesmo e não há nada a fazer. Que diabo. E por que carga d'água havia de ter que ter sempre uma opinião seja sobre o que for?
De onde vêm e para onde vão as cenouras
À primeira vista, as cenouras têm uma coloração alaranjada e uma superfície rugosa. Isto não invalida que estejamos perante um tubérculo que encerra em si alguns dos maiores mistérios da criação universal.Afinal de contas, as pessoas costumam atribuir-lhe benefícios para a saúde, que certamente não serão de desprezar, conferindo-lhes até um poder de atracção que desperta a maior cupidez entre quem não consegue aceder-lhes, daí que se diga acenar com uma cenoura a alguém quando se pretende levar a pessoa a fazer algo que à primeira vista não iria fazer, talvez por ir contra a sua consciência ou contra outra coisa qualquer, que esta coisa de consciência anda um tudo-nada sobrevalorizada. E se, na imagética popular, não é inusual retratar o andamento de um burro, quando este se recusa a fazê-lo, acenando-lhe com uma cenoura presa a um cordel suspenso por cima da sua cabeça, de maneira a que este possa ser forçado a caminhar com a finalidade de alcançar a tão almejada cenoura (e aplicando aqui um silogismo), as pessoas a quem nos referimos acima estarão dentro da categoria dos referidos animais, salvas as devidas proporções e formas anatómicas.
A esta tal de cenoura são atribuídas virtudes medicinais, intimamente ligadas à questão da visão, daí se podendo inferir que as pessoas que têm visão serão grandes proprietários de uma boa quantidade de cenouras.
Mas a grande questão prende-se muito claramente com a origem das cenouras.Não sendo nossa intenção encontrar uma qualquer explicação cabalística para a sua origem, estabelecemos uma série de contactos com especialistas no ramo das cenouras, de que destacamos o senhor António, proprietário de uma horta que fornece o quiosque do jardim, sito à localidade de Bolores, junto ao jardim principal (e único, diga-se de passagem) daquela povoação.
Muito embora tenhamos tido o elementar cuidado de verificar se na verdade o nome da localidade influenciava de alguma maneira as condições de armazenamento dos referidos tubérculos, não nos foi possível obter, até ao momento, nenhuma garantia da autoridade política máxima da localidade que nos pudesse tranquilizar acerca das condições sanitárias em tal bolorenta localidade; no entanto, garantiu-nos o especialista acima citado que as cenouras provêm da região saloia que abastece uma boa parte da capital do país e que o seu destino não se encontra em segredo de justiça, sendo tão-só e apenas os mercados da zona da capital. Ficar-lhe-emos eternamente gratos pelos esclarecimentos prestados.
O que é que acontece depois de chover
Ainda não ficou cientificamente estabelecido que depois de chover não venha a chover novamente. Em todo o caso, é do conhecimento geral que, depois de chover, fica tudo molhado. Pelo menos, tudo o que estiver à chuva.
Aqui fica o ditado popular: quem está à chuva molha-se.
A galinha a quem roubaram os ovos
Continua infelizmente a verificar-se por este mundo inteiro o drama quotidiano de galinhas a quem indivíduos sem carácter roubam indiscriminadamente o fruto das suas tarefas maternas.
O crime é hediondo e infelizmente repete-se todos os dias, sem que ninguém tome as devidas providências para sequer prevenir um acto que tem vindo a aumentar ano após ano.
Apesar das queixas sucessivas entregues junto de quem trata das coisas da justiça, o representante legal das lesadas veio a público manifestar a sua indignação perante a passividade das forças da ordem e dos legisladores de todas as nações, que têm vindo sucessivamente a ignorar uma tomada de posição sobre a matéria. O facto é que se tem verificado um aumento significativo do esforço das galinhas no sentido de porem cada vez mais ovos, garantindo assim a sobrevivência da sua espécie.
Porém, esses ovos são diariamente desviados para outros fins, nomeadamente para a concepção de omoletes, ovos estrelados, cozidos, escalfados, mexidos, bolos de todas as espécies e feitios, pratos gastronómicos para deleite de gordos, magros e assim.
O que pensam os gatos acerca do custo de vida?
E haverá gatas na outra vida? São as maiores preocupações destes felinos, pelo menos a julgar pelas sondagens realizadas telefonicamente a 565 gatos nas zonas da Grande Lisboa e do Grande Porto.
Pelo menos foram as conclusões a que chegámos acerca das suas preocupações espirituais e da migração da alma felina.
