A abécula é um dos instituídos apodos mais utilizados pelo português, se bem que tenha caído em desuso, quiçá por força de algum lobby das abéculas, que já não era a primeira vez, nem será a última, que um qualquer termo se viu ostracizado devido a estranhas pressões sobre si exercidas até se vaporizar por completo, não fossem os dicionários constituírem um repositório de memórias do que se vai olvidando ao longo dos tempos, valham-nos projectos como este dicionário de calão, que se tem ido enriquecendo muito à custa dos curiosos que a ele acedem, iniciativa, diga-se, por demais interessante e enriquecedora da mais vulgarizada arma de defesa e ataque das gentes, o insulto, que surge da forma mais natural e a que a nossa língua devota uma particular afeição, para já não dizer carinho, e de que somos, em geral, ferrenhos adeptos; este dicionário, para abécula, apresenta a sinonímia cretino, imbecil, burro, besta, calhau, cavalgadura, alimária, estafermo, este último uma especial invenção de tempos medievos que o português logo transmudou a seu jeito para um qualquer dos termos acima, com a sua já proverbial capacidade inventiva e de inovações polissémicas habituais, e uma especial atenção a um fantasioso imaginário que, à míngua de fadas, gnomos, duendes e quejandos, inventou gambozinos com que ocupar tempos de ócio mais ou menos bem preenchidos com outro tipo de preocupações culturais, como jogar à bisca.
O mais provável é que, em algum período da sua vida, todo o indivíduo tenha sido abécula, pelo menos do ponto de vista de algum amigo, vizinho ou simplesmente desconhecido, que o termo é abrangente e suficientemente aberto na sua significância para nele caberem as mais variadas interpretações, tal como acontece em muitos outros casos análogos, como o cara-de-cu (à paisana ou com qualquer outra indumentária), o larilas, o melro (que agora me recorda a anedota, que há-de ficar para outra ocasião), o parvo (que nasceu pequeno e que depois foi aumentando até dar para tudo e mais alguma coisa, sobretudo para todas as ocasiões), isto para além daquela tendência para o meio-termo tão ao gosto dos portugueses, no género não aquece nem arrefere, muito embora seja mais do agrado geral o não fazer a ponta de um corno, que é como quem diz andar a coçar os tomates, não fazer nenhum, preferências estas que se reflectem, por exemplo, na maneira como identificamos qualquer coisa de forma precisa com a expressão nem mais nem menos, numa clara tendência para a verbosidade, que as palavras não se pagam nem estão sujeitas a imposto, pelo menos por enquanto, que sabe-se lá o que passa pela cabeça dessa gente das economias, que vindo de uma abécula qualquer bem que se pode esperar tudo e mais alguma coisa.