
Saiu de casa e deu de caras com a porteira.
- Bom dia, senhora doutora.
- Bom dia, dona Etelvina.
«Digo que não digo, afinal de contas tens coragem ou não, se me meto num sarilho é que são elas, e depois quem acaba por pagar as favas sou eu.» Mas acabou por dizer.
- Dona Etelvina, então abriu a porta ao homem que veio contar a luz e deixou-me a casa num miséria?
- Numa miséria, senhora doutora? Mas o que foi que aconteceu?
- Quando cheguei ontem a casa o chão da entrada estava todo sujo, cheio de riscos, havia pegadas de lama pelos corredores e pela sala, e uma data de papéis revirados em cima da mesinha da sala es espalhados pelo chão. A senhora deixou o homem sozinho lá em casa?
- Pois, senhora doutora, o que aconteceu foi que o homem trazia os dois filhos com ele, são crianças, a senhora doutora sabe, e de repente chamaram-me do terceiro andar, que havia uma inundação, e eu tive que ir lá a correr.
- Mas, dona Etelvina, a senhora deixou-me o homem sozinho lá em casa? Dentro da minha casa? E ainda por cima com crianças?
Dava para desconfiar. Sabia perfeitamente que a porteira alimentava um odiozinho de estimação por si desde que se queixara numa reunião de condomínio de que a mulher deixava o lixo todo do seu patamar amontoado mesmo ao pé da porta da sua casa, e não tinha sido apenas uma vez, não senhora, era sistemático, o montinho ficava lá durante horas seguidas, e ela no parlapié com a porteira do prédio ao lado, diz que diz, diz que não diz, no dia seguinte ainda lá estava o lixo todo, tinha que saltar por cima daquilo para entrar e sair de casa e apanhar o elevador, até parecia que o armazém do lixo do prédio era ali mesmo à porta de sua casa.
E como deu por pegadas de cão entre as pegadas de gente no seu corredor, entendeu que o raio da mulher devia era mesmo ter metido os dois cães lá em casa quando abriu a porta ao homem da electricidade, se calhar andava mas era a passeá-los, aquelas duas feras irritantes que ladravam a todos os moradores do prédio e que lhe ferravam os dentes nos pés, uma vez até lhe tinham estragado um par de botas novas que lhe tinham custado os olhos da cara, e agora vinha com aquela dos filhos do contador da luz. Resolveu voltar à carga.
- Mas a senhora não estava lá quando o homem saiu?
- Ai, não, senhora doutora, estava lá no terceiro a ajudar a senhora dona Francisca com a inundação e depois ainda tive que telefonar para a Câmara, lá para os serviços da água, que era para virem cá, que havia uma fuga no contador e os canalizadores não mexem ali porque sabem que lá os da Câmara não gostam.
- Isso quer dizer que a senhora deixou o homem lá dentro de minha casa, com a porta aberta, e nem viu se ele a fechou ou não.
- Já disse à senhora doutora que não podia. Estava numa emergência.
- Pois. E deixar a porta da minha casa aberta não era uma emergência... Com gente lá dentro e sabe-se lá se eram ladrões ou não.
- Ladrões, senhora doutora? Pois então o homem da luz ia lá roubar?... O homem é de confiança, senhora doutora.
- De confiança? Então o homem mete-me gente lá em casa, deixa-me tudo virado do avesso e é de confiança?
- Eu acho que é, senhora doutora. Mas não sabia que ele vinha com os filhos...
- E os filhos traziam patinhas de cão, não é, dona Etelvina?
- Não percebi, senhora doutora. – A porteira corava, mas lá dar parte de fraca é que ela não dava. E com aquela doutorazeca muito menos. Qual doutora qual carapuça. Lá porque era a dona do Conservatório... A doutora Conservadora... Que fosse conservar latas de conserva para o supermercado, mas era...
- É. Havia marcas de patas de cães pela casa inteira. E a senhora sabe que eu não gosto de cães. Nem de gatos, nem periquitos, nem bichos de espécie alguma.
- Lá isso não sei, senhora doutora. Que o homem trazia os filhos, trazia. Cães é que não vi.
- Mas havia marcas de cães, dona Etelvina. E cheias de lama. Acho que ainda me fizeram um xixi na planta da sala. E os papéis que tinha por cima da mesa e que estavam espalhados pelo chão tinham pegadas de cães e marcas de dentes. Ainda me rasgaram uns documentos importantes que lá estavam e que nem eram meus. O que é que eu vou dizer às pessoas quando lhes devolver os documentos, dona Etelvina? Que uma matilha de lobos invadiu a Conservatória?
