D
a cabina telefónica situada a meio da avenida conseguia ver a janela iluminada do escritório, tinha sido por isso mesmo que a escolhera, e quando discou o número sabia de antemão que já lá havia gente, que o outro já lá estava, uma rotina nocturna estudada há já algum tempo, para que se cumprisse a sequência de acontecimentos prevista ao pormenor, para que nada falhasse, para que o plano se cumprisse rigorosamente, como se o cronometrasse uma entidade superior, distante, omnisciente, numa precisão matemática, quando todos os termos confluem para um inequívoco resultado, uma inexorável equação recheada de incógnitas que acabam por se ir revelando aos poucos e poucos e de onde o mistério se vai desvanecendo até nada restar senão um resultado perfeito, incontestável, a beleza de tudo reside no processo, que vai deixando atrás de si os resquícios de um raciocínio lógico cruel, frio, impiedoso.
Marcou a sucessão de algarismos há muito decorada e esperou até que a voz lhe surgisse no auscultador antes de começar a enumerar os nomes:
- Estou? – ouviu.
- Margarida Freire, Lúcia Freire, José Manuel Liberato.
- Quem fala? – Repetiu a voz.
- Margarida Freire, Lúcia Freire, José Manuel Liberato – repetiu.
- Mas quem é? O que deseja? – A voz hesitava.
- Lembras-te destes nomes? – Perguntou.
- Que nomes? Quem fala?
- Os nomes daqueles que mataste – sentenciou friamente.
- Mas quem fala? Quem é o senhor? Não conheço essas pessoas. Nunca ouvi esses nomes. Vou desligar.
Mas o clique habitual de fim de ligação não se fez ouvir, pairando no ar a respiração entrecortada de ambos os interlocutores, numa sede de palavras, as que se poderiam suceder, as que teriam que vir a seguir.
- Ana Maria Araújo Cunha, José Raposo Cunha.
- Esses são os nomes do meu filho e da minha neta. Como é que os conhece? Mas quem é o senhor? O que é que quer? – A voz tornara-se ansiosa.
- Esses nomes que acabaste de ouvir, agora mesmo, o do teu filho e o da tua neta, podes riscá-los. Já não existem.
- Como? O que é que quer dizer com isso? Já não existem como? – A voz tremia na outra extremidade do fio.
- Morreram. Foram mortos. Tal como tu fizeste aos primeiros nomes que ouviste.
- O quê? O que é que está a dizer? Não percebo.
- Percebes, sim. – O tom era gélido, como o são todos os marcados pela vingança.
- Mataste-os há 35 anos, na tua cadeia, pide de merda.
Um soluço surgiu através do auscultador.
- Agora sou eu que te faço pagar as vidas que tiraste. Agora sou eu que mato. Que te matei um filho e uma neta. Que te irei matar a tua filha, e os teus outros netos. Até não restar nada do teu sangue nesta terra.
- Mas o que diz? O meu filho? A minha filha? Os meus netos? Mas quem fala? O que é que lhes fez? – Era um tom de desespero que gemia pelo telefone.
- Matei-os. Não sofreram muito. Ao contrário daqueles que assassinaste.
- O que diz? Eu não matei ninguém.
- Claro que não, claro que não. Mais inocente do que tu não pode haver. Nunca fizeste mal a uma mosca, pois não? Nem nunca foste inspector da PIDE. Nem torturaste ninguém. Foste um santinho a vida inteira. Mas eu sei. Conheci-te aqui há uns anos. Foste-me apresentado. Tu e os teus aparelhos de tortura.
- Não é verdade. Eu nunca torturei ninguém.
- Pois não. – A frieza da sua voz era agora irónica, quase metálica. – Nem deste cabo da vida a uma data de gente.
- Eu? E quem é o senhor? De onde é que me conhece? O que fez à minha neta? E ao meu filho?
- Já te disse: matei-os. E nunca hás-de descobrir onde os pus. Vais procurá-los o resto da tua vida miserável, como me fizeste procurar aquelas que eu amava. E o meu filho, que nunca chegou a nascer. Matar uma grávida! Só mesmo um filho da puta como tu.
- Isso não é verdade. Eu nunca matei ninguém. Muito menos mulheres grávidas.
- Claro que não. Apenas lhes deste sumiço. E a mim, grande sacana? Já nem te lembras do que me fizeste, pois não? Deste cabo de tantos que já nem te lembras de quem.
Este post é, afinal, apenas uma ideia, um apontamento para uma história mais longa que talvez o tempo, que me falta agora, possa vir a permitir-me desenvolver mais tarde.