A atenção que dispensam a este fenómeno abrangerá também, ainda segundo a sondagem, a possível existência de gatos em outros planetas, o que, na eventualidade de vir a ser provado, desde logo desencadeará uma série persistente de miados destinados ao espaço, ao vivo e via satélite.
SOFÁS E VIZINHANÇA
Mas a principal preocupação evidenciada pelos entrevistados prende-se com a qualidade do acolchoado dos sofás. Uns manifestos 75% dos inquiridos revelou sentir alguns incómodos com a aspereza dos tecidos e com algumas molas demasiado rijas para a sua sensibilidade.
Sensíveis também se mostraram quanto à arrogância de alguns vizinhos, que se levantam às seis e sete da manhã, não permitindo o devido descanso a tão esforçadas criaturas.
Recomendaram por isso que fossem lançados impostos especiais para quem se levanta demasiado cedo, e que os mesmos incidissem sobre 50% dos rendimentos de pessoas tão insociáveis como essas. Pensam mesmo que tal gente não merece a sua confiança.
ENSINO DE ADULTOS E OUTROS PRIVILÉGIOS
Cerca de 40% dos gatos e gatas contactados mostrou ainda o seu descontentamento pelo facto de o miado educacional deixar muito a desejar, não se tendo ultimamente privilegiado as estratégias de motivação no processo de ensino e aprendizagem do comportamento felino.
Antes pelo contrário, como atestaram alguns dos mais importantes representantes do sindicato felino, ultimamente ter-se-ia verificado uma verdadeira atitude racista em favor dos canídeos e em detrimento da sua classe, sendo aqueles tantas vezes engordados com pequenos-almoços, almoços, lanches, jantares, ceias e outras guloseimas e refeições intermédias de grande qualidade, ao ponto de já nem poderem dar um passo devido à sua desmesurada obesidade.
Uma outra reivindicação gatal foi a relativa ao subsídio de desemprego, uma vez que sempre os preocupou o facto de não terem nada que fazer.
As pessoas
A nossa preocupação principal é para com qualquer pessoa, e não para com alguém em especial, até porque não nos interessa a especulação sobre uma pessoa, nem divulgamos notícias sobre o jet-set. Muito menos pretendemos aqui fazer referência a um qualquer facto em particular, já que aqui se trata de qualquer pessoa e de qualquer coisa. Não tratamos por isso de assuntos relecionados com outros seres, quer se trate de gatos, de formigas ou de cenouras. Aqui tratamos de pessoas, sejam elas do sexo masculino, do feminino ou mesmo hermafroditas, sejam elas gordas, magras ou assim-assim, altas, baixas ou nem por isso.
Afirmamos solenemente que qualquer pessoa é capaz de qualquer coisa. Ou até de muitas coisas. As pessoas acordam, lavam-se ou nem por isso, comem qualquer coisa ou nem isso, dão umas voltas quando podem, voltam a comer ou nem isso e depois dormem outra vez. As capacidades inerentes a qualquer pessoa são muitas, e as coisas que fazem são diversificadas.
Vejamos por exemplo a idade: qualquer pessoa tem um ou mais anos. Algumas têm quase um. Há inclusive outras que têm anos demais. E são dignos de referência os casos de idade da infância, da primeira e da segunda, da idade da adolescência, da meia-idade, e da terceira idade. Temos pessoas para cada uma delas. As pessoas consideram que há idades melhores e idades piores, mas trata-se apenas de um ponto de vista e as opiniões sobre este assunto são absolutamente pessoais e variam de acordo com a idade. Merece ainda ser aqui registado o caso das pessoas que não têm idade.
As pessoas andam de um lado para o outro. Há quem refira que se trata de viajar. Viaja-se a pé, de comboio, de automóvel, de barco, de avião, de bicicleta, de moto, de cadeira de rodas, e também se viaja à conta, embora não seja muito claro o que isto significa, porque não é muito vulgar ver pessoas a contar enquanto andam para a frente e para trás; por outro lado, há quem esteja sempre a contar as viagens que já fez e as que virá a fazer no futuro. Nos últimos tempos têm sido notícia as pessoas que viajam de trotinete. Um dos temas que também preocupa muitas pessoas é a última viagem, embora já nem se lembrem da primeira, e existem muitas empresas apenas vocacionadas para esta viagem, embora haja outras que trabalham com viagens para todo o mundo e a que normalmente as pessoas chamam agências de viagens, não se percebendo muito bem porque também não chamam o mesmo às outras, as da última viagem.
Viaja-se isoladamente, em família, ou isola-se a família e vai-se viajar, o que não deixa de ser uma opção para muitas pessoas, que são capazes da pagar qualquer coisa para ir viajar. Há pessoas que viajam muito e há pessoas que viajam pouco ou nem sequer isso, por isso se diz que haja quem viaje de boca.
