Em tempos já recuados, quando me obrigaram a fazer a instrução militar, houve um capitão cadete, que era capitão e não sei se alguma vez tinha sido cadete, foi um lapso de escrita, o cadete devia ter ido com maiúscula e não foi, daqui se vê que às vezes uma letra ser diferente pode gerar equívocos, pois esse tal senhor disse à multidão de cabeças rapadas (que nesse estado se encontravam por ser regra mandatória da instituição e não por pretenderem tomar qualquer posição ideológica, que na altura, se pudessem, aposto que seria abolir por completo o serviço militar obrigatório) que os livros por onde eles tinham estudado já os tinha rasgado há muito, e nesse eles incluía-me eu, bem entendido, se bem que gostava de ter visto esse senhor a rasgar o curso de linguística geral do Saussurre, que lhe havia de dar bom trabalho, para já não falar do Coraminas, acto que seria grande pecado, que rasgar um tão valioso auxiliar de estudo só mesmo para gente que não dá o devido valor às coisas, aos livros, por assim dizer, também com a brutidade que se aprende na tropa para que é que hão-de servir os livros, pergunto eu, para muito, dir-me-ão outros, por exemplo para estudar estratégia militar, balística, e outras utilidades assim no género destas, como sejam analisar o comportamento do inimigo, que era, por norma, o vizinho aqui do lado, de onde nunca veio nem bom vento nem bom casamento, que se entrassem por aqui dentro de armas na mão era um vê-se-te-avias, um pernas-para-que-te-quero, se bem que fugir nessa altura só para o mar, e com a frota que temos a levar um desbaste dos antigos por causa das europas só se fosse a nado, para onde é que seria curioso saber, se calhar para as Berlengas ou para as Desertas, que aí conseguir arribar é que havia de ser o bom e o bonito, nem para chegar a meio do caminho haviam de dar o fôlego e as forças, de qualquer modo o inimigo já entrou pela porta grande com malas e bagagens, e nós nem piámos, até agradecemos e fomos lá comprar-lhes tudo e mais alguma coisa que eles têm para nos vender, para já nem falar dos terrenos que lhes demos de mão beijada, dos prédios vendidos por tuta e meia, um dia destes, sem darmos por nada, acordamos a falar estrangeiro, depois de termos vendido a língua por meia dúzia de tostões, que já não existem na verdade mas persistem na memória linguística, o mesmo se passa com os contos de reis, que agora já não passam disso mesmo, de contos, ficções mais ou menos nostálgicas de quando esta terra ainda valia alguma coisa que se visse, na altura ao menos sabia-se que quem não era por nós certamente contra nós estaria, hoje em dia assobia-se alegremente para o ar a ignorância disto tudo, razão porventura teria o tal capitão cadete, que mais vale rasgar a livralhada toda porque mais tarde ou mais cedo já ninguém os sabe ler e, para estarem a ocupar lugar em quaisquer prateleiras, o melhor é mesmo deitá-los fora e deixar lugar para os bibelôs importados da China ou de outro sítio qualquer.