Ele chorou. Ela chorava. Não se conheciam, nem sabiam das lágrimas de um e de outra, como se vivessem de costas voltadas, e afinal era o mundo que lhes voltava as costas a eles. Mário, chamemos-lhe assim, sabia que aquele trabalho lhe levava o fôlego segundo após segundo, numa ânsia que tudo engole sem sequer saborear, como um cão faminto a quem se oferece um bife do lombo, como a uma dor a quem deram um corpo para se distender. A ela, Sara, um nome judaico, de um sofrimento antigo, bíblico, que não conhecerá mais desgraças porque as já tem de sobra, os filhos que a chamam e a quem não tem vontade de acudir, um homem que nunca foi marido mas de quem foi amante até se esquecer de que para ela mais não era do que um estranho que lhe sabia ler o corpo mas não a alma. Nunca se encontraram, embora se tenham cruzado dia após dia no comboio que levava gente cheia de mais um dia de tristeza. Terão reparado um no outro, quem sabe, mas nunca se viram, sem saber sequer que teriam vivido um para o outro se uma vez, ao menos uma única vez, os olhos tivessem dito sou eu, és tu, somos nós que aqui estamos.
Dizem que o destino tem destas coisas, que nos prega partidas como se vivesse num entrudo perpétuo, mas isso são histórias que se contam, para passar a pobreza das horas que deixamos por perdidas quando nunca afinal foram encontradas.
Mário morreu há pouco tempo. Fartou-se. Do emprego, das contas por pagar, da pensão que o tribunal exigira para uma mulher a quem nunca se acostumara a amar, e que lhe telefonava todos os dias a queixar-se de que o novo marido lhe batia, que a filha já não ia à escola, que se drogava, que o dinheiro não chegava, que nunca o devia ter deixado. Mas era tarde, se calhar nunca chegara a ser cedo. No dia do funeral Sara chorou. Sem saber bem porquê, talvez pela sina do nome que levava consigo.