...pior que uma bicha, costuma dizer-se, ou pelo menos costumava, que agora parece pecado...
O Raimundo estava pior que estragado, pior que uma bicha, costuma dizer-se, ou pelo menos costumava, que agora parece pecado dizer coisas destas, o Benfica tinha perdido e de que maneira, sete a dois, tal e qual, preto no branco, não havia margem para dúvidas, dois miseráveis golos marcados e sete sofridos na sua própria baliza, desgraças destas nem a brincar gostava de aceitar, era difícil de engolir, nem a feijões uma derrota lhe sabia mais doce, o puto que jogava lá na frente tinha a mania de ser bom, dotado de rapidez e capacidade de finta, não lhe serviu de nada tanta fama para tão pouco proveito, afinal dois golitos marcados pode chegar, mas não quando se leva sete, sete, veja-se bem, uma mão cheia e ainda mais dois, estava mesmo num estado de espírito de completo desânimo, com uma tristeza profunda a corroer-lhe a alma, sabe-se bem que tristezas não pagam dívidas, mas isso não lhe chegava, o resto do dia estava estragado, se calhar a semana inteira, e agora já não havia maneira de voltar atrás no tempo, nem que fosse o super-homem.
E o puto, o raio do miúdo que dava a ideia de ter ficado com artrite de um momento para o outro, mal se mexia, qual craque nem meio craque, jogadores daqueles nem dados, afinal era só garganta, mais nada, nem pela esquerda nem pela direita, muito menos pelo meio, não havia maneira de meter golo, os dois que tinham conseguido tinha sido um defesa a marcá-los, ora bolas, se um defesa tem que preocupar-se em meter golos como é que também se há-de pôr a defender, não é possível, é coisa comprovada que não se pode fazer tudo ao mesmo tempo senão sai tudo mal, e quando as coisas saem mal nunca mais há maneira de se endireitarem.
Ele bem tentou, gritava e berrava que nem um doido, ao ponto de lhe ter ficado a doer a garganta, mas hoje em dia já ninguém ouvia ninguém, e no calor da refrega muito menos, é certo e sabido que a excitação tapa os ouvidos, é boa solução para quando se tem vizinhos barulhentos, uma pessoa excita-se e pronto, já não ouve nada, agora receitas para excitações é que não damos, qual quê, isto não é farmácia nem botica de espécie alguma, quem as quiser que as compre, ou que as invente, o que é preciso é dar asas ao espírito criativo, o pior é se com as asas ele se mete ao fresco e nunca mais lhe pomos a vista em cima, mas é um risco que se corre, uma vida não pode ir apenas ao sabor da corrente, sensaborona como a comida sem sal, o melhor é nem falar nisso, senão depois ainda vão para aí dizer que andamos aqui a contribuir para a hipertensão dos portugueses.
O puto lá da frente, esse então nada, nem com estímulos, nem conselhos, nem com um insulto de quando em vez, mais valia substituí-lo, mas também ao que parece não havia ali quem se candidatasse ao lugar, cambada de azelhas, era o que era, e os golos iam entrando, um após outro, e o Raimundo cada vez mais doente, já estava possesso, punha-se aos saltos, enfiava um chorrilho de asneiras como quem encarreira avé-marias umas a seguir às outras, nunca mais chegava ao pai-nosso, que pelos vistos não estava nos céus nem ali na terra ao pé dele, e bem que dava jeito, que o que via era os adversários fintarem, encarreirarem a bola desde a defesa até ao ataque, o meio campo então estava irrequieto, só servia bolas ao ataque, que não se fazia rogado, e sem cerimónias o marcador ia-se dilatando cada vez mais.
E então às tantas o Raimundo, furioso e quase apoplético, zurrou para o puto: tu nunca mais jogas comigo aos matraquilhos.