...agora ia tudo fiar mais fino, o novo homem do leme era rapaz de poucas brincadeiras, de não dar confiança a este ou àquele...
N a Filarmónica Triunfo havia por fim nova presidência, que, apesar das vozes abespinhadas dos clarinetes, dos protestos do homem do bombo e do refilanço das caixas, os safofones lá tinham levado a deles avante, contraltos e tenores unidos numa só voz contra a batuta do maestro até então dirigente da banda, se bem que lá no fundo, lá bem no fundo, e a fazerem-se ouvir de maneira a não haver cá dúvidas, que a voz grossa acaba sempre por sobrepor-se, ou pelos menos é reconhecida pelas suas tentativas, as tubas reclamavam, desde sempre, maior protagonismo e uma clara tomada de posição na escolha das marchas, que, para elas, deviam ser as do John Philip Sousa, e não aquelas coisitas fúnebres sem graça nenhuma ou aqueles trinados de clarinetes e trompetes que mais pareciam barroquices de chacha, tanto mais que se avizinhavam as festas da paróquia, e havia que considerar a competição com as bandas das outras freguesias e, de entre elas, a Ordem e Progresso, sua velha rival de sempre, não fossem já antes conhecidas aquelas querelas por descambarem sempre em lutas campais, ao ponto de uma ser a banda dos gatos e a outra a banda dos cães.
Ah, mas agora ia tudo fiar mais fino, o novo homem do leme era rapaz de poucas brincadeiras, de não dar confiança a este ou àquele por dá-cá-aquela-palha, era o que parecia, que uma pessoa não pode conhecer assim tão bem alguém ao ponto de pôr as mãos no fogo por outro, há quem diga que sim, mas à última hora nicles, batatinhas, dão às de vila-diogo, que têm a sopa ao lume, que se esqueceram de pagar a conta da luz, que a mulher estava à espera atrás da porta com o rolo da massa, que isto e aquilo, que tinham perdido as luvas de amianto, mais vale prevenir do que remediar, ao menos sempre sai mais barato, nestas coisas mais vale andar de pé atrás do que cair de costas sem se saber ao certo se o parceiro de trás está mesmo lá para aparar os golpes e suavizar a queda, no entanto o homem era sério, contavam-se grandes histórias acerca da sua seriedade, o pior eram os amigos, que nem sempre os amigos nos levam por bons caminhos, já lá vai o tempo da máxima sempre por bom caminho soma e segue, é que há desvios, entroncamentos, cruzamentos, becos mal assinalados, ladeiras um tanto ou quanto íngremes, calçadas em mau estado, escadinhas dos terramotos ou com mais ou menos degraus, ainda se ia mas era dar ao cunhal das bolas e depois não havia meio de voltar a dar com o caminho, sem um mapa em condições é que ninguém é capaz de se orientar, e também é preciso ter condições de confiar nos fazedores de mapas, sabe-se lá onde é que eles vão inventar aquelas escalas todas, as linhas de água, os marcos geodésicos, as azinhagas disto e daquilo, de repente uma pessoa dá por ela e já está mas é metida num bairro labiríntico até ao pescoço, salvo seja, que quando uma pessoa está metida num bairro é pescoço, cabeça, tronco e membros, tudo junto, mas o discurso de vitória soava a coisa de opereta barata, vou dar música ao povo, a música que ele sempre desejou, a todo o povo, até aos surdos, e o homem do bombo a pensar com os seus botões que os surdos a única coisa que sentiam era, quanto muito, as maçanetadas que ele enfiava na pele esticada do seu instrumento com toda a força que Deus lhe dera, e os dos clarinetes que só as suas notas é que chegavam ao céu e até faziam Nossa Senhora soltar as suas lágrimas, melhores e mais abundantes do que as que vertera pelo próprio filho, estava-se mesmo a ver que a harmonia não havia de durar muito, era só uma questão de esperar pelo próximo concerto e já se ia ver que a música ia sair desafinada, o povo todo à espera de uma orquestração à moda antiga e o que lhes ia sair na rifa era um desconchavo completo, que apesar da vigilância dos saxofones as trompetes já se tinham preparado para roubar a batuta ao mestre e raios os partissem se não a partissem aos bocadinhos antes que se ficasse a rir. Queriam música, ai iam tê-la, iam, iam. Iam, sim senhor.