N
aquele ano, decidiu, não iria oferecer presentes a quem quer que fosse, a paciência para andar para lá e para cá à procura de bugigangas acabara-se-lhe, a resolução era definitiva, assim como assim fartara-se de andar com sacos e mais sacos de um lado para o outro, daquele constante entra e sai em lojas e mais lojas cheias de gente, que se danassem os comerciantes, os colegas, a família, os amigos, o Pai Natal e o menino Jesus e o resto da pandilha, há anos que também não lhe ofereciam coisa de jeito e que tivesse alguma utilidade prática, ora era uma travessa que nunca chegaria a usar e que, além do mais, não dava com nada do que lá tinha em casa, um livro que já tinha lido, umas meias de tamanho errado, mais isto e mais aquilo que fora acumulando ano após ano e que lhe atafulhava os armários de inutilidades, caixas, caixinhas e caixotes, bonecos, bonequinhos e bonecões, um dia destes fazia uma barrela e ia tudo para o lixo, ai não que não ia, depois talvez lhe sobrasse espaço para as outras inutilidades que se amontoavam pelo chão e pelas prateleiras, o que tinha era que tomar uma decisão radical, tornar-se minimalista ou coisa que se parecesse, cingir-se ao essencial, ao indispensável, podia levar a tralha para a feira da Ladra, o pior era o trabalho em que se ia meter, outra solução seria fazer uma venda, mas também não tinha garagem nem relvado nem espaço para montar um estaminé na rua como fazem no estrangeiro, que esses é que sabem livrar-se das velharias pondo-se a rifá-las a torto e a direito, que há sempre quem se entretenha a frequentar essas ocasiões e a comprar coisas estranhas, ele há gente para tudo, para tudo e mais alguma coisa, por isso começou a poupar o dinheiro que antes gastava nessas ninharias, mas os colegas, a família, os amigos, o Pai Natal e o menino Jesus é que não desistiram, qual quê, mesmo sem levarem nada de volta atafulharam-lhe a casa com mais tralha do que a que já tinha, caixas, caixinhas e caixotes, bonecos, bonequinhos e bonecões, livros que já lera, discos compactos que não lhe interessava mesmo nada ouvir, filmes em dvd que já vira vezes sem conta, laços, lacinhos e laçarotes por todos os lados, resmas e resmas de papel de embrulho, cartões para todos os gostos e feitos, de tamanhos e cores variadas, aquilo era gente de ideias fixas, de antes quebrar que torcer, era Natal e por isso lá veio presente daqui e dacolá, nem ficaram sequer ressentidos por não lhes ter retribuído, pensara ter resolvido o problema de raiz acabando com as oferendas, mas não, ainda lhe haviam dado mais coisas, se calhar pensaram que estivesse a passar necessidades, sabe-se lá o que vai na cabeça das pessoas por estas alturas, até parece que ficam obcecadas, esquizofrénicas, penduram uma data de pais Natal nas varandas, pespegam nas janelas com iluminações mirabolantes compradas por tuta e meia nas lojas chinesas, daquelas que passam a vida a acender e a apagar, a acender e a apagar, criando efeitos luminosos psicadélicos, apesar dessas coisas já terem passado de moda por volta dos anos setenta ainda continuam a persistir, é vê-las por todo o lado, a acender e a apagar, a acender e a apagar, verde, encarnado, azul, amarelo, um ror de cores e formas que dão cabo da vista e fazem mal à cabeça, que se dane, é Natal, dantes eram bandeiras e agora são luzes e luzinhas, é no que dá o patriotismo, arreia-se o símbolo nacional comprado na loja chinesa e hasteia-se o pavilhão luminoso adquirido no mesmo local, que é onde há variedade por bom preço, para o ano é que ia ser o bom e o bonito, lá teria que voltar às lojas e aos presentes, se calhar a dobrar, para compensar e não fazer má figura, ora bolas, ora bolas, ora bolas.
