O
lhou para os sapatos antes sequer de se ver ao espelho, e notou que havia uma diferença entre eles, muito pequena, quase subtil, mas ainda assim uma diferença, um ligeiramente mais claro do que o outro, o que o levou a estranhar tal disparidade, como é que tal podia ser possível se sempre prestara a mesma, a mesmíssima atenção e os mesmos desvelos a ambos os elementos do par, estava-se mesmo a ver que ia ser apontado na rua, «olha, vai ali um com dois sapatos diferentes», «aquele vestiu-se a dormir», «não querem lá ver que o homem é anormal», «mais um daltónico para a banda», «desmazelado, é o que ele é», no emprego então o melhor é nem falar, «'tavas ceguinho quando acordaste hoje ou quê?», «pediste um sapato ao vizinho?», e outras piadas no género, assim é que não podia ser, ainda que saísse à rua despenteado vá lá que não vá, agora com sapatos diferentes é que não, ainda que fossem do mesmo par e quase não se notasse, mas ele notava, e é certo e sabido que muita gente se põe a olhar para os sapatos que se leva nos pés, como se tivessem alguma coisa que ver com isso, criticam a cor das meias, apreciam se dão com a camisa, com a gravata, com a cor dos olhos, do cabelo, até com o tom da pele, bolas, bolas, bolas, não lhe apetecia nada descalçar-se outra vez, agora ia ter que mudar de meias, de camisa, de gravata, vestir outro fato, apertar as calças com outro cinto, se calhar até tinha que levar outro relógio, que há gente que nota tudo, tudo e mais alguma coisa, se calhar não têm mais nada que fazer na vida senão pôr-se a observar o que os outros levam vestido, ou calçado, ou enfiado no pulso, ou seja lá onde for, desde que esteja à vista, mas a que diabo é que se devia aquela mínima diferença entre os dois pés, se bem que mínima era até exagero, da última vez que engraxara os sapatos usara a pomada da mesma bisnaga, escovara-os a ambos as mesmas trinta vezes, da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, de cima para baixo e de baixo para cima, para trás e para a frente, dos lados e em toda a volta, por mais que pensasse não conseguia chegar a nenhuma conclusão, isto era grave, muito grave, podia custar-lhe um dia de trabalho, uma semana, um mês, uma data de clientes, arriscava-se a perder o emprego, tudo por causa de uma quase imperceptível dissemelhança entre um sapato do pé direito e um sapato do pé esquerdo, que se danassem os pés, os sapatos, o chefe, o emprego, os clientes, hoje dava parte de doente e ficava de cama e pronto.