...não havia outro remédio senão ir para eleições, coisa que muitos reclamavam há algum tempo...
Na Sociedade Filantrópica Abelardo Onofre rebentou a bomba. O presidente bateu com a porta e agora não havia outro remédio senão ir para eleições, coisa que muitos reclamavam há algum tempo com a palavra de ordem eleições já, eleições já, com o presidente de candeias às avessas com o doutor Carraça, um veterinário de profissão recém-convertido às contabilidades e tesoureiro da instituição, que, nas palavras do líder, andava de conluio com o senhor Rogério, o secretário, afirmando igualmente que aquilo não era a da Joana, que ainda não tinham chegado à Madeira, e outras preciosidades do mesmo calibre, e os pobres vogais de Herodes para Pilatos entre um e os outros dois, a tentarem deitar água na fervura mas qual quê, o caldo há muito que andava entornado e já não havia remédio que valesse a tais disenterias.
Os sócios reclamavam, andavam a pagar quotas desde que a fundação do mesmo nome passara a sociedade devido à ausência de fundos por má administração dos investimentos e respectivos dividendos e, para continuar a exercer as suas beneméritas actividades sociais, não tinha havido outro remédio, com a contribuição de todos o barco lá se foi aguentando à tona, umas vezes guinando mais para bombordo outras para estibordo mas mantendo sempre a proa apontada ao alvo, que eram cerca de três centenas de famílias necessitadas a quem prestavam auxílio a diversos níveis, se bem que entre os beneficiários também se podia contar com a dona Rosinha, a funcionária da tesouraria, a menina Ausenda e a menina Lurdes, prestadoras de serviços de secretariado, e o senhor Fragoso, uma espécie de vai-a-todas lá no sítio, desde os cuidados de electricista à jardinagem e à portaria, para já não falar da dona Neves do bar e da dona Celeste da limpeza, sem esquecer o senhor Celestino, o motorista - e mecânico - dos dois únicos veículos da instituição, a saber, o Audi do presidente e a carrinha Ford Transit do transporte dos apoios familiares, que iam desde algumas refeições até livros escolares e recolha e distribuição das crianças pelas escolas que frequentavam e respectiva devolução ao fim do dia, o que, diga-se de passagem, era foco de frequentes reclamações por parte do senhor presidente devido ao ocasional impedimento do motorista, ocupado nas tarefas filantrópicas da instituição e não na condução da sua augusta figura.
Aparentemente havia ali acusações de desvio de fundos, de apropriação indevida de verbas não declaradas, e histórias de «off-shores», o que devia ser a razão de o presidente se referir ao facto de ainda não terem chegado à Madeira, se calhar o que tinha em mente era ir lá espreitar se havia dinheiros da instituição por lá espalhados nas tais «off-shores», quem sabe, certo, certo, é que já lá tinha ido em serviço aí umas quatro ou cinco vezes, com tudo pago, obviamente, e na companhia da menina Ausenda, de quem se dizia ser fresca que nem uma alface, devia ser pelas suas origens lisboetas, isso da alface, que é o que se diz das gentes oriundas da capital, embora não fosse lá grande apreciadora de saladas.
- Isto não pode continuar assim, neste regabofe sem eira nem beira -, afirmava o doutor Sequeira, um dos vogais da direcção.
- Tem toda a razão, isto já passa das medidas – concordava o senhor Pereira, colega das mesmas andanças.
- A gente já não sabe a quantas anda. Um dia é contas dos restaurantes mais caros da cidade, no outro são bilhetes na ópera, assinaturas inteiras de temporada – comprovava, solícito, o senhor Romeu, construtor civil de profissão, conquanto se ignorasse se alguma vez tinha construído fosse o que fosse a não ser uma carreira na instituição que vinha dos tempos em que era aprendiz de carpinteiro e andara a montar os estores que agora já caíam de podres. – Isto para já nem falar nos alugueres de vivendas no Algarve para a família inteira. Deviam era ter vergonha na cara – rematou.
É preciso que se diga que havia ali invejas, umas mais às claras outras nem por isso, e eram de longa data as óbvias intenções do senhor Romeu em subir ao lugar mais alto da hierarquia da instituição, uma espécie de bofetada de luva branca no doutor Carraça, que isto de bofetadas devem ser sempre dadas com luva branca e nunca com luva preta, é o que mandam as regras, andavam de candeias às avessas desde que o dito veterinário dera um xarope ao caniche da mulher que o mandara desta para a melhor, não sem que primeiro desatasse a empestar a casa inteira de porcaria até se desfazer na dita, provocando um tal desgosto que ainda hoje a mulher mencionava dia sim, dia sim, e que nunca fora capaz de perdoar-lhe.
- Eleições, já -, reclamavam os sócios pagantes reunidos em Assembleia Geral, sob a batuta do doutor Rodrigues, advogado das causas justas que se vira metido numa camisa de sete varas sem ser capaz de dar com os respectivos botões, com quem aliás falava amiúde única e exclusivamente para se arrepender da hora em que aceitara tal incumbência.
- Cambada de ingratos e de aldrabões. No que eu me fui meter... Tudo p’rá rua, e já! – Barafustava o causídico em família a todas as refeições, ao ponto de mulher e filhos já conhecerem a cantilena de cor e salteado e se porem logo a recitá-la no momento em que se sentavam à mesa, para desgosto do marido e pai, que assim se via desapossado dos seus direitos de autor e do prazer que lhe dava pronunciar tais sentenças, já que nas outras estava sempre sujeito ao arbítrio dos juízes que lhe calhavam em sorte.
