Na esquina de baixo do bairro havia um tipo de aspecto algo duvidoso, que era conhecido como o «Mãozinhas». Dizia-se que era traficante de droga, com especialidade na liamba, que isto de vender droga também tem as suas particularidades e dá direito a especialização e tudo.
Já ninguém se lembrava como o «Mãozinhas» tinha ganho aquela alcunha. Uns que era por causa da tendência de fazer mão baixa a tudo o que andava ao seu alcance, outros que era por causa dumas histórias antigas que metiam ligeireza de mãos com a segunda mulher do senhor Joaquim, proprietário de uma mercearia de porta aberta desde a altura da construção do bairro e ainda hoje estabelecimento de referência para a freguesia mais idosa, que a mais nova preferia o hipermercado do centro comercial do bairro vizinho.
Sabia-se, contudo, que o «Mãozinhas» acabara por constituir família com a viúva do sacristão da igreja lá do sítio, fizera-lhe dois filhos a somar aos outros dois que a dita senhora trazia já do anterior casamento, e a negociata sustentava aquela gente toda e ainda dera para pagar o internamento da mãe da viúva num lar de terceira idade que pertencia a uns indianos que o exploravam há cerca de cinco anos, após uma aquisição com sucesso a duas irmãs solteironas que haviam acabado por adquirir uma casinha na Praia da Areia Branca com o dinheiro dos indianos.
Quando a polícia (que de vez em quando dá um arzinho da sua graça) deitou a mão ao «Mãozinhas», a família toda entrou em greve de fome à porta do Governo Civil e ali foi definhando dia após dia dentro de um carro abandonado até ao dia do julgamento sem que qualquer alma bondosa lhes passasse cartão. A pobre da mulher lá ia conseguindo umas bolachas e uns sumos de quando em vez logo que decidiram que isto de greves era chão que não dava uvas nenhumas e ao fim de seis meses juntou-se-lhes a mãe, que no lar não davam esmolas a quem não pagava as mensalidades. A velha morreu ali mesmo, e levou acompanhamento da bebé mais nova, após um surto de bexigas e sarampo que varreu a criançada toda. Deitaram as mortas no meio da rua, e passaram três dias a gemer e a tiritar de frio e de fome até que houve quem, na Segurança Social, se lembrasse de que uma velha e uma criança mortas no meio do passeio fariam uma bela figura na abertura dos telejornais e nas parangonas dos diários e não dariam lá muito boa imagem de um país da União Europeia; por fim lá levaram os cadáveres para lhes darem destino. Agarraram depois nas outras crianças e enfiaram-nas em dois lares. A mulher hoje ainda lá está, dentro da sucata abandonada, e quem por lá passa pode ouvir umas toadas tristes e desesperadas que lhe saem pela boca fora.