- Ai, Jesus, Credo, senhora doutora – E persignou-se. – Agora andam lobos aí à solta?
- Pelos vistos andam, dona Etelvina. E moram aqui no rés-do-chão.
- Nosso Senhor nos livre. A senhora doutora acha que os meus meninos agora são como esses bichos esfaimados que andam pelos montes, lá como na minha terra?
- Achar, achar, não acho, dona Etelvina. Mas que os lobos esfaimados que andam aqui pelo rés-do-chão me entraram lá em casa e me ferraram o dente nos papéis e me riscaram o chão todo, isso é que eu acho. Isto para além de encherem de porcaria os passeios aqui à volta do prédio.
- Ó senhora doutora, aquelas alminhas abençoadas não fazem mal a ninguém. Eu levo-os à rua de manhã e à tardinha e eles fazem as suas necessidades lá no jardim, não fazem nada aqui no passeio.
- Pois não, claro que não. Tenho mesmo a impressão que os montes de porcaria que andam ali espalhados devem ter sido deixados ali pelos filhos do senhor da electricidade.
- Lá está a doutora a desconversar. Pois se eu lhe disse que os rapazinhos só hoje é que vieram com o pai. E ele não vem todos os dias, não senhora, nem sequer todos os meses. É lá de tempos a tempos.
- Mas se calhar não têm casa de banho em casa e vêm fazer as necessidades aqui nos passeios, não é, dona Etelvina? Quando o pai os manda à casa de banho aí vêm eles que nem umas setas direitinhos aqui aos passeios.
- A senhora doutora gosta muito de brincar. – Ria-se ela a bandeiras despregadas, e todo o corpo abanava desde o pescoço até aos tornozelos inchados. – Nem sei quando é que está a falar a sério ou a brincar.
- A brincar, a brincar foi que me estragaram os documentos. E já nem me importava com a lama e os riscos se não fossem as dentadas e o lixo todo nos papéis. Que acha que eu faça agora, dona Etelvina? Que mande os papéis para o tribunal naquele bonito estado?
- Para o tribunal, senhora doutora? A senhora vai-me pôr os meus cãezinhos no tribunal?
- Não era isso que eu estava a dizer, mas já agora que me fala nisso, até que se calhar nem era má ideia.
- A senhora doutora nem me diga isso nem a brincar. Nosso Senhor nos acuda!
- E quem me acode a mim, dona Etelvina? Quer que eu vá dizer ao juiz que afinal aquelas marcas e os rasgões nos papéis foram porque tivemos um empregado na Conservatória que ficou com raiva de repente e desatou a morder na papelada e a atirá-la para o chão?
- Ai, senhora doutora, no tribunal é que não...
- Pois é, dona Etelvina. E o que é que eu digo agora?
- A senhora doutora podia inventar uma história. Dizia que tinha sido uma cliente sua que tinha levado um cãozinho quando ia fazer uma escritura e que o coitadinho tinha ficado à solta e se tinha metido com os papéis quando ninguém estava a reparar.
- Pois, estávamos todos a olhar para o lado. Se calhar ia a passar uma parada da GNR...
- Lá está a doutora a desconversar outra vez...
- Pois é, dona Etelvina, lá conversa tem a senhora.
- Eu, senhora doutora? Eu que sou tão calminha e que passo aqui dias e dias que quase não falo com ninguém.
- Pois. A não ser com a porteira ali do lado, com a senhora do primeiro, do segundo, do terceiro e por aí acima. Isto para já não falar do padeiro, do homem da distribuição do correio...
- Ai, a senhora doutora a dar-lhe. Eu tenho dias que só falo com os meus cãezinhos, coitadinhos, que não têm ninguém que fale com eles se não for eu...
- Coitadinhos dos bichos. Veja lá se morrem de indigestão por causa dos papéis de minha casa.
- Por acaso o Faneco até que hoje estava mal disposto, senhora doutora.
- Imagino. Ia-lhe dando um fanico.
- Ah, ah, a senhora doutora é mesmo uma brincalhona.
- Bem, havemos de falar disto outra vez, dona Etelvina. Agora estou com pressa.
- Até logo, senhora doutora.
- Até logo, pois claro. - E mal meteu o pé fora do prédio enfiou as botas em duas belas amostras de dejectos que simetricamente ornamentavam a entrada.