N ão me lembro do dia em que nasci. Olha que admiração, irá logo pensar quem se puser a ler estas linhas, grande novidade, não há quem se lembre do dia em que nasceu, se calhar pensavas que eras algum prodígio, que te lembravas dos apertos, das primeiras mãos que te tocaram no corpo, depois haviam de ser algumas mais, do primeiro ar frio que te rasgou a pele após tantos dias de calor, pois é, não sou prodígio, claro que não, mas com isto já escrevi 91 palavras e 390 caracteres, se fosse por extenso ainda era mais, que há quem faça isso para dar maior corpo ao texto, pode ser corpo, eu chamo-lhe palha, é o que dizem, palha, se bem que não vejo aqui crescerem searas para depois haver palha, mas posso estar enganado, já havia as searas de vento do Fonseca, bem que pode haver searas de conversa fiada, pois claro, e porque não?
Não me lembro do dia em que nasci, mas recordo bem o dia em que fui baptizado, tinha para aí uns três meses, também passei por isso, claro que passei, e por muito mais, as coisas que uma criança sofre, nem vos digo nem vos conto, nesse dia deram-me um banho que me iam afogando na pia baptismal, ainda hoje tenho essa sensação, nunca mais me abandonou, berrei que me fartei, que me estavam a afogar, o pior é que não me percebiam e lá vai água e mais água, aquilo tudo a entrar-me no gorgomilo, a arder-me nos olhos e ninguém foi capaz de entender nada, que diabo, se em vez que olharem para o padre olhassem para mim talvez percebessem, afinal de contas não estava a falar chinês, mas era como se estivesse, depois foi a maior festa que se fez em minha casa, foi o que me contaram, que disso já não me lembro, devia estar a recuperar do susto, confirmaram-me mais tarde que berrei que nem um bezerro desmamado, verdade, lembro-me mesmo bem, aquela sensação há-de morrer comigo, se calhar quando isso acontecer vou sentir a mesma coisa, não é que já tenha visto bezerros acabados de desmamar, mas já vi bezerros, já, sim senhor, não sou assim tão ignorante, sempre conheço umas coisitas da realidade da vida, até sei que o tremoço não é nenhum tubérculo, e também não é marisco, mas lá a festa é que para mim foi um desperdício, que nessa altura só bebia leitinho e água, se calhar já marchavam umas papas, mas isso também não posso aqui afirmar com toda a certeza.
Uma pessoa tem memórias que datam da mais tenra idade, tem, sim senhor, eu pelo menos tenho, lembro-me de uma namorada que tive aos cinco, seis anos e que às tantas foi atropelada por uma bicicleta e teve que engessar uma perna, coisa a que não achei piada nenhuma e acabei o relacionamento logo ali, onde é que já se viu um miúdo apresentar-se em público com a namorada cheia de gesso na perna, que vergonha, miúdo que se preze tem que ter uma namorada bem vestida e apresentável, não querem lá ver.