domingo, dezembro 10, 2006
Claro que os alunos estão sempre em primeiro lugar para os governantes deste país
N
os últimos tempos tem sido perfeitamente visível a enorme preocupação com que os responsáveis ministeriais ligados ao ensino lidam com os problemas dos alunos, através do recurso da decisão judicial acerca da repetição de exames nacionais por dois alunos e ao seu ingresso nos cursos de medicina, por mérito próprio, diga-se, face aos resultados que os mesmos alunos obtiveram nas provas repetidas, muito embora alguns dos mesmos responsáveis desde sempre tenham alegado que em primeiro lugar estão os alunos, daí que seja perfeitamente compreensível que recorram judicialmente, facto que deverá ter origem, por certo, na necessidade de os colocar em contacto com o funcionamento da justiça portuguesa, para desta maneira lhes mostrar, de forma pedagógica, que neste país se pode dizer uma coisa com a maior desfaçatez e fazer outra completamente diferente, deve ser precisamente isto que se pretende com um novo estilo de governação, que transporta para o ensino uma maneira de ser que mais não é do que uma imensa hipocrisia, será certamente uma óptima adaptação ao mundo adulto para os dois jovens, muito embora – infelizmente – tal possibilidade tenha sido negada aos restantes alunos que se viram na mesma situação e que não recorreram para os tribunais acerca da possibilidade de repetirem o exame, como aconteceu em ambos os casos a que acima nos referimos, privando toda essa população estudantil de tal experiência pedagógica, o que não se sabe lá muito bem se demonstra respeito por quem levou uma dúzia de anos de estudo, de investimento no seu futuro pessoal e profissional, mas que, pelo menos, nos deixa a pensar acerca das motivações de tal gente, as quais permanecem, como sempre, mergulhadas num nebuloso cinzentismo que vem norteando o rumo do ensino no nosso país, entregue a uma contabilidade de tostões, agora dir-se-ia de cêntimos, para se poder gastar noutro lado à tripa-forra, poupando nos farelos para se desperdiçar na farinha.
domingo, dezembro 03, 2006
A Maria Carriça
J
á é hábito, esta nossa maneira pacóvia de andarmos por aí a ver isto e aquilo nos países estrangeiros e abrirmos a boca de espanto, que nisto de habituações não há melhor do que aquelas que se dão ares de importância andarem pelas terras dos brasis a visitarem museus de língua portuguesa e ah, oh, que bonito, temos que ter um destes lá em Portugal, vai daí espalha-se os tarecos que andam aos trambolhões num museu que não interessa a ninguém por aqui e por ali para arranjar espaço para copiar o que se viu lá fora, vai um outro aos nortes europeus e ah, oh, mas que escolas tão eficientes, que professores tão dedicados, que isto, que aquilo, temos que copiar isto lá para Portugal, melhor seria levarem também os alunos, as famílias e o resto, e como resultado trata-se da saúde aos professores que vai havendo por cá, vai-se lá fora ver os comboios, ah, oh, que belos comboios, que rápidos, que modernos, temos que ter coisas destas a andar pelo Portugal fora, assim como assim sempre se ganha uns minutitos na viagem entre Lisboa e Porto e faz-se boa figura, de aeroportos o melhor é nem falar, que grandes, que esplêndidos, que confortáveis esses por onde se passa nas cidades europeias, americanas, asiáticas, ah, oh, precisamos de um destes e é já, nem que caia o Carmo e a Trindade havemos de construí-lo, nem que chovam canivetes, se ficarem mais uns quantos aleijados paciência, vamo-lhes aos bolsos de qualquer maneira, que não somos de discriminações, pois claro, tributamos mais uma coisita ou outra, pespegamo-lhes com mais um ou dois por cento nos impostos, já estão acostumados e nem dão pela diferença, agora dê por onde der temos que mostrar aos estrangeiros que por cá também podem encontrar coisas modernas, tal e qual as que têm ao pé de casa deles, nem mais nem menos, sem tirar nem pôr, quer dizer, se tirarmos mais um bocadinho não é por aí que o gato vai às filhós, ora essa, não há mas é maneira de irmos nós lá fora, por exemplo à terra dos teutões, e afirmarmos alto e bom som, com trejeitos de admiração, ah, oh, que belos governantes que por cá têm, não há maneira de os exportarem lá para a nossa terra, que os que lá temos não nos parecem nada que valha a pena sustentar?
