Mais do que saber que um ano passa, que são trezentos e sessenta e cinco dias, uma vez por outra trezentos e sessenta e seis, que vamos gastando este tempo que temos assim ou assado, grande parte das vezes mais assado do que assim, e que depois de gasto não há nada que nos possa voltar a recebê-lo, que quem dá e volta a tirar ao inferno vai parar, dizia-se nos tempos em que ainda se podia falar em inferno sem queimarmos as mãos ou a língua, que hoje em dia há que olhar para o lado antes que se possa pronunciar uma palavra que seja sem que nos atirem à cara uma data de rótulos daqueles que têm uma cola mesmo nada fácil de retirar, que nem com água a ferver se vai lá, pior mesmo do que o adesivo na história do Tintin, e o que me divertia essa cena, que não deve ser mesmo nada divertido ficar colado a uma qualquer legenda a vida inteira, se fosse tinha-me transformado em personagem de cinema, de animação, de banda desenhada, de partido político, eu sei lá, o que não falta é por onde escolher, pois pior do que isso tudo é levar a vida a contar os dias, a vê-los a andar cada vez mais devagar ou mais depressa, consoante se espera ou desespera, nem sempre tudo o que parece é, e afinal andamos cada vez mais metidos num jogo de aparências de que a verdade está mais e mais arredada, e isto não é pessimismo de quem já encara o copo meio vazio, é o que se sente quando se olha para o que nos falta e o que nos resta, a pouco e pouco o balão vai-se esvaziando e nem damos por ela, um dia destes acordamos e já nada nos pertence, os livros, a roupa, a casa, o país, nem sequer a vida, que a demos de mão beijada a quem a não soube sequer gerir, tal como tudo o resto, ou então já nem acordamos e pronto, era uma vez, e é que é mesmo era.