A profissão que tinha escolhido, ou que o tinha escolhido a ele, era a de procurador. Não desses de leis e papel timbrado, escritório com placa dourada à porta, mas dos outros, mais raros e valiosos, que procuram as coisas que os outros perdem, ou que acham coisas que não deviam ser encontradas. Já lhe acontecera dar de caras com gente que preferia nem se lembrar de que tinha perdido o que tinha perdido, muitas vezes pela simples razão de que as coisas perdidas nem sempre são para serem achadas, até porque tantas e tantas vezes estas acabam por serem substituídas por outras coisas, e a memória das primeiras desaparece aos poucos e poucos, como o fumo que se esvai pelas chaminés de inverno.
Mas gostava mais que lhe chamassem achador. A sua actividade envolvia a procura de pequenos objectos, relíquias de família, retratos de gente perdida no tempo, móveis aos quais se tinha perdido o rasto, automóveis estacionados sabe lá Deus onde (ou desviados para o diabo que os carregasse), e ultimamente tinha dado conta que as pessoas preferiam que lhes achasse outras pessoas. Não era tarefa fácil. A sua experiência ganhara-a ao cabo de anos e anos de perdidos e achados num gabinete da maior empresa de transportes públicos da cidade. Numa fase posterior passara ao trabalho de campo, ao contacto directo com os locais onde as coisas se tinham perdido. Um dia reparou que havia muita gente que de facto dava importância ao achamento de coisas que tinham levado sumiço por este ou por aquele motivo, resolver reformar-se e dedicar-se a tempo inteiro à profissão mas por conta própria. Pespegou com quatro ou cinco anúncios nos jornais e parece que a coisa pegou, passou de boca em boca como a gripe, e ao fim de três anos já lhe tinham passado pelas mãos mais de quinhentos casos, de desespero maior ou menor, com uma taxa de sucesso na ordem dos setenta por cento, o que não era nada mau, se tivermos em consideração que há perder e perder, e a sua classificação destes perdimentos atingira um tal grau científico a ponto de conseguir um ficheiro com para cima de trezentas e tal situações distintas. Isto apenas no que dizia respeito a objectos. Já quanto a pessoas o cenário era outro: havia quem se perdesse, quem perdesse alguém, quem andasse perdido, quem se quisesse perder, quem quisesse dar-se por perdido, quem não se quisesse perder, quem pretendesse perder-se, quem não quisesse dar-se por perdido (ou por achado), ou mesmo quem tivesse pretensões a aparecer perdido, por esta ou por aquela razão. E ainda havia variações.
Chegaram a propor-lhe trabalhar por conta de uma grande empresa bancária, mas não foi na cantiga. Mas parece que esta e outras no mesmo género apresentavam um grande interesse neste negócio de encontrar gente que pelos vistos não queria ser achada.
Tinha clientes de todos os tipos e feitios: mulheres que procuravam maridos, maridos que procuravam mulheres, pais que queriam achar os filhos que tinham levado sumiço ou a quem a certa altura tinham dado sumiço, filhos que já não sabiam dos pais, irmãos ou irmãs desencontrados, parentes que procuravam outros parentes, e aqui as variações eram também numerosas, clientes velhos e novos, gordos e magros, bonitos e feios, ricos e pobres, de sexo definido ou indefinido, brancos, pretos, amarelos, e até às pintas, que foi o caso de uma senhora que lhe surgiu um dia cheia de aflição pela porta dentro cheia de bexigas loucas porque não sabia onde haviam ido parar os dois filhos do primeiro casamento do marido, se bem que neste caso teve sérias dúvidas se aquilo era mesmo para ser levado a sério ou não.
Certa vez conseguiu achar até um indivíduo que se tinha perdido mais vezes do que as que tinha sido achado. Era um fenómeno, o tipo. Ia pela rua, virava uma esquina e puf, era como se nunca tivesse existido neste mundo ou como se mundo nunca tivesse existido para ele, ou como se o mundo não quisesse saber dele para nada. Como não tinha parentes nem amigos, a coisa tornava-se fácil, mas depois dava consigo a pensar se afinal valia a pena estar perdido, que não, que não valia a pena coisa nenhuma, e lá fazia pela vida em ser encontrado, o que não era fácil de todo, já que era preciso lembrar-se de tudo e quanto mais se lembrava menos lhe apetecia fazê-lo. Mas o procurador lá ia à sua procura, e não desistia até dar com ele numa pensão esconsa - daquelas que anunciam para a rua que possuem águas correntes quentes e frias, se calhar têm quedas de água pelas escadas abaixo e geisers a jorrar nos quartos e o Instituto do Património é que nunca deu por nada -, a dormitar num caixote de papelão num vão de prédio, a bebericar num bar de má fama numa rua ainda mais mal afamada, em mil e uma situações que ao fim de tantos anos não lhe eram estranhas, careca que estava de procurar gente perdida ou esquecida de que queria ser achada.
Aos oitenta e três anos o procurador finou-se. Que se saiba, não houve quem o procurasse no funeral, e actualmente perdeu-se-lhe o rasto à campa. Afinal, quem mais procurou não quis ser encontrado. E agora também já não adianta.