Ora bem, esta é uma expressão curiosa. Viajar de boca significará que não se leva a dentadura nas viagens? Ou então que se vai de viagem e se deixa a boca em casa, no seguimento de uma operação plástica? E quando se volta vai-se novamente ao cirurgião para voltar a meter a boca no sítio? Ou leva-se apenas a boca e mais nada? E será também necessário para isso fazer uma operação plástica antes de viajar? Trata-se, pois, de algo que convém esclarecer, porque pelos vistos há muitas pessoas que praticam esta modalidade. Contudo, não nos foi possível recolher testemunhos acerca do assunto, porque quem tinha boca não a quis abrir para contar como foi, nem pretendeu assim recomendar esta prática.
As pessoas também respiram. Umas pessoas respiram mais do que as outras e há pessoas que já não respiram mesmo nada e que outras pessoas levam embora e escondem num sítio qualquer de maneira que já ninguém lhes põe a vista em cima. A estranheza deste caso chamou a nossa atenção, uma vez que ficou claro que há pessoas que escondem outras pessoas, para já não dizer que há pessoas que escondem coisas.
Ultimamente tem sido muito debatida a respiração artificial, ou seja, um artifício para pôr a respirar aquelas pessoas que se recusam terminantemente a fazê-lo. Parece que outra modalidade muito em voga, sobretudo na época balnear, é a respiração boca-a-boca. Embora possa parecer fora do normal, neste tipo de respiração não funciona o nariz, que se sabe ser um apêndice que serve para respirar e para outras coisas, nomeadamente para ser metido onde não deve. Os praticantes de respiração boca-a-boca recusam-se a utilizar o nariz, afirmando ser prejudicial às suas actividades, embora não seja muito claro onde é que o metem quando não o estão a usar, e este conselho poderia ser de grande utilidade para certas pessoas, embora para outras nem por isso.
As pessoas falam, embora nem todas. Também ouvem, mas falam mais do que ouvem, e isto é um fenómeno típico entre certas actividades das pessoas, variando também de acordo com o sexo e a idade. Há quem venda a fala palavra a palavra, há quem venda ao segundo, e há ainda quem utilize certos meios técnicos para se pôr a falar em todo o lado, e quem fale a torto e a direito, não sendo igualmente muito claro o significado deste último tipo de fala, embora nos pareça que as pessoas possam colocar o corpo em várias posições para poderem falar.
As pessoas também conversam. Conversam de tudo e de nada, e há sempre gente a conversar. mesmo quando não se quer, há sempre pessoas dispostas a isso. Outras ficam indispostas com isso e algumas nem sim nem não. Foram testemunhados diversos casos de pessoas que têm sempre a mesma conversa e de pessoas que não têm conversa nenhuma. A maior parte das conversas não tem interesse nenhum. Interrogadas umas pessoas quaisquer sobre o assunto, foi praticamente unânime a opinião de que as pessoas gostam de ser levadas na conversa, não tendo ficado porém muito claro para onde é que elas eram levadas, muito embora seja inegável que há quem vá na conversa, não estando este meio de transporte entre os que acima referimos a propósito das viagens.
Existe uma regra de ouro a propósito da conversa: não se fala enquanto se mastiga. Mas há muitas pessoas que decidem pura e simplesmente ignorar esta regra, defendendo a liberdade plena das suas acções. Daí que seja comum o atendimento nas urgências hospitalares de casos de pessoas atingidas por arroz, batatas, pedaços de bife ou de peixe frito, bocados de fruta ou de vegetais diversos, e até mesmo por caroços. Talvez se encontra aqui a justificação para as viagens de boca a que já fizemos referência anteriormente, sendo assim viagens dirigidas especificamente aos hospitais. Hoje em dia é moda conversar para um objecto que as pessoas encostam ao ouvido, na esperança de manter a conversa em dia, embora muita gente também o faça de noite.
Com o tempo, as pessoas aprenderam a escrever. Escreve-se em todo o lado, sendo especialmente de bom gosto escrever nas paredes e nos monumentos, que são coisas que as pessoas mandam plantar em certos sítios para se esqueceram delas mais depressa. Escreve-se bem ou mal, conforme as opiniões. Mas escreve-se muito. E depois nem por isso se lê. Mas as pessoas escrevem furiosamente, escrevem furiosas, há pessoas furiosas que escrevem, e há também aquelas que já não escrevem, porque desistiram ou porque pertencem àquele grupo das que foram levadas pelos outros não se sabe bem para onde.
