O Fragoso criou uma seita, e por que razão não havia de a ter criado, perguntar-se-á com alguma legitimidade, num país livre e democrático toda a gente tem a legitimidade de criar o que bem entender, a isso se chama liberdade criadora, há quem pinte quadros, quem faça versos, quem vá por aí de máquina fotográfica em punho a tentar captar num instante o que leva mais do que esse momento, há quem dê marteladas em pedra, quem recorte chapas de ferro, quem as solde, quem as funda, quem faça moldes e depois deite lá para dentro metal derretido, quem desenhe bonecos, quem escreva prosas, quem faça de conta que não é a pessoa que realmente é, quem disserte sobre isto e aquilo, e há quem crie seitas, com menor ou maior sucesso, e obtendo uma significativa ou ínfima adesão por parte dos outros, que é o que também acontece aos objectos artísticos, sejam eles feitos de que matéria forem, haja ou não críticos nos jornais, nas revistas, que vivem a falar daquilo que não é seu, que nunca foi, nem será.
Mas o Fragoso era tipo de olhão, aquilo podia transformar-se numa mina, que ressentimentos é o que mais se vê por aí, e já agora podia utilizá-los em seu proveito, tostão daqui, tostão dali, bem, agora eram cêntimos, mas ia dar ao mesmo, tanto fazia, a conta bancária já estava aberta, só faltava mesmo era o recheio, e logo se via onde é que aquilo podia ir parar, quem sabe se não era a um off-shore, de preferência no estrangeiro, que na Madeira era perto demais e podia dar para o torto, qualquer dia acabavam com a mama e lá teria que declarar tudo às Finanças, não, isso não, sabe-se lá o que é que o novo governo ia fazer, e se o homem lá do sítio morre vai-se tudo quanto Marta fiou, e se a Marta anda a fiar não é para depois ir dar de comer a gulosos, não senhor, que estes bancos não são de confiança, um dia está lá o dinheirinho no seu sossego e no outro já está nos jornais, o melhor era jogar mesmo pelo seguro, se bem que para já, para já, ainda não valia a pena estar com tais apoquentamentos, tinha era que publicitar a coisa, angariar potenciais descontentes, fazer uma pesquisa de mercado para ver por onde é que podia agarrá-los, se não fosse por uma coisa seria por outra, se há mil e uma maneiras de cozinhar bacalhau também as há para convencer as pessoas, basta uma palavrinha bem metida num determinado sítio, outra disfarçadamente a escorregar de ouvido em ouvido e estava o caminho aberto, tinha era que saber onde fazer passar a mensagem, o melhor seria a Internet, o que é preciso é saber aproveitar estas novas tecnologias, iria começar com uma página e um blogue e depois logo se veria, se fosse preciso mandava fazer uma camisolas, umas tee-shirts, uns bonés, e mais tarde se veria se era ou não preciso desenvolver este tipo de merchandising, o que tinha mesmo que inventar era uma boa meia dúzia de frases, de slogans, como se costuma dizer, daqueles bem sonantes, melhores do que os dos políticos, que não têm imaginação nenhuma para essas coisas, encomendam de fora, do Brasil, daqui e dali, e na maior parte das vezes sem resultados que se vejam, mas num país como este há que ir na onda da credulidade das gentes, e com esta coisa das proibições de tabaco nos restaurantes, nas cervejarias, nos locais de trabalho, nas discotecas, se calhar até era bem visto se se metesse a angariar clientela insatisfeita com estas manias do proibido fumar por todo o lado, porventura seria capaz de arranjar aí uma legião de fumadores enraivecidos, ou então virava-se para a moda de bater na igreja e nos padres e nos bispos e no papa e na religião toda, mas já tinha ouvido falar em associações de ateus, por isso o melhor era deixar essa de parte, o que não faltam por aí são espertalhões cheios de ideias.
E então decidiu-se, ia fundar uma seita para mulheres, para todas, sem excepção, uma espécie de coisa privada, sem homens, a não ser que houvesse pedidos específicos de homens para ocasiões especiais, despedidas de solteiras, ou coisa no género, que é um mercado interessante nos dias que correm, o pior é ele ser homem, mas isso não era coisa que não se ultrapassasse, criava uma identidade falsa, assumia um nome feminino, não dava a cara, ficava completamente na sombra, e assim escusava de correr riscos, com um apartado nos correios e um nome fingido na Internet aquilo ia resultar, tinha a certeza, até era bem melhor que não se soubesse quem ele era, e se a coisa não pegasse pronto, escusava de estar metido ao barulho, hoje em dia as mulheres estavam cheias de dinheiro, mais do que nunca, bastava vê-las aos magotes nas lojas, nos bancos, nas escolas, nas secretarias, em todo o lado, até na tropa, no parlamento, nas câmaras, no governo, faltava-lhes a igreja, mas a coisa devia estar por pouco, mais tarde ou mais cedo lá haviam de chegar.
Ao fim de um ano aquilo funcionava já em pleno, tinha para cima de seis mil aderentes, organizava encontros, conferências, seminários, jantares, convívios de todos os géneros, editava uma revista por assinatura, a página na Internet ia sobre rodas, a venda de camisolas e tee-shirts também, tinha até introduzido uma linha de malas e outra de chapéus de chuva, se bem que esta estava limitada à estação invernosa, o blogue ia igualmente de vento em popa, tinha contratado mais duas pessoas para escrever textos, tudo através da Internet, sem contactos pessoais, criara um estilo para os seus que era bastante engenhoso, não era difícil escrever para mulheres como se fosse uma mulher, tinha talento, esse talento específico para se colocar no lugar delas e imaginar os seus problemas, o que elas gostariam de ler, uma escrita feminina, no fundo, sem grandes artifícios, indo directamente ao assunto, sem nunca esquecer o lado sentimental, e nem muito menos o aspecto sexual, a conta bancária engordava a olhos vistos, choviam contribuições de todo o lado e a toda a hora, tudo em dinheiro vivo, nada de cheques nem cartões nem vales, nada disso, conseguira uns contactos no estrangeiro e era para lá que encaminhava a maior parte das verbas, investira em bolsa e tivera a sorte de aumentar ainda mais o pecúlio, e chegava a especular com algum risco no estrangeiro.
O negócio dava, e de que maneira. Um dia teve o azar de se apaixonar por uma leitora e associada, que lhe escrevia umas coisas sensaboronas mas que o deixaram completamente abananado, deu por si a fazer a asneira de lhe endereçar alguns textos que escrevia de propósito para ela, mais tarde marcou-lhe um encontro, jantaram, ele engraçou com ela, frequentaram bares, discotecas, sem desenvolvimentos posteriores mais a sério, umas duas semanas mais tarde deu por si a contar-lhe tintim-por-tintim a negociata toda, caiu que nem um patinho, tanta esperteza para nada, quando chegaram a vias de facto descobriu que a leitora era um leitor, pô-lo fora da cama, do quarto, da casa, o leitor fez um berreiro que meteu vizinhança e ia metendo polícia, ameaçou que contava tudo, teve que pagar para o manter calado e não foi pouco, que semana sim, semana sim chovia mais uma chantagenzita e lá pingavam mais uns milhares, ao fim de dois meses já ia em milhões, o Fragoso já não sabia para onde virar-se, fugiu para o Brasil, e as últimas que soube dele eram que estava metido numa banca de jogo do bicho. O homem não aprendia mesmo.