Há muitos, muitos anos, era eu ainda criança, não havia comboios. Víamos nos filmes aquelas máquinas que largavam fumo das chaminés e que os índios insistentemente teimavam em cravar de flechas e de lanças.
Na escola, estudávamos as linhas todas, as estações, os apeadeiros, as pontes, os túneis, as passagens de nível, com e sem guarda, pare, escute e olhe. Mas não havia comboios.
Ou melhor, havia um. O comboio da doca. Estava lá paradinho, muito sossegado e, quando andava, ia para a frente e para trás, e quase não saía dali. Era um dia de festa quando alguém o via percorrer aqueles quinhentos metros de uma ponta à outra, e considerávamos o feliz contemplado um miúdo com toda a sorte do mundo. Dali nascia uma interminável narrativa, recheada de pormenores descritivos, e acompanhada de sopros, de silvos, de sons de toda a espécie e feitio, que isto de histórias há que contá-las bem e com vagar, caso contrário não têm piada nenhuma.
E então das ilhas com nome de pássaros do meio do Atlântico passei às viagens pela linha do Oeste, pelas estações com nomes que me soavam a um Portugal antigo, ao mistério de lendas e sombras de outras histórias: Pero Negro, Runa, Dois Portos, Sabugo. Dessa memória dos comboios de corda, dos comboios eléctricos com que brincava quando era criança, dos desvios, dos cruzamentos, das passagens de nível, dos apeadeiros de cartão e madeira, das casinhas brancas e encarnadas de peças da Lego ficaram-me as imagens de uma viagem sem destino, a preto e branco, como o comboio da doca.