Não havia outro remédio. Tinham que ir para eleições. Quando se constituíram listas, surgiram logo três: uma encabeçada pelo inevitável senhor Romeu, outra pelo doutor Carraça, e uma terceira, inusitada, chefiada por um tal Aparício, que toda a gente conhecia por estar constantemente a dizer mal de tudo e de todos, o que dava a ideia que a campanha ia ser renhida, recheada de insultos e incidentes, de alusões nem sempre bem intencionadas, para resumir, uma nojeira. Tomaram-se partidos, houve algumas cabeças perdidas e outras partidas, a menina Ausenda foi apanhada a desoras na secretaria com o senhor Celestino, facto que durante dois ou três dias abafou por completo os habituais toma-lá-dá-cá entre os concorrentes, às tantas descobriu-se que havia um gasto excessivo de produtos de limpeza e a investigação acusou a dona Celeste, que disse que não senhor, que não sabia de nada, que as compras dos produtos era o senhor Rogério quem as fazia, o que levou a aprofundar o inquérito e o fio da meada acabou por conduzir a uma rede de supermercados de bairro com os tais produtos à venda ainda com o carimbo da sociedade, os quais estavam no nome do genro do secretário, foi um escândalo dos grandes, caiu o Carmo e a Trindade, meteu ameaças de judiciária e tudo, e só não foi para a frente a denúncia por causa dos jornais, do bom nome da sociedade que ia por água abaixo se uma coisa daquelas caísse no domínio público.
Uma rádio local resolveu convidar todos os cabeças de lista para um programa e foi um vê-se-te-avias para reunir documentos, as equipas das listas trabalharam até de madrugada, ninguém queria passar por ignorante e todos pretendiam descobrir os podres dos adversários, de maneira que à hora aprazada não havia sócio que não estivesse de ouvido colado à telefonia. Qual não foi o espanto quando se aperceberam de que o tal programa era sobre religião, de uma tal Igreja da Contravenção, houve um dito sacerdote que se pôs para lá a fazer publicidade a dízimos e a benefícios espirituais, lá ao fundo só se ouvia resmungar os candidatos, especialmente o Aparício, que era contra as igrejas todas, contra os dízimos e os benefícios espirituais, contra as rádios e contra os outros concorrentes, só se salvava a dona Rosinha, porque sabia tirar cafés, e pouco mais, se bem que não deixou de ser perceptível uma breve piscar de olho sob a forma de subreptício elogio à menina Ausenda. Foi uma decepção a toda a linha. No entanto, no dia seguinte a conversa entre os sócios incidia exclusivamente em quem tinha ganho o debate.
- Mas qual debate, aquilo foi alguma vez um debate? – Questionava a dona Conceição da papelaria a quatro ou cinco clientes que por acaso também eram sócios como ela. – Ninguém ali discutiu ideias, ninguém apresentou propostas, só falaram de religião e de tricas e acabaram a dizer mal um dos outros.
- Aquele Aparício é um ordinário. – Sentenciava a dona Maria José, abespinhada por ter dado pelas alusões à menina Ausenda. – O que ele quer sei eu! A armar-se em descarado com aquela flausina sem vergonha...
- Não concordo mesmo nada. – Contestou a senhora dona Luísa, comadre do senhor Romeu. – Eu acho que o senhor Romeu esteve até muito bem.
- É, nós sabemos onde é que queres chegar. – Retorquiu-lhe meio de lado a dona Conceição. – Mas daqui não levas nada. – Continuou num aparte.
Conversas do mesmo teor iam enriquecendo o quotidiano dos mais de mil e trezentos sócios da confraria, pondo de parte todas as costumeiras quadrilhices com que ia preenchendo as respectivas vidas sociais.
No dia de eleições então foi a confusão total. Não havia mesas de voto constituídas, o senhor Rodrigues, a quem cabia formar a comissão eleitoral, fora de férias para o Brasil e ainda não regressara, a menina Lurdes não sabia das listas de sócios nem quem tinha as quotas em dia, estando por isso habilitado a votar, os sócios amontoavam-se pelas salas, pelo pátio de entrada e pelos passeios à volta, houve reboliço total, pancadaria da antiga, chamou-se a polícia e acabou tudo nos calabouços. A Judiciária e o Ministério Público tomaram o assunto em mãos, escarafuncharam daqui e dali, foram feitas buscas domiciliárias a casa dos elementos da ex-direcção, em casa dos empregados, a menina Lurdes tomou-se de amores pelo agente Pragal, a fase de inquérito demorou ano e meio, as famílias beneficiárias tornaram-se ex-beneficiárias e viraram-se para a Igreja da Contravenção, recebem dos dízimos dos crentes e pagam daí os respectivos dez por cento, pespegaram com a vida do ex-presidente nos jornais, as viagens à Madeira, as férias no Algarve e nas Caraíbas, as idas ao casino no Audi da sociedade, ficou a saber-se que a clínica veterinária do doutor Carraça afinal só servia para praticar a eutanásia em cães e outra bicharada, de que até a câmara municipal era cliente para os animais abandonados, a construtora do senhor Romeu não passava de uma frente para uma organização de contrabando de trabalhadores estrangeiros, a dona Celeste afinal chamava-se Liuba e era moldava e não tinha papéis de permanência no país, a dona Rosinha roubava o café do bar e vendia-o a um quiosque que era de uma cunhada, a menina Ausenda era um travesti, o senhor Celestino andava fugido da cadeia há uma data de anos, o Aparício era de origem paquistanesa e andava metido numa célula adormecida de um grupo terrorista, a dona Neves era uma agente infiltrada do SIS, e o senhor Fragoso tinha desaparecido da circulação, bem como dois milhões de euros de uma conta na Caixa. Mas a menina Lurdes é que acabou mesmo por casar com o agente Pragal.