Tinha que acontecer. Mais dia menos dia. Era tiro e queda. Com tanta distracção, nem era para mais. A toupeira perdeu os óculos. O que, diga-se, era um grande problema. Cegueta como era, agora é que não via um metro à frente do nariz. Nada de nada. Se lhe passasse um elefante ao pé, ficava a pensar que diabo seria aquilo. Porventura um comboio ou um camião, quem sabe o que vai na imaginação das toupeiras, ainda por cima ceguetas. E para mais, depois de perder os óculos, uma toupeira fica com o juízo meio avariado, para já não dizer nada acerca do apetite, porque uma toupeira sem óculos é certo e sabido que fica com um apetite que nunca mais acaba, até é capaz de comer uma melancia inteira, duas dúzias de iogurtes, uma saladeira cheia de alface e tomate, uma terrina, das grandes, de sopa de cenoura, tudo bem acompanhado com sumo de laranja natural, que nisso as toupeiras são bastante exigentes. Ficam a ver mal mas o paladar torna-se muito apurado. Olá se não fica. De mais a mais, é sabido que a falta de vista leva a um paladar apuradíssimo.
O pior, o mais difícil nisto tudo, era dar com as coisas na cozinha. Sem óculos, como é que uma toupeira há-de dar com o frigorífico, para já não dizer nada acerca da loiça? O mais certo era confundir tudo e sair-se com uma salada de fruta em vez de salada de alface, com uma sopa de melancia e sumo de iogurte. É que as toupeiras são um tanto ou quanto orgulhosas. Demasiado orgulhosas para pedir ajuda seja a quem for. E teimosas. Aqui à parte, só para nós, que elas não nos ouvem, são também um bocado duras de ouvido. Quando aparecem no jardim e uma pessoa diz para elas se irem embora é o mesmo que nada. Das duas uma: ou não ouvem, ou fingem que não ouvem. Se calhar é até fingimento, que as toupeiras gostam de fingir por tudo e por nada, fazem de conta que não é com elas.
- Ah, era comigo, não sabia, pensava que estavam a falar ali com o cachorro do vizinho, que é mal educado e ladra a toda a gente, no outro dia até ameaçou que me dava uma dentada se pusesse a cabeça de fora do buraco. Estão a ver o descaramento do bicho?
- Não senhora, era consigo, era, e não faça de conta que estava distraída ou qualquer coisa no género. Eu cá não acredito nesses seus ares superiores, de que não é da sua conta. É, sim, senhora.
Mas sem óculos uma toupeira sai de casa e depois já não consegue dar com o buraco, mete-se no dos vizinhos, que lhe atiram com um molho de rabanetes à cabeça, podres, está claro, qual era a toupeira que ia atirar comida fresca pela porta fora? Nem pensar! São umas unhas de fome. Está reconhecido. E internacionalmente. Ainda no outro dia as Nações Unidas fizeram uma declaração a condenarem precisamente as toupeiras por causa de serem forretas. Por isso não é de admirar que não tenham um par de óculos de reserva para as emergências. Qual quê. Gastar dinheiro em dois pares de óculos? Um chega, e é uma sorte.
Meu dito, meu feito. O pior foram as consequências. Para além de ter levado com uma data de legumes podres em cima por se ter enganado no buraco uma data de vezes, ainda teve que dormir ao relento, porque não houve uma vizinha que fosse que lhe indicasse o caminho de casa. É que, tudo somado, as toupeiras são tidas por muito pouco simpáticas umas para as outras. Quais ajudas, qual carapuça. Nada. Nem sequer uma palavrinha amiga.
- Cá se fazem, cá se pagam -, diziam as vizinhas. - Quem te manda andares para aí a vadiar e ainda por cima perderes os óculos?
É para se ver no que dá ter a mania de ser toupeira. E distraída, ainda por cima. Toupeira que se preze não perde os óculos em lado nenhum.